O Governo Federal tem falado muito sobre ‘reorganizar’ os programas sociais e para isso tem defendido a criação do Auxílio Brasil. Embora o programa seja apresentado como novo, é como um requentado do Bolsa Família. Para o sociólogo Rafael Osório, a grande questão de fundo é apenas desvincular um programa que foi interessante na redistribuição de renda aos governos petistas, principal alvo dos bolsonaristas que já miram as eleições do ano que vem. “O Auxílio Brasil é vento. Nada saiu do papel até agora. A lógica é claramente a do ‘rebranding’”, enfatiza.
Osório, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, observa que “o Bolsa Família mostrou que o Governo hoje tem os instrumentos para promover a redução das formas mais extremas de pobreza muito rapidamente. Basta aumentar a transferência para quem já participa do programa e garantir a inclusão dos novos pobres em momentos de crise”. Mas reconhece que isso não é o suficiente. “É preciso que as outras políticas – educação, saúde, moradia, segurança pública e transporte, principalmente – funcionem e estejam de olho na população mais pobre, os inscritos no Cadastro Único”, completa.
Segundo ele, há ainda uma espécie de perda de foco do atual governo, pois, em meio à crise, o discurso são de reformas pouco efetivas enquanto se estimula a população que perdeu emprego e renda a se reinventar, como se fosse possível criar na crise. “Fala-se muito em estimular o empreendedorismo, mas o Brasil não dá chance alguma à emergência de talentos da base da pirâmide”, observa. “Enquanto o jovem passar o dia inteiro para lá e para cá entregando comida para os 10% que conseguem pedir em casa, não vai aprender, se aperfeiçoar para arranjar um bom emprego ou empreender”, analisa.
Assim, para o sociólogo o foco deve ser a redistribuição de renda e assegurar proteção aos mais pobres. “A transferência por pessoa deveria ir para algo entre de R$ 250-300, que é a zona de valores que está sendo pensada por família. Para financiar isto, é preciso desmontar programas que não são tão bem focalizados quanto o Bolsa Família e redirecionar seus recursos”, defende. E, sobre uma ideia de renda básica universal, observa: “poderemos ter uma renda universal no futuro, mas enquanto não formos um país rico, um benefício básico universal implica não dar o suficiente para os pobres para incluir as classes médias e os ricos”.
Rafael Guerreiro Osório possui graduação em Ciências Sociais, mestrado em Sociologia e doutorado em Sociologia, todas titulações pela Universidade de Brasília – UNB. Atualmente é pesquisador da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, e também do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo.
Confira a entrevista.
IHU – O Brasil já vinha acumulando perdas e índices de empobrecimento da população, situações que a pandemia agudizou. Quais os desafios para recuperar essas perdas?
Rafael Osório – Embora a pandemia tenha certamente piorado tudo, é uma piora conjuntural em cima de problemas que já possuíamos. Mesmo antes da pandemia, em vez de decisões que nos colocassem na direção certa, as decisões foram no rumo contrário. Por exemplo, um dos grandes problemas que temos está na tríade alta desigualdade, baixo ou nenhum crescimento, baixa produtividade do trabalho.
Fala-se muito em estimular o empreendedorismo, mas o Brasil não dá chance alguma à emergência de talentos da base da pirâmide – não têm acesso à treinamento, a crédito para empreender; o emprego formal recrudesceu e surgiram formas precarizadas de emprego, como as plataformas eletrônicas. Enquanto o jovem passar o dia inteiro para lá e para cá entregando comida para os 10% que conseguem pedir em casa, não vai aprender, se aperfeiçoar para arranjar um bom emprego ou empreender.
Há também o problema da falta de recursos conjugado à apropriação do pouco que existe para finalidades que não representam exatamente o bem comum. O mundo se ressente da falta de chips de computadores, e o governo fecha a empresa estatal que foi criada como uma semente para o desenvolvimento desta capacidade. Veta-se uma política de distribuição de absorventes pelo SUS que não custaria quase nada, falta dinheiro para a produção de medicamentos radioativos, corta-se o orçamento da ciência, mas no orçamento secreto parlamentares da base do governo levaram individualmente em emendas paroquiais o suficiente para custear estas ações por anos. Os mais ricos pagam relativamente menos impostos que os pobres e recebem de várias formas muito mais subsídios do Estado – por exemplo, para o Agronegócio não falta crédito e depois o perdão das dívidas.
Liderança política
Políticos que pensam apenas no próprio umbigo não são novidade e sempre existirão. Não é possível sair deste nó sem boa liderança política. Nas últimas décadas, o Brasil só avançou quando o presidente da República conseguiu entusiasmar a população, FHC na esteira do Plano Cruzado e da estabilização econômica, e depois por mais tempo com Lula. Os problemas que temos hoje já tínhamos nestes períodos, a farinha também era pouca o que havia de diferente era a disposição para garantir pirão para todos.
IHU – Como analisa a concepção do Auxílio Brasil?
