
O adoecimento mental tem sido um dos fenômenos mais marcantes da sociedade capitalismo, produto das suas contradições e da exploração de classe.
Michel Goulart da Silva
Fonte: Sul21
Data original da publicação: 13/10/2025
O adoecimento mental tem sido um dos fenômenos mais marcantes da sociedade capitalismo, produto das suas contradições e da exploração de classe, que se materializa em ansiedade, estresse, depressão, fobia social, desordens alimentares, automutilação, insônia, entre outras coisas. Os trabalhadores se veem pressionados pela exigência de manutenção ou mesmo ampliação da produtividade. O debate sobre saúde mental deve ser entendido como parte da realidade concreta da exploração capitalista.
Esse debate não pode estar limitado a fatores biológicos de indivíduos isolados, devendo estar articulados à dinâmica histórica e às contradições da sociedade. O ciclo vital do ser humano varia em diferentes épocas, a partir das condições materiais em que produz sua existência. Suas particularidades podem ser compreendidas inclusive no interior das diferentes classes sociais em uma mesma época e sociedade. Portanto, em última instância, a forma de produção e reprodução da vida em sociedade determina a saúde física e mental das pessoas.
Para pensar a saúde e a doença, é fundamental compreender as formas como se organiza o processo de trabalho e de produção de mercadorias e como isso impacta na vida das pessoas; essa compreensão permite entender como se adoece e se morre nas diferentes classes em determinada sociedade. Na lógica capitalista, o que determina ser saudável ou não é a capacidade do sujeito de trabalhar e manter-se produtivo.
Neste modo de produção, ser ou não saudável está relacionado ao desgaste da força de trabalho. Esse desgaste aponta elementos que extrapolam as análises focadas apenas nas causas imediatas do adoecimento, devendo abarcar também os impactos físicos e psicológicos do processo de trabalho, no médio e no longo prazo, que afetam a vida e até mesmo o cotidiano do trabalhador.
Nos últimos séculos o capitalismo passou por mudanças na forma de organização do trabalho. Essas formas de organização têm impacto também no cotidiano do trabalhador, como a perspectiva de controle inclusive sobre a vida privada. O fordismo buscava ampliar a produtividade nas fábricas, garantindo uma maior extração de mais valia, afetando até mesmo a subjetividade.
Nas últimas décadas, o que marca mais profundamente o processo de organização do trabalho é o chamado toyotismo. Essa forma de organização da produção tem como uma de suas características o chamado trabalho flexível, exigindo do trabalhador um maior engajamento no processo de produção, também afetando a sua subjetividade.
Diante do desgaste físico e mental, os trabalhadores sofrem com o medo de serem descartados. Suas condições física e psicológica, como a idade ou o desenvolvimento de doenças crônicas, podem se tornar um problema para a permanência no trabalho ou para encontrar um novo emprego, correndo o risco de ficar sem qualquer ocupação.
Para o trabalhador, o desgaste pode significar a expulsão do mundo da produção, afinal a exploração capitalista, ao exigir um determinado padrão de produtividade, seleciona os que suportam a sua intensidade, descartando aqueles que não sejam considerados úteis ou aptos. Essa é a base na qual se dá o avanço do adoecimento mental dos trabalhadores, afetando sujeitos de todas as idades.
O adoecimento mental pode se manifestar por meio de diversos sintomas e transtorno, normalmente associados entre si, tendo relação com as diferentes formas de organização do processo produtivo. Por exemplo, a fadiga sentida pelo trabalhador tem relação com diferentes dimensões de sua vida cotidiana, como o deslocamento para o trabalho, as tarefas domésticas, questão de moradia, o acesso à educação, à alimentação e à saúde, entre outros. Não é possível analisar esses fatores de forma isolada.
Um doença que aparece constantemente entre os trabalhadores é a depressão, associada ao desânimo em relação à realidade e à própria vida, fazendo com que a pessoa perca a vontade não apenas de agir, mas até mesmo de ter qualquer interação com o mundo que a cerca. Não se trata de um mero desânimo diante de uma situação adversa momentânea, mas de um estado que se torna frequente ao longo de semanas meses ou mesmo anos, que tem implicações físicas e mentais, podendo afetar a pessoas de diversas formas.
Outro transtorno mental comum é a ansiedade, relacionada ao sentimento de angústia, em que a pessoa se vê impotente diante de uma realidade que o oprime. A ansiedade pode ser caracterizada como uma carga de energia emocionalmente bloqueada, que gera tensões internas e se manifesta por meio de sintomas físicos e emocionais.
