O chamado da pandemia de Covid-19 a repensar a centralidade dos trabalhos de cuidado

Fotografia: ONU Mulheres

Estamos vivendo um período de crise capitalista que nos permite questionar as estruturas produtivas e reprodutivas.

Amanda Kovalczuk

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 03/05/2020

O movimento feminista vem, há tempo, sinalizando que a economia capitalista se constrói e se sustenta pelo uso de um tipo de trabalho invisibilizado, precarizado e essencialmente realizado por mulheres: o trabalho de cuidado. No plural, nos referimos aos trabalhos de cuidados na tentativa de retratar sua natureza múltipla. Eles se estendem, na sua forma remunerada ou não remunerada, da esfera doméstica – do cuidado da casa, das crianças, das pessoas idosas e com deficiência – ao trabalho de cuidado da saúde física, mental e social da comunidade.

A pandemia de Covid-19 chama atenção para a essencialidade das esferas de trabalhos de cuidado. Todas elas estão marcadas pela precarização associada a marcadores de classe, gênero e raça. No Brasil, no contexto de crise de saúde pública que vivemos, as desigualdades sociais definem quem tem o direito de preservar sua vida e quem é obrigado a se expor ao vírus para sobreviver. Sem a intenção de ignorar essa tragédia, contudo, me limito neste texto a comentar essencialmente o trabalho de cuidado doméstico – aquele que, na forma não remunerada, as mulheres realizam dentro da própria casa, e que, na forma (pouco) remunerada, uma grande maioria de mulheres negras realiza tanto na própria casa como na casa de mulheres brancas de classe média e alta – e sua relação com a epidemia que estamos vivendo.

Em primeiro lugar, devemos localizar a importância do cuidado para a sustentabilidade das atividades econômicas. Silvia Federici, feminista anticapitalista italiana, explica que é com base no trabalho de cuidado doméstico que o sistema capitalista se sustenta: o trabalho reprodutivo [1] não remunerado ou de baixa remuneração realizado dentro das casas é um trabalho conformado pelo e para o capital a fim de garantir a sua funcionalidade[2]. O setor de cuidados, conforme afirma Federici, é estatisticamente o maior nicho de trabalho do mundo. Apesar disso, segue não reconhecido, precarizado ou não remunerado.

A pandemia de Covid-19, ao se espalhar pelo mundo e congelar muitos setores produtivos, chamou a atenção àquele setor que seria impossível parar: o do trabalho reprodutivo. Enquanto os serviços não essenciais da economia foram em larga medida paralisados, ficou clara a essencialidade sem precedentes do trabalho de cuidado para a manutenção da vida e da própria economia capitalista. No momento em que os setores da sociedade brasileira amparados por direitos trabalhistas consolidados podem ficar em casa, se agravam as desigualdades que permeiam essa esfera.

Nesse contexto, as mulheres brancas de classe média e alta se veem obrigadas a encarar as limitações do feminismo liberal na medida em que, ao dispensarem as trabalhadoras a quem terceirizam o seu trabalho de cuidado doméstico – normalmente, outras mulheres negras e periféricas –, se veem em uma encruzilhada da qual julgavam haver-se livrado: ainda existe uma desigualdade importante na distribuição das tarefas de cuidado do lar e das pessoas que ali habitam.

As mulheres negras periféricas, por sua vez, se veem mais uma vez submetidas ao racismo e exclusão social que ameaça sua renda, sua saúde e suas vidas. Conforme estudos do Instituto Locomotiva, apenas 39% dos empregadores dispensaram serviços mas seguem remunerando as suas empregadas domésticas nos tempos de distanciamento social [3]. Além disso, na cidade de São Paulo, as mulheres adultas moradoras das periferias são as mais infectadas pelo coronavírus [4], padrão que deve se repetir em outros centros urbanos brasileiros. Ainda, dos 38% dos trabalhadores considerados altamente vulneráveis diante da crise desencadeada pelo Covid-19, 64% deles é composto por mulheres negras em trabalho informal[5].

