Os golpistas conseguiram alcançar seus objetivos de canalizar rendas crescentes para o grande capital e para a oligarquia.
Marcelo Milan
Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 28/01/2022
É bem conhecido o caso em Estatística no qual o resultado agregado não vale para nenhum dos subgrupos que compõem a amostra empregada na inferência. Na Economia esta situação é ainda mais comum, principalmente pela necessidade de utilização de variáveis agregadas para fins de síntese da atividade macroeconômica. Uma das principais ilusões proporcionadas pela macroeconomia se deve ao fato de que, por mais que o todo não seja igual à soma das partes (a chamada falácia da composição), para fins analíticos o agregado pode ser decomposto, fracionado e classificado de diferentes formas, proporcionando diferentes ângulos para se avaliar o desempenho econômico. É claro, isto não quer dizer que discussões totalmente desagregadas sejam necessariamente melhores, pelo contrário – até porque não existem parâmetros inequívocos para definir critérios de desagregação). Os resultados particulares podem, assim, divergir diametralmente do quadro geral, que se mostra então ilusório. Desta forma, quando se observa apenas a evolução do PIB (produto interno bruto), sem observar sua decomposição, pode-se ter uma visão completamente equivocada do desempenho econômico dos grupos, frações e das classes envolvidas na geração da renda total ou agregada.
Por exemplo, pela ótica da renda é possível decompor o PIB em rendas do trabalho, inclusive trabalho não assalariado, e rendas do capital (lucros, juros e aluguéis). E estas rendas, por sua vez, quando mensuradas em termos monetários, dependem de diferentes índices de preços para serem avaliadas em termos de poder de compra, isto é, da capacidade das rendas monetárias dos diferentes grupos, frações e classes se apropriarem do PIB medido pela ótica da produção. Produção, rendas, preços e apropriação estão intrinsecamente associadas. E por esta última ótica, a da produção, o PIB pode igualmente ser decomposto de diferentes formas: agropecuária, indústria e serviços; bens de consumo duráveis, semiduráveis e não duráveis, bens de salário, bens de capital, insumos produtivos (quando o valor da produção é medido em termos de valores adicionados brutos), etc. Ao se observar a decomposição da renda e da produção, o resultado agregado se torna, exceto para fins retóricos, secundário.
No Brasil, com relação à ótica da produção por macrossetores, é clara a diferença de desempenho recente entre o agropecuário e os outros dois, inclusive com a rápida elevação dos preços do primeiro, que se reflete na inflação imposta (uma espécie de imposto inflacionário decentralizado) sobre o resto da economia, redistribuindo renda intersetorialmente e entre as classes e frações. E se pode avaliar em que medida, ao se analisar os diferentes componentes deste macrossetor em particular (também é uma agregação de várias produções e rendas), os trabalhadores rurais e os pequenos agricultores familiares compartilham deste desempenho setorial agregado em condições parecidas as das rendas dos proprietários das grandes unidades produtoras, principalmente as exportadoras, e às dos latifundiários.
Essa questão remete aos efeitos econômicos do golpe de 2014-2016. Em termos agregados, não se pode questionar (exceto nos casos de má-fé empedernida e estupidez congênita) que o desempenho do PIB brasileiro tem sido medíocre, sendo até generoso, desde 2014. Isto é, o produto ou a renda agregada não crescem de forma razoável desde os preparativos para o golpe, com a adoção do programa rejeitado nas urnas, a materialização do golpe, com a volta ao governo dos derrotados na eleição, com o aprofundamento do programa rejeitado, e os desdobramentos pós-golpe, com a ascensão do neofascismo liberal no bojo de uma aliança agro-fanático-miliciano-militar alimentado pelo breve ínterim transilvânico. Este resultado macroeconômico não deveria, contudo, ser entendido como um fracasso do golpe. Pelo contrário. O golpe não tinha por objetivo proporcionar o crescimento da renda agregada, pois esta inclui também a renda do trabalho. O agregado é resultado de dinâmicas inter e intraclassistas particulares, mas refletindo de forma mais pronunciada as disputas entre grupos e frações do capital pela própria efetividade do golpe em alijar o trabalho da dinâmica de apropriação da renda (eis seu sucesso). O golpe incide justamente sobre os condicionantes que definem esta dinâmica, portanto. Não se trata do nível da renda ou de sua evolução agregada, mas de sua distribuição (ou decomposição).
