Valdete Souto Severo
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira, 22/3/2017, o PL 4302, sobre a terceirização. Pior do que o PLC 30, esse projeto, que é de 1998, foi desengavetado em uma manobra golpista, típica do momento político que estamos vivendo.
A terceirização, como bem sabem os trabalhadores, é a possibilidade de a empresa, em lugar de contratar diretamente seus empregados, fazê-lo por intermédio de outra empresa, uma atravessadora. Duas ou mais empresas irão, nesse caso, se beneficiar do trabalho alheio. E para que seja economicamente vantajoso contratar através de outra empresa, em vez de diretamente, alguém tem que sair perdendo. Quem perde é o trabalhador.
Todos sabemos disso. Existem estudos que mostram que a terceirização promove perda de salário, de férias, aumento significativo do número de acidentes e doenças profissionais, além de impedir a organização coletiva dos trabalhadores.
Pois bem, como não houve ambiente para a votação do PLC 30, que também regulamenta a terceirização, em grande medida pela atuação do Senado, o PL 4302 foi retirado da gaveta e submetido à votação em regime de urgência. Porque já estava aprovado pelo Senado, o projeto vai diretamente para a sanção presidencial. Alguém tem dúvida de que será sancionado? Evidentemente não. Regulamentar a terceirização é uma das bandeiras do atual (des)governo. O único compromisso real de quem hoje detém o poder político em razão, em larga medida, dos panelaços de uma classe média alienada e alheia ao que realmente está acontecendo com os trabalhadores brasileiros, é promover o desmanche dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários.
Ao menos a reforma previdenciária está sendo contida, mas o número de projetos de lei desconfigurando completamente a legislação trabalhista não deixa dúvidas de que a investida liberal não arrefecerá. Esse é apenas o primeiro passo.
Passada a sensação de desespero e cansaço, resta fazer uma análise do momento histórico que estamos vivendo, inclusive para não desistir da luta secular pela fixação de parâmetros máximos de exploração do trabalho pelo capital.
Sejamos sinceros: a terceirização já ocorre, inclusive em atividade-fim (seja lá o que isso signifique). A responsabilidade já é subsidiária, por conta da nefasta redação da súmula 331 do TST, gestada e aplicada pela própria Justiça do trabalho. A figura do capital, ou do empregador, como apelida a CLT, já está desconfigurada por práticas, por vezes chanceladas em decisões judiciais, de pulverização entre personalidades jurídicas diversas. Já existem decisões que limitam a responsabilidade ao período em que “tomado” o trabalho por intermédio de uma prestadora, ainda que, claramente, a prestadora só exista em razão das tomadoras que dela se utilizam como atravessadora de força de trabalho. Basta pensar em “empresas” de telemarketing, vigilância ou limpeza e conservação. Essas “empresas” não existem, senão como extensão de outras, para as quais prestam serviços. Por isso mesmo, via de regra, quando a(s) tomadora(s) cancelam o contrato, a prestadora deixa de existir.
O que afirmo com isso é que, apesar do efeito simbólico extremamente negativo que a aprovação do PL 4302 terá, numa lógica de interpretação/aplicação do ordenamento jurídico em que costumamos ter mais atenção a um texto de lei do que à norma constitucional, o fato é que nada mudou. As relações de trabalho no Brasil já estão precarizadas há algum tempo. O que a lei faz é chancelar o que já está ocorrendo.
Então, se quisermos, em uma tentativa dialética de compreensão do que estamos vivendo, extrair positividade da triste página da história que o Brasil hoje escreve, pensemos que as armas estão postas.
A lei que se extrairá desse PL 4302 é inconstitucional. Simples assim. Nega o direito fundamental à relação de trabalho. Nega a proteção insculpida no artigo sétimo do texto constitucional. Promove retrocesso social, vedado pelo artigo terceiro e pelo caput do artigo sétimo da Constituição.
A aprovação do PL 4302 nos dará argumentos para discutir, com a seriedade que o tema merece, o boicote que a terceirização promove ao projeto de sociedade contido na Constituição de 1988.
