O direito de greve e os 30 anos da Constituição

Alberto Emiliano de Oliveira Neto

Fonte: Jota
Data original da publicação: 29/06/2018

A greve foi assegurada na Constituição de 1988 a todos os trabalhadores. Trata-se da suspensão coletiva, temporária e pacífica do trabalho com o objetivo de alcançar melhores condições. A greve também pode transcender a esfera do contrato de emprego para atuar como mecanismo de protesto em face de outros empregadores ou do Estado. Contudo, passados 30 anos da promulgação da Constituição, a greve ainda enfrenta problemas para se consolidar como direito fundamental.

Diante da assimetria entre empregador e empregado, a união dos trabalhadores em busca de melhores condições de trabalho apresenta-se como estratégica historicamente reconhecida. Os movimentos operários que se apuram desde a Revolução Industrial são a demonstração empírica de que tão somente a união de forças entre os trabalhadores pode equipará-los ao poder da empresa para então estabelecer uma negociação mais justa.

Ao vocábulo céltico “gravo” atribui-se o significado de areia, pedrisco ou cascalho, originando mais tarde a palavra francesa “greve”, cujo significado semelhante deu origem ao nome de uma praça às margens do Rio Sena, em frente à “Ile De La Cité”, a “Place de Grève”, situada em uma praia arenosa. Era o local de encontro dos trabalhadores por conta das embarcações que ali atracavam. Além da busca do trabalho, o local também se notabilizou por movimentos de reinvindicação dos trabalhadores que, ao se reunirem no local, cruzavam os braços até que fossem atendidos ou demitidos. Não demorou muito para que a expressão “faire greve” fosse associada à suspensão do trabalho[i].

No sistema da proteção aos direitos humanos que se consolida após o término da Segunda Guerra a greve foi tema de pauta das organizações internacionais, sendo assegurada em tratados internacionais, declarações e convenções, dos quais destacam-se o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e as Convenções n. 87 e n. 98 da OIT, não obstante a discussão sobre a ausência da menção expressa à greve nos documentos da OIT[ii]. O direito de greve também foi assegurado em diversas Constituições, destacando-se os textos da Itália, França, Espanha, Portugal, Argentina e Uruguai[iii].

No Brasil, tipificada no Código Penal da 1ª. República, a greve e o locaute foram declarados recursos antissociais pela Constituição de 1937. A tipificação penal prossegue no Código Penal de 1940, mas em 1946, na busca de um regime democrático, a greve é disciplinada pelo Decreto-lei n. 9.070/46 e, posteriormente, assegurada como direito fundamental pela Constituição daquele ano.

Anos mais tarde, outro retrocesso. Logo após o Golpe de 1964, nova lei de greve foi aprovada, tendo com base projeto anterior à derrubada de João Goulart. A Lei n. 4.330, de 5 de junho de 1964, limitou consideravelmente o exercício do direito de greve, o que acabou se consolidando na Constituição de 1967, que expressamente proibiu a greve no serviço público e nas atividades essenciais, sem contar a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 6.220/78), fundamento para a condenação de muitos sindicalistas. Não obstante o surgimento de um novo sindicalismo no final da década de 1970 no ABC paulista, tão somente com a redemocratização do País a greve foi amplamente assegurada pela Constituição:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

– 1º – A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
– 2º – Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

O direito é atribuído aos trabalhadores, mas os sindicatos, figura coletiva fundada no direito de associação e na liberdade sindical (CF, arts. 5º, XVII, e 8º), assumem o papel de protagonistas na greve, conforme entendimento consolidado pelo Comitê de Liberdade Sindical da OIT[iv].

