O Direito do Trabalho em meio à crise econômica

Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, desembargadora do TRT/RJ. Fotografia: Charles Soveral/DMT

por Charles Soveral

Em Porto Alegre, onde participou do XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT/RJ), aceitou o convite de conversar com a equipe do DMT. No encontro, ela falou sobre diversos tópicos, como a trajetória de Evaristo de Moraes Filho, objeto de seus estudos e análises, e outras atualidades relacionadas ao mundo do trabalho. Abaixo, os principais pontos anotados por nossa reportagem.

Sociólogo Evaristo de Moraes Filho

Evaristo de Moraes Filho está vivo e com mais de 100 anos. Ele é uma referência importante para todos os estudiosos do Direito do Trabalho. Sua concepção de Direito do Trabalho foi influenciada pelo socialismo democrático, na esteira do projeto de seu pai Evaristo de Moraes, tendo sido um dos fundadores do Partido Socialista na década de 1930. Ele foi denominado de um “socialista possibilista”, ou seja, daquilo que fosse possível de alcançar.

E toda a obra dele é vista sobre esta perspectiva de modificação, de transformação social, modificação da ordem social, de reforma social.

Pouco antes do golpe militar de 1964, Evaristo de Moraes Filho construiu um anteprojeto de Código do Trabalho, conforme solicitado pelo ministro da Justiça à época, João Mangabeira, para substituir a CLT que trazia uma série de instrumentos novos, especialmente na organização sindical, embora ele ainda fosse adepto da ideia de um sindicato único, defendendo a unidade do grupo.

É claro também que o anteprojeto de Código é uma expressão do contexto político daquela época. É uma boa técnica e tem uma boa lavra legislativa. Tem alguns conceitos muito bem trabalhados e que são muito atuais. Evaristo propôs a introdução de Conselhos de Empresa, como instrumento de participação dos empregados na gestão das empresas, normas de vedação à práticas de discriminação na empresa, por motivo de orientação ou atividade política ou sindical; exigia que os regulamentos internos fossem aprovados pelos sindicatos ou, na sua ausência, pelos conselhos de empresa; o direito de greve, com a proibição de despedida, sem justa causa, de empregados que tivessem participado de greves há menos de um ano, dentre tantos outros institutos que teriam revolucionado os fundamentos do Direito do Trabalho brasileiro.

De toda a sorte, são nos estudos teóricos que ele desenvolveu neste período que se sobressaem pontos muito importantes. Em primeiro lugar, uma constituição metodológica distinta do Direito do Trabalho, pois, afinal de contas, ele era também um sociólogo. Assim, ele passou a ter um olhar para o Direito do Trabalho com a carga de informações sociais. Mesmo na defesa do sindicato único é feita toda uma reflexão das origens do grupo social sobre a formação das coletividades. Ele faz uma leitura da legislação que precede a Revolução de 1930: as primeiras leis trabalhistas, os primeiro congressos operários. Depois faz a crítica à CLT, mostrando o autoritarismo presente e fazendo uma denúncia ao que ele chama de “mito da outorga”.

Ele está quase sempre fora de sua época, antecipando em 10 ou 15 anos as questões da Sociologia e do Direito do Trabalho. Ele é um defensor da autonomia dos sindicatos, das convenções coletivas.

É importante resgatar toda esta trajetória. Em nossa cultura jurídica brasileira não se faz muito o acerto de contas com a crítica do pensamento, das matrizes do pensamento. Nós não temos essa tradição. Não temos estudos sobre uma cultura jurídica própria, sobre os pensadores e sobre a formação dessa cultura. Resgatar o papel do Evaristo de Moraes Filho é também resgatar, em certa medida, uma trajetória que não foi hegemônica, pois recoloca as opções que o Direito teve em cada momento histórico.

Projeto de ampliação da terceirização

Com o retorno do debate nacional sobre a ampliação da terceirização, em análise no Congresso Nacional, tornou-se especialmente importante rever e resgatar uma antiga questão que se acercou na CLT quando essa foi feita. Especialmente o núcleo, o conceito de contrato de trabalho.

Naquela época, houve um embate no campo jurídico entre o que se convencionou chamar de debate entre os “contratualistas” e os “institucionalistas”. Para os primeiros, a relação de trabalho nasce de um contrato. A relação aconteceria nesse acerto entre duas partes. Já os institucionalistas entendiam que a relação de trabalho tem conexão social e econômica. O que fundamenta o contrato de trabalho está relacionado a sua inclusão em uma determinada relação produtiva.

A CLT na relação de trabalho trilhou mais para o conceito institucionalista. Hoje, na CLT, há um artigo que diz: “contrato de trabalho corresponde a uma relação de emprego”. Isso é a síntese do embate conceitual travado naquele momento histórico. Forma um núcleo conceitual da relação de emprego.

Fotografia: Charles Soveral/DMT
Fotografia: Charles Soveral/DMT

Hoje é importante lembrarmos disso, especialmente diante do cenário de terceirização que estamos vivendo. Isso porque se entendermos que a relação de emprego se conecta com o modo de organização da produção capitalista, torna-se mais claro compreender esse fenômeno.

Neste embate da CLT ficou claro que a relação de emprego é uma relação fática que se estabelece em torno do modo como se trabalha e produz. Aí há a definição de quem é o empregador e de quem é o empregado. O empregador é aquele que assalaria, dirige, empreende atividade econômica. O empregado é aquele que, sob sua dependência, mediante um salário, executa uma prestação pessoal de serviços não eventuais. É da junção destas duas figuras, da relação entre elas, que nasce o contrato de trabalho.

