por Igor Natusch
Nos últimos anos, o Brasil tem conseguido, ao mesmo tempo, encolher e andar para trás. Apesar das frequentes (e nunca concretizadas) promessas do ministro Paulo Guedes e de sua equipe, o país vive uma situação de decrescimento econômico, que não dá sinais de que vá arrefecer. Defendida de forma incansável por setores ligados ao grande capital, a adoção de reformas que precarizam direitos e a privatização de empresas públicas simplesmente não traz os efeitos prometidos – e a solução é sempre propor mais reformas, mais privatizações, em um processo de desmonte que parece não ter limites. O efeito sobre a classe trabalhadora, infelizmente, é trágico: mesmo os que têm carteira assinada precisam correr atrás da máquina, buscando do jeito que dá os recursos que o permitam escapar da fome e do endividamento sem fim. Tudo isso, é claro, permeado por um esfacelamento das instituições democráticas, em um cenário ruim e que não aponta para um 2022 muito melhor.
Diante de uma situação quase inimaginável de decadência, é preciso buscar, nas mentes que pensam e compreendem o momento presente, as pistas para a construção de um novo possível. Economista e professor da Unicamp, Marcio Pochmann falou ao Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT sobre os muitos aspectos negativos que cercam, neste momento, o cenário econômico brasileiro e sua inserção nas dinâmicas globais – mas também apontou os rompimentos necessários e os caminhos que se apresentam para escapar do que descreve como “desistência histórica” das elites brasileiras com relação ao próprio país.
DMT – Após o golpe contra Dilma Rousseff em 2016 e a ascensão de Michel Temer ao poder, ganhou força a implementação de um programa severo de venda de empresas públicas e de “reformas” que precarizam setores e direitos. Algo que estava desenhado na Ponte Para o Futuro do MDB, aliás, e que foi feito em aliança declarada com setores que, até então, eram de oposição, como o PSDB. Como você descreveria as consequências dessa guinada? Onde esse projeto colocou o Brasil?
Marcio Pochmann – Nós estamos em um movimento de decadência acelerada no Brasil. Há dez anos, o Brasil se encontrava entre as seis principais economias do mundo; hoje, nos encontramos quase na décima-terceira posição. Começamos a década passada relativamente bem, conseguindo combinar crescimento econômico e amplitude democrática, mas, na metade de década, sofremos um processo de inflexão, porque, basicamente, ao invés do crescimento, nós passamos a ter um decrescimento econômico. Em 2019, a economia estava três pontos percentuais abaixo do registrado em 2014; a pandemia agravou isso, nos levou a sete pontos percentuais abaixo de 2014 e possivelmente este ano (2022) a esperada retomada econômica não acontecerá. É um período de sete anos sem crescimento econômico, algo inimaginável na história republicana do país.
Ao invés de inclusão social, nós estamos vendo um processo de exclusão, o retorno da fome, da pobreza. As nossas grandes cidades, especialmente nos seus centros, estão vivendo o aumento dos moradores de rua. E, não bastasse isso, há uma espécie de asfixia na democracia brasileira. Essa situação, de certa maneira, decorre da perda da capacidade brasileira de voltar a crescer, e resulta em uma espécie de descolamento do consumo dos ricos em relação à capacidade de produzir internamente. Estamos dependendo cada vez mais da importação para atender o consumo dos ricos, e se financia isso através da exportação de produtos primários – algo que já havíamos vivenciado no Brasil, praticamente até o início da década de 1930.
DMT – Teríamos então, nesse sentido específico, um retrocesso de uns bons 80 ou 90 anos…
Marcio Pochmann – Pois é, e essa situação decorre da ausência de crescimento econômico e, especialmente, de um processo de desorganização do sistema produtivo. Não é apenas desindustrialização, mas o próprio sistema produtivo se perde em função do fato de termos desorganizado a economia nacional.
DMT – E esse processo vem sendo promovido em nome de quê? Pergunto porque os índices de desemprego não caem, as promessas de melhora nas condições de vida não se concretizam, o “crescimento em V” prometido pelo ministro Paulo Guedes nunca vem… Quem se beneficia desse cenário de decadência?