Não obstante a amplitude assegurada pela Constituição, o exercício do direito sofre limitações. A Lei n. 7.783/89 regula a greve e proíbe o locaute. Seja pela lei, sejam pelas decisões judiciais, sejam pelos atos normativos do Poder Executivo, a greve se burocratiza. Se cabe aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercer o direito e sobre os interesses que devam por meio dele defender, o direito greve, além de melhores condições de trabalho, também pode abraçar outras pautas, notadamente políticas e econômicas, relacionadas à tutela dos direitos humanos e à defesa de políticas públicas. Pode-se falar, também, na greve de solidariedade que tem como fundamento o apoio a outros trabalhadores[v].

O Comitê de Liberdade Sindical atribui validade às greves de solidariedade[vi], mas faz ressalvas às greves puramente políticas, as quais não teriam amparo na liberdade sindical, não obstante reconhecer o direito dos sindicatos em ampliar suas bandeiras na forma de greves de protesto:

– §481. As greves de caráter puramente político e as greves decididas sistematicamente muito antes que as negociações sejam levadas a cabo não caem no âmbito dos princípios da liberdade sindical.
– §482. Embora as greves de natureza puramente política não estejam amparadas pelos princípios da liberdade sindical, os sindicatos deveriam poder organizar greves de protesto, especialmente para exercer o direito de criticar a política econômica e social do governo.

O TST já reconheceu o direito de greve envolvendo questões que transcendem o contrato de trabalho. Quanto à greve de solidariedade, apura-se jurisprudência que reconhece sua validade, mas condicionada à não abusividade do outro movimento[vii]. Em relação à greve política, consolida-se o entendimento de que a prévia negociação é requisito indispensável para o exercício do direito (Lei n. 7.783/89, art. 3º)[viii]. Respeitado entendimento em contrário, condicionar a greve à negociação coletiva resulta em violação do Texto Constitucional, pois limita o direito ao âmbito da relação entre empregado e patrão, afastando-se, indevidamente, outras bandeiras de interesse dos trabalhadores, as quais foram incorporadas ao direito de greve pela Constituição.

Diferentemente, a prévia comunicação não se mostra incompatível com o livre exercício do direito de greve, pois se fundamenta no princípio da publicidade, podendo, inclusive, ser afastada nas hipóteses de atraso no pagamento ou risco à segurança e à saúde dos trabalhadores (Lei n. 7.783/89, arts. 3º, § único, e 13)[ix]. O legislador também sinaliza no sentido de tutelar o trabalhador em face de atos antissindicais, notadamente eventual constrangimento por parte do empregador[x], inclusive na forma de rescisão do contrato de trabalho, bem como na contratação de trabalhadores substitutos[xi], salvo as hipóteses ressalvadas pela própria lei (arts. 6º e 7º). O Brasil é signatário da Convenção n. 98 da OIT. Portanto, comprometeu-se perante essa organização internacional a tutelar os trabalhadores em face de atos antissindicais, notadamente quando dificultem a negociação coletiva (arts. 1º e 3º). A demissão com o intuito de inibir a adesão ao movimento grevista configura ato antissindical e abuso de direito. A garantia de emprego estabelecida pela lei justifica-se para permitir ao trabalhador o livre exercício do direito.

O legislador também pretende tutelar o livre acesso e a integridade do estabelecimento do empregador, fundamento para a concessão de liminares em interditos proibitórios (art. 6º, § 3º). A esse respeito, como a greve representa o exercício de um direito e não a prática de um ilícito, não há que se admitir a utilização desse instrumento processual destinado à tutela da posse em face do esbulho ou turbação[xii]. Os interditos concedidos pelo Judiciário trabalhista configuram ato antissindical, tendo sido objeto de reclamação apresentada pelas Centrais Sindicais em face do Estado brasileiro perante a OIT. Essa denúncia também abrangeu o questionamento judicial pelo MPT das contribuições assistenciais[xiii].