Assim, a restauração oligárquica cria uma institucionalidade em que o conflito de classe se modifica de forma amplamente favorável ao capital. Um dos principais elementos desta institucionalidade é justamente a reforma escrav, ops, trabalhista. Basta olhar a chorumela do capital e de seus porta-vozes ao se mencionar a necessária revogação da reforma. A revogação é necessária para a maioria da população, que depende das rendas do trabalho. A minoria que vive das rendas do capital está satisfeita com o elevado desemprego, a precarização e a parca evolução dos salários, pela própria natureza dos componentes da renda agregada, mesmo que isto traga problemas para o capital voltado a realizar seu excedente no território nacional com a venda de bens de consumo duráveis, como se discute abaixo. A reforma não conseguiu nem mesmo proporcionar um maior volume de emprego em condições mais favoráveis de exploração, posto que emprego implica crescimento agregado, que já não há (nota: as sociedades escravistas tinham economias de pleno emprego).
As consequências para a maioria, para os trabalhadores, inseridos ou excluídos da economia, são claras. Os salários estagnam e a exploração aumenta, como previsto no manual do golpe e na guerra ao salário. A evolução da parcela salarial na renda mostra a importância da análise desagregada e explicita o sucesso do golpe. O aumento da desigualdade, em um país de PIB agregado reduzido, redunda necessariamente em que uma parcela crescente da sociedade é excluída da apropriação do mesmo. Inclusive da produção do setor de melhor desempenho absoluto, o do agro. Assim, a fome aumenta rapidamente (embora seja incorreto fazer referência ao mapa da fome da ONU, pois este termo não tem mais aplicação). A Penssan estima que 9% da população esteja em situação exclusiva de insegurança alimentar grave (=fome), ou seja, sem considerar outras modalidades de exclusão. O golpe repõe e aprofunda as condições de atraso histórico.
Mas, uma vez alcançado este objetivo, dentro desta institucionalidade político-jurídica, os conflitos intracapitalistas é que determinam quais frações do capital serão beneficiadas em determinadas conjunturas, quando e em que condições, já que o PIB agregado estagnado proporciona limites às garfadas no bolso dos trabalhadores incluídos de forma precária e no tesouro nacional, reduzindo a velocidade de expansão do excedente em disputa como preço a se pagar para evitar uma situação omo a vista na transição de 2015-2016. Esta incerteza distributiva, que o arranjo gestado pelo golpe não consegue eliminar, amplificada em 2020 pela pandemia, se reflete na existência de frações impacientes ou frustradas com sua parte no butim, e logo o surgimento de fissuras no bloco neofascista no poder e o desespero por uma recomposição do arranjo na forma de uma coalizão com composição diferente, chamada equivocadamente de terceira via, rifando os elementos fanáticos e as corporações do dedo no gatilho.
Outra resposta para a incerteza causada pela ponte para o futuro é a queda na atração dos capitais estrangeiros. Um importante fundo britânico condicionou recentemente rearticular o circuito do capital brasileiro em seus circuitos financeiros apenas se a aliança neofascista, apoiada ironicamente pela finança em 2018, for derrotada nas eleições do final deste ano (assumindo que acontecerão…). Empresas multinacionais crescentemente deixam de ver o território nacional como propício para acumular e realizar seu excedente. Assim, o circuito do capital produtivo internacional está se desarticulando no espaço nacional. Mesmo grandes empresas produtivas como Mercedes-Benz, Ford, Roche, Eli Lily, Sony, entre outras, decidiram não mais acumular e realizar excedente no Bananil. São empresas de produção industrial para a classe mérdia, que tende a encolher como resultado da redistribuição de renda gestada pela nova institucionalidade. E aqui a ótica da despesa se mostra fundamental, pois a relação lucro-inversão não está dissociada da relação salário-consumo. Trata-se portanto de uma completa inversão da retórica vendida para justificar o golpe, criando uma divergência entre discurso e realidade. Ou possivelmente uma dissonância cognitiva. O Chicago “Boy” Guedes vocifera tantas bobagens que é difícil selecionar as piores, mas ele previu que, no bojo das reformas institucionais neoliberais que resultaram do golpe, os influxos de capital para o Brasil provocariam uma verdadeira inundação… Para não ficar para trás em matéria de previsões furadas, um empresário do setor de varejo disse com todas as letras que bastaria Dilma cair para o investimento disparar, pois o golpe despertaria a fada da confiança. E, para não deixar dúvida sobre a cognição prejudicada do sujeito, afirmou recentemente que a tributação das grandes fortunas diminui a desigualdade, mas deixa os ricos mais pobres…