Rafael Osório – O Auxílio Brasil é vento. Nada saiu do papel até agora. A lógica é claramente a do “rebranding”. Não há nada de fundamentalmente diferente no núcleo do programa, é apenas um gancho para mudar o nome do programa e apagar a vinculação do mesmo com os governos do PT.
IHU – O que o aproxima e o que distancia o Auxílio Brasil de concepções do Bolsa Família?
Rafael Osório – Algumas mudanças propostas, como a dos benefícios variáveis, podem até ser consideradas boas, e aumento do valor médio das transferências é obviamente muito positivo. Mas o governo aumentou o Imposto sobre Operações Financeiras – IOF para reajustar os valores já neste ano e não o fez, vai embolsar o dinheiro do IOF sob a justificativa de que não tem garantias de que conseguirá dar um calote nos precatórios e fazer uma reforma do Imposto de Renda que muitos especialistas consideram que vai prejudicar a arrecadação e não contribuirá para diminuir a desigualdade.
A mudança na atual regra de permanência, que passa a se chamar regra de emancipação, parece pior do ponto de vista administrativo, e também pode ser considerado parte do “rebranding”, trazendo uma interpretação de que o programa não incentivava o trabalho e passa a incentivar os pobres merecedores, o que se alinha com a “ideologia” do atual governo.
O mesmo vale para os adicionais para bons alunos, esportistas…
IHU – Qual o legado do Bolsa Família para o país? E quais os limites desse programa?
Rafael Osório – O Bolsa Família mostrou que o Governo hoje tem os instrumentos para promover a redução das formas mais extremas de pobreza muito rapidamente. Basta aumentar a transferência para quem já participa do programa e garantir a inclusão dos novos pobres em momentos de crise.
Mas a transferência não resolve todos os problemas, é preciso que as outras políticas – educação, saúde, moradia, segurança pública e transporte, principalmente – funcionem e estejam de olho na população mais pobre, os inscritos no Cadastro Único.
IHU – Uma atualização dos valores do Auxílio Brasil, como vem propondo o governo, seria suficientes diante do atual contexto? Por quê?
Rafael Osório – Os valores da transferência do Bolsa Família sempre foram baixos, e eu considero que o benefício para a superação da extrema pobreza, que parecia uma boa ideia, se revelou um fracasso retumbante. Eu defendo, desde 2011, que o Bolsa Família – ou o novo Auxílio Brasil – pague por pessoa um valor igual ao da linha de pobreza extrema e seja reajustado periodicamente. Esta é uma opção que aumenta o custo total do programa, mas aumenta a sua eficiência, diminuindo brutalmente o custo por pessoa resgatada da pobreza. Os detalhes podem ser lidos no Texto para Discussão 1619, do Ipea, Erradicar a pobreza extrema: um objetivo ao alcance do Brasil.
Quando o governo fala nos novos valores, fala da transferência média por família, e não por pessoa. Devemos lembrar que embora não vinculado, quando o Bolsa Família foi criado, a referência para extrema pobreza era ¼ de salário mínimo. Embora muitos economistas torçam o nariz para a indexação de cortes de elegibilidade para programas sociais por múltiplos/frações do salário mínimo (como é o caso do Benefícios de Prestação Continuada – BPC, ou dos benefícios para trabalhadores formais de baixa renda, como o salário família e o abono salarial), é uma ideia que faz sentido no Brasil.
Ou seja, a transferência por pessoa deveria ir para algo entre de R$ 250-300, que é a zona de valores que está sendo pensada por família. Para financiar isto, é preciso desmontar programas que não são tão bem focalizados quanto o Bolsa Família e redirecionar seus recursos. Isto porém é muito difícil de se fazer – e voltamos ao problema da liderança política, que tem que ser muito forte para conseguir passar reformas que extinguem benefícios.
IHU – O senhor acredita que, diante dos entraves para financiamento, o reajuste de programas sociais, dentro do Auxílio Brasil, realmente sairá do papel? Em saindo, quais são as perspectivas para efetividade e os riscos de se tornar apenas uma medida eleitoreira?
Rafael Osório – O governo não conseguiu ainda garantir os recursos para aumentar o Programa Bolsa Família e os outros programas-penduricalhos exigem mecanismos de coordenação que não estão claros. No entanto, é possível distribuir 1000 bolsas de estudo para bons alunos pobres e dizer que o programa foi implementado. O presidente da República viaja para inaugurar obras que mal mereceriam a atenção de um prefeito, então é possível antecipar que o governo venha a pagar os benefícios adicionais para meia dúzia de gatos pingados e a alegar triunfalmente que foram implantados.
IHU – Quais são as questões de fundo que tem de ser tocadas para uma discussão sobre programas de assistência social e redistribuição de renda no Brasil de hoje? E essa discussão vem sendo feita?
Rafael Osório – Precisamos discutir seriamente a baixíssima eficiência do conjunto de programas focalizados da proteção social contributiva e não contributiva. O orçamento desses programas é muito superior ao hiato de pobreza, ou seja, se o conjunto fosse melhor focalizado, poderíamos ter resultados muito melhores na redução da pobreza e da desigualdade. Eu e vários colegas pesquisadores do Ipea e de outras instituições temos chamado atenção ao fato de que o resultado é muito ruim, o impacto do conjunto é muito pequeno se comparado com seu potencial. Existem inúmeras propostas para melhorar o resultado do conjunto das transferências sem aumentar o orçamento destinado a elas.