Um elemento que se relaciona a todos esses sintomas e transtornos é o estresse. Trata-se de um conjunto de reações do indivíduo diante dos problemas com os quais precisa lidar em seu cotidiano, provocando nervosismo, tristeza, apatia, entre outras coisas. O acúmulo desses sentimentos pode provocar uma diversidade de reações fisiológicas e psíquicas, que levam ao esgotamento.
Embora normalmente diagnosticadas de forma separada, é perceptível que a depressão, a ansiedade e o estresse, entre outras formas de adoecimento, estão relacionados entre si, podendo ser não apenas a causa de uma ou outra, mas também uma possível manifestação de agravamento. Embora se busque muitas vezes diagnosticar de forma separada sintomas e doenças de seus contextos, inclusive pode-se acreditar que os transtornos psíquicos possam ser dissociados da realidade concreta.
Uma das respostas mais comuns ao sofrimento e ao adoecimento é o uso de drogas, não apenas como uma saída individual, mas também como recomendação de profissionais da área médica. Esse cenário fica ainda mais complexo na atualidade, diante da massificação e da diversificação dos tipos de drogas. O uso recreativo se consolidou como uma resposta do indivíduo diante dos problemas e dificuldades a que está submetido. Contudo, diante da sua fragilidade psíquica, o consumo de drogas, se mantida sua regularidade, pode levar ao abuso e ao vício. O álcool e outras drogas legalizadas são de fácil acesso, tendo se tornado parte do cotidiano da sociedade.
No caso dos remédios, seu uso pode ser recomendado como parte de um tratamento terapêutico mais amplo. Contudo, o que se vê são médicos recomendando de forma indiscriminada remédios, bem como a ação dos mais variados laboratórios, que fabricam todo o tipo de drogas que afetam a mente das pessoas. Dessa forma, são criados de forma intencional dependentes de drogas legalizadas, que aceitam esse tipo de tratamento diante da promessa de resposta rápida aos sentimentos de angústia ou mesmo de desespero a que estão submetidos. Se num primeiro momento há uma sensação de melhoria, no médio e longo prazo fica evidente que seu efeito é efêmero e que somente será possível manter esse estado caso se amplie o consumo desses ou de outros medicamentos, levando ao vício.
Essas pessoas acabam sendo jogadas para outra doença, a da dependência química de substâncias que alteram seu comportamento. Isso tem uma dupla causa no capitalismo, que, primeiro, leva as pessoas ao adoecimento e, depois, apresenta as drogas como uma resposta positiva, assim criando a dependência. Esse não é um problema individual, que o trabalhador deve encarar sozinho, mas algo que deve ser enfrentado pela sociedade de conjunto.
Muitas pessoas encontram nas drogas, tanto as legais como as ilegais, uma forma de se manter produtivas. Não é incomum que até mesmo combinem dois tipos de remédios para reverter os efeitos um do outro. Diante das pressões da sociedade capitalista, esses trabalhadores são arrastados a alcançar a qualquer custo a produtividade exigida e almejar a felicidade fetichizada, pagando com isso o preço de desenvolver todo o tipo de doenças.
Para começar a resolver o problema do adoecimento da classe trabalhadora, não resta outra coisa que não seja atacar sua causa, ou seja, é preciso construir uma nova sociedade, governada pelos trabalhadores. Essa nova sociedade somente poderá ser construída a partir de uma profunda transformação que coloque no horizonte o interesse do conjunto dos trabalhadores, fazendo uso do conhecimento científico acumulado pela humanidade e utilizando-o para o fortalecimento coletivo.
Contudo, um primeiro obstáculo para que se possa caminhar no sentido dessa solução passa justamente pelo fato de que uma das consequências do adoecimento físico e mental das pessoas é o abandono de quaisquer perspectivas de futuro, optando não por saídas de longo prazo, mas por soluções mais imediatas (consumo de drogas, individualização da culpa, suicídio, entre outras coisas). Certamente não se trata de um erro procurar amenizar os sofrimentos provocados pela sociedade capitalista e sua fábrica de misérias. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso lutar contra perda do senso de coletividade e a busca de soluções baseadas no individualismo.
Uma nova sociedade, em que o trabalho não seja um pesado fardo carregado pelas pessoas, pode ser um primeiro passo para que se possa viver uma vida mais saudável. Um novo mundo precisa ser construído, em que seja possível superar a miséria e o adoecimento, mas, para tanto, é fundamental que os trabalhadores transformem a realidade e se empenhem na luta pelo socialismo, superando, assim, as sequelas que a miséria capitalista impõe cotidianamente.
Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC). Autor do livro “Golpe e ditadura em Santa Catarina”