De qualquer forma, o agregado faz parte do discurso e da retórica da legitimidade para defender o golpe e vendê-lo como prática saneadora e restauradora. Um desempenho pífio no agregado, mesmo que compatível com a redistribuição de renda do trabalho para o capital, precisa ser visto como o melhor dos mundos para se tornar palatável na disputa política e aplacar os elementos do capital cuja partilha na farra foi frustrada. Aqueles cognitivamente prejudicados começam a tentar encontrar desculpas para o desempenho agregado medíocre. Uma delas é justamente tentar desagregar o resultado geral em setores sem qualquer respaldo no conhecimento econômico estabelecido, por exemplo diferenciando entre PIB privado e PIB público. Ou então inflar resultados de emprego por comparações espúrias. Ou ainda, tentar inflar o resultado por uma contabilidade que só existe nas cabeças em que a razão tamanho do neurocrânio/volume da massa encefálica tende ao infinito (por exemplo, calcular a diferença de crescimento entre dois anos para chegar a um número milagroso. E até mesmo pessoas com título de doutor em economia reproduzem esta estultice – o que mostra que títulos acadêmicos podem servir a uma mera formalidade, sem relação com capacidade cognitiva).
Para além do favorecimento estrutural do capital agrícola, há outros vencedores temporários. As medidas em prol dos acionistas das petrolíferas já foram tratadas em outro artigo. As empresas do setor elétrico lucraram mais de R$ 40 bilhões em 2021, em um contexto de crise hídrica. E o programa de transferência de renda dos usuários para as empresas já vinha de antes dos problemas causados pela alteração no regime de chuvas. Enquanto a inflação foi de 48% entre 2015 e 2021 (fora Mantega!), a tarifa residencial da energia elétrica aumentou 114%. E como a tarifa para o capital aumenta também, este é um fator de incerteza sobre a redistribuição do excedente. Essa é uma faceta da institucionalidade do golpe: repassar todo e qualquer aumento de custo para os consumidores, inclusive o dos insumos. Poderia até ser desnecessário fazer referência aos bancos. Mas os três maiores lucros reais (subtraída a inflação) anuais da história aconteceram no período de transição nosferatica e de pós-golpe. Na ordem: 2019, 2015 e 2021. Nota: 2015 foi ano de forte recessão no agregado, já na transição gestada pelo golpe. É a composição, estúpido!
Desta forma, não se pode evitar a conclusão de que o golpe representou um estrondoso sucesso, alcançando seus objetivos, mesmo que em detrimento do componente do trabalho e logo do desempenho agregado fastidioso. O golpe obedece as leis de ferro da oligarquia tupiniquim em que a elevação do salário acima dos níveis de subsistência é um poderoso previsor dos golpes jurídico-político-militares. Para não mencionar que o golpe foi também um sucesso ambiental (maior desmatamento da Amazônia em dez anos em 2021), político (enfraqueceu ainda mais a praticamente combalida democracia), diplomático (Brasil como pária internacional, com direito a proto-embaixador experiente em chapar hambúrguer), cultural (livros têm palavras demais), de saúde pública (vacina não funciona, cloroquina sim…) A análise desagregada mostra que os golpistas de 2014-2016 conseguiram alcançar seus objetivos de canalizar rendas crescentes, mas em disputa acirrada, para o grande capital e para a oligarquia. Inverte-se agora o que dizia um ditador que terá seu indevido título honorífico cassado pela UFRGS: a economia agregada vai mal porque o povo vai mal. Na ponte para o futuro só trafegam os capitais. Ao trabalho só cabe a pinguela para o passado da economia agroexportadora baseada no trabalho forçado.
Marcelo Milan é Bacharel, Mestre e Doutor em Economia