Marcio Pochmann – A impressão que eu tenho é de que há uma desistência histórica, em especial por parte das elites nacionais. Essa desistência parte de uma espécie de realismo periférico, ou seja, o entendimento de que o Brasil não tem condições de seguir em frente com seu protagonismo, algo que se tentava estabelecer desde o começo deste século, com os governos do PT. O Brasil teria, então, que abandonar esse protagonismo e aceitar uma posição secundária, dependendo fundamentalmente de outros países, em especial dos Estados Unidos. Quando falo em desistência histórica, me refiro a essa perda de capacidade de se posicionar como protagonista, em especial neste momento em que temos um deslocamento do centro dinâmico do mundo do ocidente para o oriente, com a China, a consolidação da rota da seda etc. É um novo cenário, no qual o Brasil vinha inclusive se posicionando, a partir da sua presença nos Brics, por exemplo. E isso tudo foi abandonado.
DMT – Existe uma parcela (não muito ampla, é verdade) da opinião pública que defende que Michel Temer armou o caminho para uma retomada segura do crescimento no Brasil, e que Bolsonaro teria “estragado tudo” com sua incompetência, por assim dizer. O senhor acredita que essa leitura dialoga com a realidade? Houve, de fato, um rompimento?
Marcio Pochmann – Olha, eu não vejo diferença entre o governo Temer e o governo Bolsonaro. Há, talvez, uma radicalização do governo Temer (com a chegada de Bolsonaro). As bases daquilo que nos foi apresentado com o nome pomposo de Ponte para o Futuro vinham a partir de um diagnóstico de que os problemas do Brasil resultavam de termos um Estado pesado, incompetente, corrupto, ineficiente. Então, a partir dessa leitura de que o Estado era o problema, as medidas foram tomadas no sentido de contrair esse Estado. Foram retomadas as privatizações, as reformas avançaram, e ao mesmo tempo (foram tomadas medidas como) a Lei do Teto, essa impossibilidade por 20 anos de gastos operacionais do Estado aumentarem – a única autorização, claro, é o gasto financeiro, esse não tem nenhum limite. Esse diagnóstico não foi alterado, e me parece que Bolsonaro inclusive aprofunda essa perspectiva de que o Estado é o problema: continuaram fazendo reformas, Bolsonaro fez a reforma previdenciária e há várias outras que o governo vem tentando fazer.
A questão que me parece interessante é que, do diagnóstico, foram geradas promessas. Foi defendido que, se diminuir o Estado, o setor privado volta a crescer espontaneamente, ocupando o espaço daquele Estado corrupto e ineficiente. Que a retirada de direitos – a redução do custo do trabalho por exemplo – faria com que as empresas voltassem a crescer, porque as empresas estariam ávidas para contratar trabalhadores, mas não contratava porque os trabalhadores custavam muito. Se a gente toma 2014 como referência, o custo-trabalho horário na indústria brasileira equivalia a 36% do que era nos EUA, e esse valor equivalia a praticamente duas vezes o que era o custo-trabalho horário na China. O último dado que está disponível, de 2019, mostra que esse custo no Brasil passou a ser de 24% do registrado nos EUA e, ao mesmo tempo, temos hoje um custo-trabalho horário igual ao da China. Ou seja, houve uma redução perceptível – e, como sabemos, a promessa de geração de empregos não se concretizou.
Então, o diagnóstico está equivocado, e os resultados são profundamente frustrantes. Se nós tivéssemos um Congresso Nacional atento à realidade brasileira, caberia fazer uma análise sobre a política adotada, porque quem autorizou essa política foi, em última análise, o próprio Congresso. Foi ele quem validou a reforma previdenciária, a Lei de Tetos e assim por diante. Se fizesse uma avaliação – e não faz porque não quer – essa análise demonstraria que houve um erro. E, constatado o erro, é óbvio que seria necessário reformular, refazer, voltar ao começo. A gente lida com um governo e um Congresso que não fazem avaliação de políticas públicas, que tomam decisões e depois esquecem o que fizeram.