Ainda sobre a postura do Judiciário diante da greve, a Constituição faz menção à conduta abusiva e não à “greve abusiva”. O abuso de direito em todas as esferas, e não apenas na greve, é fundamento para a responsabilização do autor. No conceito de abuso do direito de greve incluiu-se os atos de protesto que não configuram greve, tais como a sabotagem, o boicote, a violência contra o patrimônio, a agressão física e a obstrução da livre circulação de pessoas e de mercadorias[xiv].

A greve será declarada abusiva quanto desrespeitado o procedimento estabelecido pela lei, notadamente a inexistência de negociação prévia e da respectiva comunicação; ausência de assembleia, atos atentatórios à propriedade do empregador e aos demais trabalhadores; além da greve em atividade essencial na qual não sejam mantidos os serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade (Lei n. 7.783, art. 14). Ao tornar abusiva a greve após decisão da Justiça do Trabalho, contudo, a lei introduziu limitação não prevista pela Constituição[xv].

O direito de greve goza do status de direito fundamental juntamente com outros direitos sociais que integram o capítulo específico da Constituição. Trata-se, portanto, de um grande avanço no sistema jurídico brasileiro, destacando-se o mérito do legislador constitucional em assegurar expressamente um direito próprio das democracias modernas.

São 30 anos da Constituição Federal, cujo rol de garantias e direitos fundamentais está em perigo diante de uma pauta da austeridade construída a partir de princípios da razão neoliberal que se pretende impor em todos os países. As limitações impostas ao direito de greve demandam aos trabalhadores e às entidades sindicais a tomada de postura reivindicatória em prol da plena efetivação do direito. Não deve ser admitido qualquer retrocesso, sendo necessário a busca da progressividade dos direitos sociais nos termos definidos por tratados internacionais e pela Constituição de 1988.

Notas:

[i] Ver PORTELLA, O. Vocabulário Etimológico Básico do Acadêmico de Letras. 1984. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/letras/article/download/19320/12605> , acesso em 27 mai. 2018. Ver também < https://www.gramatica.net.br/origem-das-palavras/etimologia-de-greve/>. Acesso em: 31 mai. 2018.

[ii] Ver DIAS, H. Do direito de greve na OIT. 2014. In Brasil de Fato. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/node/29326/>. Acesso em: 21 jun. 2018.

[iii] NASCIMENTO, A. M. Compêndio de Direito Sindical. 4ª. Ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 411

[iv] OIT, A Liberdade Sindical. Recompilição de Decisões e Princípios do Comitê de Liberdade Sindical do Conselho de Administração da OIT. 1997, §§ 473-478.

[v] OIT, A Liberdade Sindical. Op. cit., §§ 479-480.

[vi] OIT, A Liberdade Sindical. Op. cit., §§ 486 e 492–495.

[vii] TST – RODC: 548 548/2008-000-12-00.0, Relator: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 09/11/2009, Seção Especializada em Dissídios Coletivos,, Data de Publicação: 27/11/2009. TST – RR: 487003920095020057, Data de Julgamento: 09/11/2016, Data de Publicação: DEJT 19/05/2017.

[viii] TST- DCG – 1000376-17.2018.5.00.0000, Relatora: MARIA DE ASSIS CALSING. Data de Julgamento:28/05/2018. TST – RODC: 4541362019985015555 454136-20.1998.5.01.5555, Relator: Valdir Righetto, Data de Julgamento: 14/06/1999, Seção Especializada em Dissídios Coletivos,, Data de Publicação: DJ 06/08/1999; TRT-3 – DCG: 00104449320175030000 0010444-93.2017.5.03.0000, Relator: Convocada Sabrina de Faria F. Leao, Secao de Dissidios Coletivos; TRT-7 – DC: 2893009120085070000 CE 0289300-9120085070000, Relator: REGINA GLÁUCIA C. NEPOMUCENO, Data de Julgamento: 02/12/2008, PLENO DO TRIBUNAL, Data de Publicação: 07/01/2009 DOJT 7ª Região; TRT-15 – DC: 660 SP 000660/1998, Relator: EDISON LAÉRCIO DE OLIVEIRA, Data de Publicação: 01/12/1999.

