Novos rumos da política econômica e os desafios para alcançarmos a igualdade salarial de gênero

Ilustração: Freepik

Cristina Pereira Vieceli

“Vou dizer coisas óbvias aqui: trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós; mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós; homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são pessoas valiosas para nós; povos indígenas desse país, vocês existem e são valiosos para nós; pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós; pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós; pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados, filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós”

Sílvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, 03 de janeiro de 2023

O ano de 2023 inicia com a promessa e esperança de um novo projeto político e econômico para o país, em que as vozes das pessoas excluídas e marginalizadas sejam ouvidas, respeitadas e valorizadas, conforme o discurso do novo ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, que precede este texto. Ao assumir, Lula fez um discurso histórico e emocionante e recebeu a faixa presidencial de representantes da população brasileira, simbolizando a vitória dos que acreditam e lutam pela democracia e pela construção de um país justo, igualitário e solidário.

Em seu discurso, o novo presidente indica a importância das políticas voltadas para igualdade de gênero, que serão norteadas a partir da refundação do Ministério das Mulheres. Segundo o presidente:

É inadmissível que as mulheres recebam menos que os homens, realizando a mesma função. Que não sejam reconhecidas em um mundo político machista. Que sejam assediadas impunemente nas ruas e no trabalho. Que sejam vítimas da violência dentro e fora de casa. Estamos refundando também o Ministério das Mulheres para demolir este castelo secular de desigualdade e preconceito.[1]

Além de recriar o Ministério das Mulheres, comandado por Cida Gonçalves, o atual governo expandiu o número de ministérios chefiados por mulheres: 11 das 37 pastas estão no comando feminino. Ainda estamos longe da igualdade, porém é o governo com mais mulheres na história do país. Esta composição abre espaço para avançarmos em pautas historicamente importantes para a população feminina brasileira, dentre as quais a igualdade salarial, que será objeto dessa coluna. 

A igualdade salarial de gênero foi apontada como uma das prioridades a serem perseguidas na agenda política durante a posse do presidente, conforme indicado, e também ressaltada durante a posse da ministra Cida Gonçalves. A estrutura do Ministério aponta para a importância desta agenda, ele será dividido em quatro secretarias, quais sejam: a Executiva, ade Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres; a de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados; e a Secretaria de Articulação Institucional e Participação Política. Ou seja, considera-se a importância da articulação política no enfrentamento a problemas históricos para as mulheres brasileiras, em que pese a violência doméstica e as desigualdades no mercado de trabalho. 

Em relação à Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados, que será presidida pela secretária Rosane Silva, deverá ser responsável pela ampliação da inserção feminina no mercado de trabalho e pelo avanço na igualdade salarial e no combate ao assédio moral. A pasta terá também como norteador a redução da sobrecarga das tarefas domésticas e de cuidados, considerada um dos principais entraves para o ingresso feminino ao mercado de trabalho, ao equilíbrio de tempo entre trabalho e lazer e à ascensão em postos gerenciais e posições políticas.

Ou seja, teremos uma pasta específica dentro do Ministério das Mulheres para construirmos caminhos e alcançarmos a igualdade de gênero no mundo do trabalho, articulando políticas de igualdade salarial e de oportunidades. É importante ressaltar que esses “castelos seculares de desigualdade e preconceito”, parafraseando o presidente, não são exclusivos do Brasil e estão relacionados com as normas sociais de gênero e à histórica falta de políticas públicas voltadas para os cuidados.

Atualmente (dados de 2021) a remuneração média das mulheres brasileiras equivale a aproximadamente 80% da média masculina. Esse índice já foi pior, em 2012 equivalia a 73,46% (Gráfico 1). A tendência nos últimos anos foi de crescimento instável da renda feminina concomitante à redução paulatina da masculina, resultado da deterioração do mercado de trabalho, que ocorreu principalmente a partir de 2015, com relativa recuperação a partir de 2018.

Gráfico 1 – Rendimento real médio habitual de todos os trabalhos por sexo, Brasil, 2012 a 2021

Fonte: Elaboração própria com base em Síntese de Indicadores Sociais, IBGE
Notas: Rendimentos deflacionados para reais médios de 2021.

É importante destacar também que as desigualdades de renda se entrecruzam com as raciais. As mulheres negras estão na base da pirâmide salarial. Em 2019, a renda média das mulheres pretas representava 43% da remuneração média masculina branca, no caso dos homens pretos, equivalia a 56%, já entre as mulheres brancas, a razão era de 77%. 