DMT – A atual equipe econômica deu sinais numerosos de que não leva as camadas mais pobres da população em consideração na hora de formular suas políticas. Deu inclusive declarações de caráter claramente preconceituoso, do tipo “empregada doméstica indo para Disney”. O quanto há de ideológico nesse processo de fragmentação econômica, na sua visão? Talvez o Brasil esteja, por assim dizer, refém de uma visão ideológica de mercado que se recusa a admitir a própria ineficácia?
Marcio Pochmann – Veja, nós já estamos há seis anos, desde 2016, com uma equipe econômica dos sonhos do mercado financeiro. E, nesse período, o que temos visto? Houve um endividamento profundo das famílias, que chega aos 75%: a cada quatro famílias, apenas uma não está endividada. E em 2014, esse número era de 44%, ou seja, nem metade das famílias estavam endividadas. O lucro dos bancos cresceu, em um cenário em que há, como falamos, um decrescimento econômico. Nós nos transformamos em um país que aprofunda o subdesenvolvimento, na medida em que a riqueza não aumenta, mas aumenta o número de ricos, de milionários. Isso só é possível porque, se você tem famílias que estão sofrendo uma captura de sua renda por meio do endividamento, isso serve a determinado segmento financeiro e bancário que, digamos assim, conduz o país. Mas não é somente isso, há setores como o agronegócio que têm ido muito bem. Nós nos transformamos no segundo maior exportador de alimentos do mundo, mas, simultaneamente, tem crescido o número de famílias brasileiras com fome, que não têm o que comer.
Fizeram reformas no Brasil, mas não mexeram naquela que me parece ser a questão central, que é a questão tributária. Num Brasil em que não aumenta a riqueza, mas aumenta o número de milionários, quanto mais dinheiro você ganha, menos imposto você paga. É um sistema tributário praticamente todo assentado nos segmentos de menor renda, que são os que, proporcionalmente à própria renda, pagam mais impostos. É esse tipo de paradoxo que está se criando no Brasil, a partir da insistência em um diagnóstico equivocado para os problemas do país.
DMT – Há um elemento discursivo nisso, não? E que se mantém, mesmo que a conta nunca feche: se privatizar, a economia cresce, se precarizar direitos trabalhistas, vamos ter mais emprego… Nunca acontece, e a solução é sempre insistir um pouco mais, aprofundar um pouco mais as reformas, como se estivéssemos sendo punidos por não precarizar o suficiente.
Marcio Pochmann – Esse discurso não é novo. Se voltarmos aos anos 1990, ele segue o mesmo de lá para cá, sem tirar nem pôr. A diferença é que, nos anos 1990, havia, dentro desse discurso ideológico, uma perspectiva de que, tirando o Estado da atividade industrial, sobrariam mais recursos para o Estado investir no social. Seria, então, uma espécie de recomposição do Estado, na medida em que se entendia, ou ao menos se explicitava, que o setor privado poderia exercer as atividades do setor público em melhores condições, com melhores resultados e assim por diante. Essa batalha foi perdida. Então, o que se nota nos mais recentes governos brasileiros é que foi abandonado o discurso de que o setor privado é melhor do que o setor público; agora, o que se diz é que o Estado gasta demais, que é preciso reduzir esse gasto, e que para isso é preciso privatizar e reduzir a presença do Estado. Mas quem está comprando as empresas estatais privatizadas não são mais empresas privadas: são empresas estatais de outros países.
Em 2005, das 500 maiores empresas do mundo, 5% eram estatais; em 2020, são 45%. Houve uma mudança, sobretudo a partir da crise de 2008 e 2009. Ao mesmo tempo, países estão usando seus fundos soberanos para comprar empresas privadas e também entrar nesse sistema de privatização. Por exemplo, essa última privatização da refinaria Landulpho Alves, na Bahia: quem comprou foi um fundo soberano dos Emirados Árabes. Ora, um fundo soberano, nesse caso, nada mais é do que uma empresa estatal. Então, não temos mais o discurso ideológico de que o setor privado vai fazer melhor, até porque há um questionamento – e o Brasil, infelizmente, parece ser um ponto fora da curva – que leva vários países a um processo de reestatização. Porque as empresas privadas não conseguiram cumprir aquilo que prometiam, que era a redução de preços e tarifas, oferecer um serviço de maior qualidade e fazer os investimentos necessários. Isso, de maneira geral, não ocorreu. Sei que há exceções, mas é isso, de modo geral, que tem justificado que serviços de distribuição de água, de luz, de gás voltem a ser estatizados em vários países.