[ix] DE MELO, R. S. A Greve no Direito Brasileiro. 4ª. Ed. São Paulo: LTr, 2017.

No mesmo sentido, decisões do Comitê de Liberdade Sindical. OIT, A Liberdade Sindical. Op. cit., §§ 502 a 504.

[x] AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PETROBRAS. PRÁTICA DE CONDUTAS ANTISSINDICAIS. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE GREVE. I – A greve é direito social expressamente previsto na Carta Maior, em seu artigo 9º. Trata-se, portanto, de meio de autotutela, utilizado pelos trabalhadores, através do ser coletivo por eles constituído, o sindicato profissional, único modo de igualar a relação jurídica mantida com o empregador, aptos naturalmente a produzirem atos coletivos. Assim, é por excelência o modo de expressão dos trabalhadores, mecanismo necessário para que a democracia atinja às relações de trabalho. II- Nesse sentido, ao empregador não é dado impedir ou utilizar de meios que dificultem ou impeçam o exercício de tal direito, garantido constitucionalmente. […] (TRT-1 – RO: 00008915920115010203 RJ, Relator: Leonardo Dias Borges, Data de Julgamento: 15/01/2014, Terceira Turma, Data de Publicação: 23/01/2014).

[xi] […] Induvidosa a conduta antissindical praticada pela empresa recorrida, por violação direta dos mandamentos constitucionais que consagram a liberdade sindical (art. 8º) e o direito de greve (art. 9º), art. 1º da Convenção 98 da OIT, assim como ao art. 7º da Lei 7.783/89, que veda a contratação de trabalhadores em substituição aos grevistas, cabível a indenização por danos morais coletivos, observados os critérios das razoabilidade e proporcionalidade. […] (TRT-7 – RO: 00015253420135070004, Relator: MARIA ROSELI MENDES ALENCAR, Data de Julgamento: 22/02/2017, Data de Publicação: 23/02/2017). De acordo 316 do STF, a simples adesão à greve não constitui falta grave (Súmula 316).

[xii] OLIVEIRA NETO, A. E. Greve e Interdito Proibitório: Incompatibilidade entre instrumento processual destinado à tutela da posse e o livre exercício de direito fundamental de titularidade dos trabalhadores. In Revista MPT n. 41. São Paulo: LTr, 2011.

[xiii] Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/centrais-sindicais-apontam-oit.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2018.

[xiv] NASCIMENTO, A. M. Op. cit., p. 485.

[xv] DA SILVA, S. G. C. L. Relações Coletivas de Trabalho. Configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008, p. 238. No mesmo sentido, DE MELO, R. S. A Greve no Direito Brasileiro. 4ª. Ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 113.

Referências:

DA SILVA, S. G. C. L. Relações Coletivas de Trabalho. Configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.

DE MELO, R. S. A Greve no Direito Brasileiro. 4ª. Ed. São Paulo: LTr, 2017.

NASCIMENTO, A. M. Compêndio de Direito Sindical. 4ª. Ed. São Paulo: LTr, 2006.

DIAS, H. Do direito de greve na OIT. 2014. In Brasil de Fato. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/node/29326/>. Acesso em: 21 jun. 2018.

OIT – A Liberdade Sindical. Recompilação de Decisões e Princípios do Comitê de Liberdade Sindical do Conselho de Administração da OIT. Brasília, 1ª. Ed. 1997

OLIVEIRA NETO, A. E. Greve e Interdito Proibitório: Incompatibilidade entre instrumento processual destinado à tutela da posse e o livre exercício de direito fundamental de titularidade dos trabalhadores. In Revista MPT n. 41. São Paulo: LTr, 2011.

Alberto Emiliano de Oliveira Neto é procurador do Trabalho, mestre em Direito pela PUC-SP e doutorando pela UFPR.

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