Com a globalização, país se desindustrializou, impondo horizonte de expectativas decrescentes. O trabalho e o padrão de vida se deterioram.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 16/01/2022
A abertura econômica promovida pelas reformas definidas pela perestroika de M. Gorbachev (1985-1991) levou ao abandono da experiência do socialismo real em um só país. O horizonte de expectativas crescentes desabou diante do colapso do ideal comunista, acompanhado que foi pela desindustrialização, pobreza, remoção de benefícios sociais e inflação que rebaixaram, em geral, as condições de vida da população.
O resultado da inserção na globalização capitalista produziu uma nova classe social dos oligarcas russos alavancados pelos negócios ligados à produção primário-exportadora. Após a queda de 15 anos no Produto Interno Bruto (PIB) por habitante desde 1991, a parte da economia russa que sobreviveu, tendo perdido cerca de 1/3 de sua antiga produção manufatureira, estava bem distante da outrora potência industrial.
A nova realidade imposta pela perestroika russa terminou por desconstruir o sonho do novo homem socialista, conforme descreveu a escritora Svetlana Alesksievitc no livro de 2013 (O fim do homem soviético). Não somente as condições de vida originadas durante a experiência do socialismo real num só país ficaram para trás, como a desesperança contaminou a população que diminuiu em mais de quatro milhões de habitantes nos últimos 31 anos, por causa do avanço do suicídio e do uso de drogas legais e ilegais.
A globalização em curso desde os anos 1980 foi potencializada pelo processo de desregulação e abertura econômica nos Estados Unidos, que ampliou a relação do comércio externo (exportação mais importação) com o PIB de 16,6%, em 1983, para 30,8%, em 2011. Com isso, a participação da indústria no PIB que era 27% em 1980, declinou para somente 11,2%, em 2019.
As mudanças na estrutura produtiva foram tornando as condições vida da população estadunidense cada vez mais difíceis. Entre 1979 e 2017, por exemplo, a renda nacional por habitante cresceu 85%, enquanto o salário médio dos trabalhadores permaneceu estagnado em termos reais.
A deterioração da qualidade do trabalho convergiu com o declínio do padrão de vida material, fazendo predominar a escassez dos melhores empregos. O infortúnio da perda dos bons empregos e dos maiores rendimentos atingiu negativamente o sentimento de orgulho movido pela expectativa da realização do sonho americano da mobilidade social ascensional, do status consumista.
O horizonte de expectativas decrescentes foi se afirmando pela dura realidade que tornou mais difícil para as pessoas construírem uma vida superior ou equivalente à de seus pais. Por não ser apenas uma fonte de dinheiro, o trabalho constitui a base pela qual os costumes e as rotinas de vida perderam significado, comprometendo a dignidade, o orgulho e a autoestima, geradores da desesperança.
A trajetória descendente na qualidade de vida coincidiu com o avanço da globalização, que fechou fábricas ou as deslocou – muitas vezes para outros países. O câncer da financeirização que contaminou o centro da economia estadunidense se espalhou descontroladamente no interior da sociedade, o que tornou também mais complicado para os políticos cumprir as promessas feitas aos seus eleitores.
O próprio interesse público e o bem-estar social foram ficando subordinados ao benefício privado dos que eram ricos. A captura da renda interna pelos segmentos poderosos e privilegiados fomentou a maior desigualdade e justificou a estagnação dos salários, o que levou ao inédito crescimento das mortes por desesperança, conforme descrevem Angus Deaton e Anne Case no livro de 2020 Deaths of Despair and the Future of Capitalism.
Especialmente para aqueles que ficam para trás, cujas vidas deixam de ter o curso que esperavam, as mortes provocadas pelo suicídio (morte autoinfligida), o uso de drogas e do álcool em excesso ou por muito tempo cresceram a tal ponto que a expectativa de vida da população branca decaiu na década de 2010, algo desconhecido desde a primeira Guerra Mundial. O desespero e a angústia, associados ao luto, à diminuição do apego ao trabalho, à queda do poder de compra dos salários e ao fracasso da vida familiar explicam o aumento das mortes por desespero.
Em outro estudo que associou o avanço das mortes por desespero à desindustrialização dos Estados Unidos, o autor Sam Quinones (Dreamland: The True Tale of America’s Opiate Epidemic, 2015) destacou o avanço do consumo de opiáceos e a ampliação das mortes em locais que deixaram de ser prósperos devido ao desaparecimento das fábricas e dos empregos de qualidade. Algo que Andrei Martyanov identificou como aprofundamento da decadência estadunidense (Disintegration: Indicators of the Coming American Collapse, 2021).
Em síntese, o sonho do capitalismo americano da ascensão social pelo trabalho assentado no maior rendimento e status consumista terminou sendo moído pela perestroika estadunidense.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.