DMT – Enquanto ouvia o senhor falar, fiquei pensando: o quanto desse andar na contramão do Brasil, no que se refere às privatizações, reflete em precarização da classe trabalhadora e no aumento das desigualdades?
Marcio Pochmann – Aqui no Brasil há uma coisa interessante: se você olhar para esses novos ricos, esses que são citados nas revistas especializadas, vai ver que se tratam, em sua maioria, de empresários que compraram empresas privatizadas, em uma espécie de mercantilização dos serviços públicos no Brasil. Você pega setores como a educação e a cobrança de pedágios e vai observando que os novos ricos são vinculados a esses setores, que eram monopólios estatais e foram deslocados para o setor privado. E os investimentos (previstos nos contratos de concessão) não ocorreram, as tarifas – de água, pedágios e telefonia, por exemplo – estão entre as mais altas do mundo, no caso brasileiro.
Enfim, estamos diante de um país que não aumenta riqueza, mas que aumenta o número de ricos. E, do ponto de vista ocupacional, o que a gente vai vendo é a geração de uma massa de população sobrante a servir aos próprios ricos. Desde trabalhadores generalistas – passeador de cachorro, piscineiro, domésticas, mordomos, motoristas, baby sitter etc – até profissionais do mais alto nível: há médicos especializados em tratamentos que somente ricos podem pagar, odontólogos, hospitais de luxo. Houve uma espécie de elitização dos serviços brasileiros: você tem serviços bancários especializados para quem tem renda mais alta, você tem o conceito de cliente vip nas empresas aéreas, você tem serviços de táxi e de transporte individual com mais conforto e tarifa mais alta. É uma apartação da sociedade que foi se tornando cada vez mais consolidada, porque é claro que, nesse processo, você vai limando os pobres: restaurante de luxo, hospital de luxo, escolas de luxo, tudo isso vai demarcando o tipo de sociedade que nós temos, e que é consequência dessas escolhas todas que foram feitas.
DMT – O Brasil foi um dos principais proponentes, em escala global, da ideia de que era preciso seguir trabalhando durante a pandemia. Foi adotado, pelo governo federal, um discurso de que era preciso cuidar da saúde e da economia ao mesmo tempo – uma forma, na verdade, de dizer que a economia deveria seguir funcionando, em detrimento da saúde da classe trabalhadora. Qual foi o efeito dessa postura, e o quanto ela deixou ainda mais dramática uma situação que já era bastante desfavorável ao Brasil?
Marcio Pochmann – Certamente, o balanço ainda deverá ser feito em melhores condições, mas os balanços preliminares demonstram que o Brasil, com população inferior a 3% do total mundial, chegou a ter 12% das mortes do mundo. Só esse dado já identifica que atuamos muito mal nesse sentido. Não soubemos nem mesmo aproveitar o que a tecnologia nos oferece, como fizeram, por exemplo, os países orientais: pelo celular, você pode monitorar quem está com o vírus, fazer um isolamento focado, ao invés de em larga escala. Ou seja, nós entramos muito mal na pandemia, e esse argumento de que a economia não podia parar fez, na verdade, com que tivéssemos um resultado bastante desfavorável em termos econômicos. O Brasil perdeu 4,1% do PIB, destruiu muito emprego etc. O que estamos vendo agora, que já temos um avanço na quantidade de pessoas vacinadas, é que a economia (brasileira) não reage. Isso indica claramente que vamos ser considerados um caso global de fracasso do ponto de vista de enfrentamento desta pandemia. E vale dizer que, segundo os estudiosos, (a pandemia de covid-19) não se trata de um ponto isolado no tempo, como a gripe espanhola, que aconteceu em 1918 e não se repetiu – mas que (o novo coronavírus) seria uma pandemia de outras tantas que virão pela frente, dado a devastação ambiental, o novo regime climático, o antropoceno e assim por diante. Infelizmente, não soubemos nos posicionar diante desse risco.