Já passou da hora de levarmos à sério a Constituição e seus fundamentos, dentre os quais estão os valores sociais do trabalho e a preservação da dignidade humana. De acordo com a unanimidade da doutrina constitucional, um dos efeitos básicos de um direito fundamental é negar legitimidade a toda norma (anterior ou posterior) que o negue. Pois bem, o PL 4302 nega todo o projeto de sociedade “livre, justa e solidária”, que garante “desenvolvimento nacional”, erradique a pobreza, reduza as desigualdades e promova “o bem de todos”. De modo ainda mais direto, nega o direito fundamental à relação de emprego (artigo 7º, I), à irredutibilidade de salário (art. 7º, VI), às férias (art. 7º, XVII), à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII), apenas para citar os exemplos mais óbvios. A intermediação de força de trabalho permite que as prestadoras se sucedam em contratos de um ou dois anos, fazendo com que concretamente os trabalhadores jamais gozem de férias e possam ter o salário reduzido a cada “nova” contratação. Estimula a potencialização dos riscos, bastando citar o exemplo da supressão da exigibilidade de um técnico em segurança do trabalho em face da redução do número de empregados (contratados na forma prevista na ordem constitucional vigente) promovida pela terceirização em diferentes setores da mesma empresa.
E se o argumento da inconstitucionalidade não animar, mantém-se a mesma possibilidade, hoje já existente, de exame do caso concreto, a fim de aferir se a opção administrativa de terceirizar, mesmo sendo lícita, não promove redução ou supressão de direitos fundamentais trabalhistas. Nesse caso, tal opção é nula, por força do que dispõe o artigo nono da CLT. Do mesmo modo, se verificada a caracterização da figura do empregador “dividido” de forma fictícia, entre prestador e tomador, basta invocar o artigo segundo da CLT para justificar o reconhecimento do vínculo de emprego direto. Aliás, o próprio PL 4302 dispõe em seu artigo 22 que “presentes os elementos constitutivos da relação de emprego previstos na CLT” restará configurado o vínculo de emprego entre a tomadora e os trabalhadores. Bingo!
E para aqueles que preferem aplicar as regras da responsabilidade civil, o Código Civil estabelece a responsabilidade solidária e objetiva, pela assunção do risco, mesmo sendo o ato considerado lícito (art. 927, parágrafo único). O artigo 932 do Código Civil diz que o “comitente” é responsável “por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Pois bem, regulamentada a terceirização, o que estamos fazendo é chancelar a possibilidade de que uma empresa atue como comitente, ou seja, repasse a outrem, mediante pagamento, a execução de certos atos em seu nome, sob sua direção e responsabilidade. Ora, a terceirização é isso. O tomador comete ao prestador a realização de atos em seu nome, sob sua direção e responsabilidade. Aliás, o PL 4302 diz expressamente isso: a tomadora detém poder diretivo. Se dirige a atividade que reverte em seu favor, em realidade, está cometendo o trabalho a um terceiro. E, como tal, responde pela escolha administrativa que fez. Sua responsabilidade é, por força de texto expresso de lei, solidária e objetiva (art. 942 do Código Civil).
Note-se: nenhum desses dispositivos será revogado pelo malfadado PL 4302. E no Direito do Trabalho, como nos ensina a unanimidade da doutrina trabalhista, vigora a regra de aplicação da norma mais favorável, por alguns denominada regra da hierarquia dinâmica das fontes formais. O aplicador da legislação trabalhista tem o dever de buscar a norma que mais preserve a proteção a quem trabalha, para aplicá-la no caso concreto.
Temos, portanto, armas (jurídicas) suficientes para conter os efeitos nocivos que o PL 4302 pretende alcançar ao chancelar a prática da precarização nas relações de trabalho.
A aprovação desse projeto de lei deve servir de estímulo à criação e ao desenvolvimento de uma racionalidade trabalhista comprometida com a história e a razão de ser do Direito do Trabalho, e evidentemente com os parâmetros constitucionais que estabelecemos em 1988.
A investida liberal passará. E como toda catástrofe, fará grandes estragos. Ainda assim, precisamos resistir. Quando a tempestade passar restará a responsabilidade de reconstrução dos limites mínimos de convivência entre capital e trabalho, a fim de evitar a barbárie. Compete a cada um de nós, que lidamos com o Direito do Trabalho, assumir o compromisso com as gerações que nos precederam e com aqueles que virão.
Não nos enganemos. O golpe que ontem a Câmara dos Deputados ajudou a desferir só implicará a morte do Direito do Trabalho se nós permitirmos. À luta, portanto.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.