Ignorar a relevância dos trabalhos de cuidado é ainda mais grave em contextos de crise sanitária e econômica, o que dificulta geração de soluções sustentáveis para sair dela. Quando a discussão sobre a flexibilização do distanciamento social teve início no âmbito do estado do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre, lançou-se um debate não apenas acerca do aumento do risco de disseminação do vírus e do número de mortes, mas também acerca das estruturas de cuidado. Com a autorização de retomada das atividades de indústria e construção civil na cidade, a deputada estadual Luciana Genro (PSOL/RS) acertadamente questionou os gestores públicos sobre quem seria responsável pelo cuidado das crianças com o retorno dos pais ao trabalho, tendo em vista que a educação segue suspensa [6]. Impôs-se, assim, pensar o trabalho de cuidado no contexto de crise sanitária e econômica. Os gestores perceberam que, ao pensar políticas que considerarem somente o trabalho produtivo, esqueceram-se da essencialidade do trabalho reprodutivo. Infelizmente, a resposta do prefeito Nelson Marchezan, em live na sua página no Facebook [7], foi de que os setores liberados possuem mão-de-obra essencialmente masculina e, portanto, as mulheres poderiam continuar responsáveis pelo cuidado das crianças em casa sem qualquer prejuízo. Nesse momento, além de ignorar a complexidade das diversas composições familiares, perdeu-se uma ótima oportunidade de visibilizar a importância das estruturas de cuidado e assumi-lo como trabalho de fato. Retratando-o como secundário para a superação da crise, perdeu-se também a oportunidade de romper com a naturalização do cuidado como uma tarefa essencialmente feminina.

Estamos vivendo um período de crise capitalista que nos permite questionar as estruturas produtivas e reprodutivas. O momento nos convida a reinventar o olhar para essas tarefas que, em essência, sustentam a vida. Também nos possibilita, talvez pela primeira vez, olhar de fato para aquelas a quem se relega a sua realização. Torço para que este também possa ser um convite à revalorização dos trabalhos e das trabalhadoras do cuidado. As feministas anticapitalistas vêm propondo uma aliança entre os questionamentos de classe e gênero há anos. Se atentarmos à complexidade do tema no cenário brasileiro, poderemos encontrar nas suas produções algumas respostas.

Notas

[1] O termo reprodutivo não diz respeito exclusivamente à reprodução da vida pela maternidade, mas sim à realização de tarefas que, pela teoria marxista, não foram reconhecidas como essencialmente produtivas no sentido industrial e assalariado realizado por uma maioria masculina. O trabalho de cuidado doméstico, que aqui trato como não remunerado ou de baixa remuneração, é parte da categoria de trabalho reprodutivo.

[2] FEDERICI, Silvia. El Patriarcado del Salario: críticas feministas al marxismo. Madrid: Traficantes de Sueños, 2018.

[3] “Coronavírus no Brasil: 39% dos patrões dispensaram diaristas sem pagamento durante pandemia, aponta pesquisa”, em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52375292.

[4] “Periferia lidera as mortes por coronavírus na cidade de São Paulo, e as mulheres adultas são as mais infectadas”, em El País, 18/04/2020.

[5] “Crise do coronavírus acentua desigualdade de gênero e cor, diz estudo”, em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/crise-do-coronavirus-acentua-desigualdade-de-genero-e-cor-diz-estudo.shtml.

[6] “Um plano temerário e que não leva em conta as famílias (por Luciana Genro)”, em Sul21, e episódio “Luciana Genro comenta sobre o plano de distanciamento apresentado pelo governador Eduardo Leite” no podcast Luciana Genro Comenta.

[7] Disponível em: https://www.facebook.com/nelsonmarchezan/videos/228842071546140/.

Amanda Kovalczuk é  doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS/UFRGS), mestra em Sociologia do Direito pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati, Espanha (IISJ) e bacharela em Direito pela UFRGS.

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