Ao mesmo tempo, a forma como o Brasil está inserido nas cadeias globais de valor nos coloca em uma posição defensiva e muito vulnerável a crises como essa. Nós ainda hoje seguimos com a indústria automobilística enfrentando sérios problemas de produção, porque não temos os microprocessadores – e o Brasil montou uma empresa de microchip, aí no Rio Grande do Sul, que está sendo inviabilizada ao ponto do fechamento. É um sinal de que precisaríamos ter políticas de substituição de importações. Mas seguimos sendo um país sem plano governamental, sem estratégia nacional, o orçamento virou uma coisa parcialmente secreta, e estamos vivendo os efeitos disso tudo.
DMT – Queria falar a respeito do efeito que esse quadro todo tem sobre o ânimo da classe trabalhadora. Porque se fala muito que o povo não “reage”, que está “apático”, mas essas mesmas pessoas estão submetidas a uma situação de terminar o dia sem ter certeza se vão pagar suas contas, se vão conseguir comprar itens de subsistência… Num cenário desses, o próprio conceito de cidadania sai ameaçado. Qual a dimensão dessa pressão sobre trabalhadores e trabalhadoras, e quais os efeitos que se pode esperar para o conjunto da sociedade brasileira?
Marcio Pochmann – A impressão que tenho é que estamos assistindo uma alteração profunda na relação salarial. A partir de 1930, com Getúlio Vargas, se estabelece um projeto de sociedade que visa, na verdade, a construção de uma sociedade salarial no Brasil. Nós tínhamos uma população sobrante enorme, que o Caio Prado denominava de “inorgânicos”, porque não eram orgânicos ao capital. E o projeto tenentista foi transformar essa massa de trabalhadores inorgânicos, sobretudo do campo, em proletários urbanos organizados através da carteira de trabalho, que lhes dava identidade e pertencimento. Então, a relação salarial a partir de uma regularização de trabalho, que lhe dá direitos e a garantia de renda acima do salário mínimo, teria como efeito permitir que você saísse da condição de pobre ou miserável e participasse de forma mais ativa da sociedade. A impressão é que nós estamos – e isso vem desde os anos 1990; lembremos que o próprio Fernando Henrique Cardoso declarou o fim da Era Vargas – vivenciando o abandono dessa relação salarial em favor da relação débito-crédito.
Você estava comentando das pessoas com salário muito baixo, vivendo em situação de instabilidade e desespero. Acontece que todo mundo sabe mais ou menos o tamanho de sua dívida mensal, ou seja, que esse mês vou gastar tanto com aluguel, alimentação, transporte, enfim. E o que me parece é que o salário, para aqueles que o têm, depreciou-se a um ponto que, mesmo sendo assalariado, você não consegue sair da condição de pobreza. Então, essa relação débito-crédito quer dizer que, a partir da dívida que eu tenho no mês, eu saio para obter crédito, seja de que forma for ou quais sejam as condições para que isso venha a ocorrer.
Nós estamos assistindo um aumento absurdo da jornada de trabalho, a partir de ocupações e atividades parciais. Dependendo do caso, eu trabalho na Uber doze horas por dia, à noite trabalho como segurança de um restaurante, no final de semana trabalho como entregador ou vendedor de produtos de embelezamento… Ou seja, faço umas 70 ou 80 horas de trabalho por semana, porque estou atrás de uma renda que me dê crédito para fechar o meu débito. E o que estamos vendo é que a separação que antes existia entre trabalho legal e a ilegalidade desaparece, na medida em que a ilegalidade vai contaminando essa relação – e não é porque a pessoa queira, é porque é a forma que ela encontra para fechar o seu débito. Estou em minha casa, comprei um produto pela internet, a pessoa vem me entregar no domingo e me diz “olha, eu sou agente de saúde de segunda a sexta, no sábado e domingo eu sou entregador”. A pessoa apresenta um cartãozinho, dizendo “eu sou segurança, mas eu posso cortar a grama, posso ser motorista, eu faço de tudo”. O que você é, afinal? Eu sou qualquer coisa. Ou seja, o trabalho segue central em nossas vidas, mas ele não produz mais identidade e pertencimento.