Tornar claro este conceito é fundamental porque permite, por exemplo, identificar um contrato de trabalho onde a relação de dependência (ou subordinação) do empregado se dá com A e não com B, que é apenas um intermediário. Mesmo em uma produção em rede, posso provar que, na verdade, o trabalho daquele trabalhador é para a “empresa-mãe” que se apropria daquele trabalho, em uma relação de subordinação objetiva. Ao pensarmos na estruturação produtiva atual, muito diferente da época de criação da CLT, que seguia um modelo fordista em criação (onde a mesma empresa controlava todas as etapas do processo produtivo), pode parecer muito difícil identificar quem é o responsável. Mas, com esse conceito, fica mais claro que, mesmo numa sociedade pós-fordista, onde múltiplas empresas atuam em prol de uma única empresa, posso identificar e ver com clareza qual é a responsabilidade desta “empresa-mãe” em todo o processo produtivo. Compreendendo uma relação de emprego como uma relação de fato e admitindo o que se convenciona denominar subordinação objetiva ou subordinação estrutural, o empregador será sempre quem realmente emprega a força de trabalho em seu proveito.

Algo importante a se destacar é que o atual projeto que amplia a terceirização ataca o núcleo, o coração de tal conceito há tanto tempo construído na CLT, pois busca romper com esta lógica de conexão com a realidade produtiva. Isso porque a terceirização permitirá quer se reconheça como empregador aquele ajustado no contrato de trabalho e também prevê a contratação por “pessoas jurídicas”. Ao trazer isso, podemos dar ao problema sua real dimensão, o alcance do que está se querendo mudar.

Programa de Proteção ao Emprego

As primeiras impressões que tenho sobre este Programa de Proteção ao Emprego, embora eu ainda não tenha me aprofundado na redação final, é que ele demonstra o momento econômico do país. É um típico instrumento normativo que caracteriza o que chamamos de Direito do Trabalho da crise.

Há uma frase do Manuel Carlos Palomeque (Universidade de Salamanca) da qual gosto muito: “a crise econômica é companheira histórica de viagem do Direito do Trabalho”. O que temos que pensar é como o Direito do Trabalho, em cada época, dá conta das variadas crises.

Durante muito tempo se afirmou, por conta da crise estrutural estabelecida pela transição do fordismo para o pós-fordismo, que haveria uma crise do Direito do Trabalho, pois seus institutos clássicos não estariam mais dando conta de regular aquela realidade transformada. Então, o sentido da palavra crise estava relacionada a uma pretensa perda da capacidade normativa desses institutos.

Este discurso foi afastado nos últimos 10 anos com políticas econômicas que estimulavam o pleno emprego, e o que volta agora é esta gramática de um Direito do Trabalho da crise, com instrumentos jurídicos para instituir flexibilidade de gestão, contratação, etc. Pensar nessa função do Direito do Trabalho acaba invertendo sua proposta original. Ao invés de ser um instrumento de inclusão social, de coesão social ou de desenvolvimento humano, como frisava Evaristo de Moraes Filho, o Direito do Trabalho da crise acaba por trazer maiores elementos de precariedade ao tentar fazer gestão econômica.

Se existe uma Medida Provisória é porque existe um reconhecimento do Governo para a existência de uma crise e uma tentativa de se estabelecer instrumentos para a gestão dessa crise.

Duas questões, acredito, são importantes de serem observadas neste programa: a primeira é que ele estabelece uma possibilidade de um acordo específico firmado com sindicatos de categorias preponderantes. Então há aí também uma opção pela negociação entre os sujeitos sociais da crise. A Constituição já estabelece a possibilidade da redução de salários via negociação coletiva, só que nós não tínhamos um instrumental jurídico que desse suporte específico a tal negociação de redução de jornada e salários.

Durante a última fase do Direito do Trabalho da crise, ocorrida no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, todos os instrumentos jurídicos para tal gestão econômica eram de absoluta flexibilidade e precariedade. Não foram capazes de conter a crise, de assegurar uma transição menos traumática e nem de gerar empregos. Aprofundaram a desigualdade e a insegurança social.

O discurso agora é de preservação de alguns empregos e possui diferenças do que foi feito no passado. O Estado vai bancar parte dos salários dos trabalhadores das empresas que aderiram ao programa com redução da jornada. Embora o percentual de repasse governamental seja pequeno, pois está dentro da criticável lógica de austeridade do momento, o programa quer também reduzir o saque no seguro-desemprego. Contudo, permanece a redução salarial, o que é prejudicial para os trabalhadores. Neste sentido, segue na contramão dos valores do constitucionalismo social e democrático.

A segunda questão importante a ser destacada é a exigência de que as empresas que façam parte do programa estejam impedidas, exceto por justa causa, de fazer dispensas de seus trabalhadores que tiveram sua jornada reduzida. Uma estabilidade temporária, o que é importante, pois é a primeira vez que tal legislação traz parâmetros exigindo compensações positivas para os casos de negociação coletiva de redução de salários e jornada.

O objetivo anunciado da MP é preservar empregos em momentos de retração econômica e estimular a recuperação das empresas, na medida em que há redução de salários, mas ao menos com a exigência de garantia de permanência do trabalhador na vaga. Porém, sou muito cética quanto a eficácia. Acredito que esse mecanismo não vai conter o desemprego porque entendo que não são instrumentos jurídicos pontuais que fazem a gestão econômica do mercado de trabalho. A crise é contida com o fomento de emprego. Isso a literatura já nos disse.

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