De outro lado, precisamos avançar na integração e na operação conjunta dos programas sociais, o que exige mudanças no regulamento e avanços tecnológicos. No Egito por exemplo, o “Bolsa Família” (Takaful) e o “BPC” (Karama) são apenas uma operação, usando o mesmo indicador de bem estar e linhas diferentes: as famílias muito pobres recebem o Takaful, e se tiver pessoas com deficiência e idosos, recebem o Karama; famílias menos pobres não recebem o Takaful, mas seus idosos e pessoas com deficiência recebem o Karama. No Brasil, o BPC impôs a inscrição no Cadastro Único, mas os dados do Cadastro não são usados para a concessão.
Muitas das mudanças que são necessárias não tem nada a ver com a ideologia de governo, são mudanças administrativas que requerem conhecimento e experiência sobre as condições reais de implantação das políticas, algo que só pode existir se há um corpo de profissionais dedicados e motivados.
Efeito burocracia eleita
Estas mudanças estão ocorrendo, mas de forma mais lenta que o desejável, e isto pode ser colocado na conta da falta de liderança e capacidade da “burocracia eleita”: frequentemente, e isto é um problema que se tornou mais grave no atual governo, pessoas que não entendem das áreas e não conhecem a administração pública são colocadas para gerenciar e liderar os processos em áreas sensíveis. A atual proposta de reforma administrativa tende a piorar isto, ampliando os cargos que podem ser exercido por indicados políticos e permitindo contratações “temporárias por até 10 anos” em massa.
Cada programa na Administração Pública é um universo, e demora-se muito tempo para que as pessoas realmente se tornem especialistas em uma área. É preciso ter concursos públicos pequenos e regulares para selecionar os melhores, e treiná-los, principalmente pela transmissão intergeracional de experiência no âmbito da administração.
IHU – De que forma a liberalização da economia e diminuição do tamanho do Estado tem impactos sobre a perda de renda e empobrecimento da população na atualidade?
Rafael Osório – A liberalização da economia não é incompatível com uma proteção social forte e até a exige. “Liberalização” é algo entendido de várias formas diferentes. O Estado pode sair sim de algumas áreas – pode parar de subsidiar os ricos, por exemplo. Na proteção social, não tem saída, por conta dos erros do passado, do nosso baixo investimento na população, temos uma parcela de pessoas que vai precisar da assistência social, então não é possível falar de estado mínimo nesta área. Mas um Estado minimalista seria excelente – por exemplo nas transferências, poderíamos ter apenas um programa de transferência que contemplasse as várias categorias unidas em um só programa, em vez de termos vários mal focalizados.
IHU – Como o senhor vem acompanhando as discussões sobre uma concepção de uma renda básica universal?
Rafael Osório – É uma discussão muitas vezes desconectada da realidade. Um benefício universal seria até possível para crianças, e como algumas das transferências para crianças são muito mal focalizadas, seria melhor do que o que temos hoje. Poderemos ter uma renda universal no futuro, mas enquanto não formos um país rico – somos um país de renda média –, um benefício básico universal implica não dar o suficiente para os pobres para incluir as classes médias e os ricos.
Eu assinei com colegas uma proposta de benefício universal para crianças simplesmente por que é melhor do que o que temos hoje. Mas, no meu coração, precisamos garantir que ninguém fique abaixo da linha de pobreza, e não podemos hoje garantir isto com um benefício universal, por que não há recursos. As pessoas bem intencionadas às vezes acham que há, mas não há. Por exemplo, recentemente a imprensa divulgou que os maiores bancos do país atingiram um lucro recorde de 23,1 bilhões. Com certeza as instituições financeiras deveriam ser mais tributadas, mas o fato é que estes 21 bilhões não sustentam o Bolsa Família como é hoje por um ano inteiro.
Então, nem se estatizássemos todo o sistema financeiro e ele continuasse tão eficiente quanto hoje, haveria recursos para financiar uma transferência universal, ou mesmo focalizada, que eliminasse a pobreza. Também é ingênuo pensar que vamos fazer uma reforma tributária que vá angariar estes recursos – a carga no Brasil é mal distribuída, mas é elevada, precisamos que os ricos paguem mais e os pobres menos, mas isto não eleva o volume de recursos.
IHU – Como conceber um projeto de Brasil que dê conta de reduzir as desigualdades, torne a tirar o país do mapa da fome e assegure renda digna à população, especialmente a mais pobre?
Rafael Osório – Respondi isto nas perguntas anteriores. A tendência é sempre querer expandir a proteção social sem que ninguém perca, mas isto não é possível. Precisamos avaliar o conjunto da proteção social, não os programas separadamente, para que o que já investimos no social renda melhores resultados. Ao mesmo tempo, o Estado tem que parar de subsidiar os ricos para liberar mais recursos para uma política social mais generosa.
Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 15/10/2021