DMT – Em uma conjuntura na qual os empregos criados são cada vez mais precários e com menos direitos, algo que parece fundamental é buscar alguma forma de proteção para os trabalhadores e trabalhadoras submetidos a essa situação. Talvez a via do emprego formal esteja prejudicada no atual cenário, mas o senhor acredita que há uma alternativa dentro de conceitos como economia solidária, cooperativas etc?
Marcio Pochmann – Eu acredito que há espaço no Brasil para expansão do emprego assalariado protegido, inclusive com carteira assinada. Neste momento, como o país está decrescendo, não há como criar emprego, mas, se voltarmos a crescer… O Brasil é um país em construção, em tudo, são atividades que precisam ser construídas e que poderiam perfeitamente gerar um impulso de empregos assalariados. Mas, obviamente, não devemos descartar outras possibilidades de ocupação, não apenas em termos de economia solidária, mas em outras proposições que surgem a partir do avanço tecnológico. Há registro de que a adoção da tecnologia 5G, por exemplo, permite, em países como a China, que pequenos produtores do interior façam a divulgação do que produzem e, a partir disso, consigam exportar. Ou seja, conseguem eliminar o intermediário, que hoje fica com parte expressiva da renda. Está se falando mais, ultimamente, em cooperativismo de plataforma. O que estou querendo chamar a atenção é que a economia solidária, nos anos 1990, era vista como uma forma de resistência ao desemprego – tanto que nos anos 2000, quando a oferta de emprego aumentou, ficou mais difícil manter ativas as experiências de economia solidária. O que me parece agora é um pouco diferente: a economia solidária pode ser não apenas uma resistência, mas também uma alternativa e uma forma de associação e renda conectada às novas tecnologias.
DMT – Como o senhor colocou, o Brasil está em construção. E, se olharmos para a história brasileira, veremos que quase tudo que se construiu em termos de país passou por uma atuação do Estado, enquanto promotor de desenvolvimento. Nesse sentido, qual o papel do Estado e da empresa pública no momento que vivemos? Existe saída do buraco em que estamos sem a presença de empresas públicas sólidas?
Marcio Pochmann – De fato, nós estamos cancelando a possibilidade de futuro do país. Hoje, somos um país sem futuro, à espera de um milagre, vivendo o espontaneísmo pleno. Recuperando a história, o que acontece, por exemplo, é que nós vivemos uma era agrária até 1920 ou 1930, mas desde os anos 1810, praticamente, ingressamos também na era industrial: o país continuou sendo agrário, mas a sua elite começou a ter acesso aos bens industriais, de forma muito gradual e seletiva. Em 1815, o Brasil instala o primeiro motor a combustão para o esmagamento de cana de açúcar na Bahia; o Brasil foi o segundo país a ter o telégrafo, o segundo a ter telefone, Santos Dumont andou com um automóvel em 1891, um ano depois da França produzir automóveis. Ou seja, nós já estávamos na era industrial, mas como um país comprador, financiando essas compras a partir da exportação de produtos primários. O que nos permitiu estabelecer de fato uma sociedade industrial foi a construção de um Estado industrial, a partir de 1930, voltado à industrialização, dentro do projeto urbano e salarial do qual falávamos anteriormente.
O Brasil era um país produtor de computadores nos anos 1980, e nós jogamos isso fora. Foi feita recentemente a licitação do 5G no Brasil, e isso é como se o país tivesse ido ao supermercado comprar um produto. Temos praticamente quatro quintos da população com acesso muito limitado à internet, às vezes por cerca de 20 dias no mês, nos pacotes que conseguem comprar.
A minha impressão é de que não vamos superar essa fase se não fizermos uma re-modernização profunda do Estado. Nós precisamos de um Estado digital, e isso quer dizer que o Estado que temos hoje não serve, precisa ser um Estado com uma profunda modificação. Mas para isso é preciso ter ideias, é preciso ter projeto, é preciso ter pessoas que defendam isso. Não é apenas dizer que não pode avançar a liberalização do país, porque o Estado atual é insuficiente para essa tarefa. É preciso avançar na proposição de um projeto de país, que leve em conta essa necessidade de construir um Estado digital.
Gostei muito, vem de encontro ao que penso.