Gráfico 2 – Razão entre rendimento médio de homens e mulheres por raça/cor, Brasil, 2019 

Fonte: Indicadores de Gênero, IBGE

Há algumas abordagens dentro da economia que buscam explicar a diferença salarial entre homens e mulheres. Dentre as teorias ortodoxas, destaca-se a Nova Economia Doméstica (NED), cujo principal representante é Gary Backer. Segundo esta, a diferença salarial estaria relacionada a aptidões naturais das mulheres por setores de atividades ligados aos cuidados, cuja remuneração é inferior, haja vista a baixa produtividade. Ainda segundo a NED, as mulheres se especializam nos trabalhos não remunerados considerando que, racionalmente, dentro da relação de casamento, teriam maiores ganhos nessas áreas, dando suporte ao marido para este se especializar em atividades remuneradas.

Dentro da teoria ortodoxa, outros fatores que explicariam a desigualdade salarial estão relacionados à produtividade, mensurada pela experiência e nível de educação. Além disso, as áreas de atividades comumente ocupadas possuem menor representação sindical, e, por conseguinte, elas teriam menos poder de barganha salarial[2]. Outro fator está relacionado às remunerações “compensatórias” pelos homens exercerem atividades penosas, como, por exemplo, na construção civil. Esse último fato é discutível, considerando o alto grau de penosidade do trabalho doméstico remunerado, proibido no Brasil para menores de 18 anos por ser considerado uma das piores formas de trabalho infantil[3].

De fato, as mulheres estão sobrerrepresentadas em atividades de cuidados com baixa remuneração. A exemplo disso, 12,6% das mulheres ocupadas no Brasil eram trabalhadoras domésticas e 3,2% trabalhavam como trabalhadoras familiares auxiliares. Dentre os homens, menos de 1% estavam ocupados como trabalhadores domésticos e 1,43% como trabalhadores familiares auxiliares[4]. A informalidade masculina, no entanto, é mais elevada do que a feminina: 40,4% dos ocupados homens estão em atividades informais, ante 39,6% dentre as mulheres. Além disso, há maior participação relativa de homens entre as atividades por conta própria (20,89%), em comparação com as mulheres (14,21%). Há ainda uma maior representação masculina entre os trabalhadores sem carteira assinada: do total da população masculina empregada, 16,19% estão nesta posição, já as mulheres se encontram em 12,13%. Os dados indicam, portanto, que para analisarmos as desigualdades salariais, dadas as diferentes formas de inserção por gênero, é necessário compreendermos como elas ocorrem por diferentes recortes[5].

Se considerarmos somente as ocupações formais, a remuneração feminina representa 88,6% da masculina. Do total das 45 ocupações, somente em três a população ocupada feminina recebe remunerações médias superiores às masculinas, quais sejam: “comunicadores, artistas e religiosos” e “professores, leigos e de nível médio”. A maior diferença salarial por gênero ocorre na ocupação que possui maior remuneração média, a de “dirigentes de empresas e organizações”, em que a remuneração média feminina corresponde a 51,4% da masculina[6]. Ou seja, ainda que exerçam as mesmas atividades, as mulheres possuem remunerações inferiores às dos homens. As desigualdades salariais por gênero, por conseguinte, não se encontram somente no tipo de atividade que as mulheres irão optar (segregação horizontal) e na desvalorização monetária destas (segregação vertical), mas também dentre as mesmas ocupações.

É importante lançarmos, nesse sentido, alguns questionamentos sobre a teoria ortodoxa. O que leva as mulheres a não optarem por atividades tradicionalmente ocupadas por homens e serem preteridas em posições de liderança? Seria uma opção ou estaríamos sendo desincentivadas por normas de gênero, violência e assédio sexual e moral no local de trabalho? Seria a opção mais racional para as mulheres o casamento do que a carreira ou elas seriam levadas a essa escolha por normas sociais e estruturas econômicas? 

Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que o domicílio não é um lugar livre de violência e isento de relações de poder. Em 2021, do total de crimes de feminicídio, 81,7% foram cometidos pelo companheiro ou ex-companheiro[7]. O poder em uma sociedade monetária também está relacionado ao dinheiro. Há evidências na literatura que o aumento na remuneração média feminina eleva o seu poder de negociação nas relações conjugais, reduzindo o tempo voltado para as atividades não remuneradas e a vulnerabilidade à violência doméstica[8].

A economia feminista, nesse ínterim, lança luz sobre outros aspectos relacionados à desigualdade salarial de gênero. Dentre os principais estão as questões das normas de gênero, que definem os lugares em que as mulheres devem ocupar no mercado de trabalho e identificam esses com as piores remunerações. De acordo com Fraser (2020)[9], as atividades de cuidados, tradicionalmente exercidas pelas mulheres, criam benefícios sociais que são de difícil mensuração pelos parâmetros econômicos utilizados no mercado e são, portanto, desvalorizadas monetariamente e em termos de legislação protetiva, sofrendo a “penalização do cuidado”.

A maternidade é outro fator com repercussões importantes sobre a desigualdade salarial de gênero, considerando que cabe à mulher a maioria dos trabalhos de cuidado infantil[10]. Os reflexos são desiguais a depender da classe e raça. As mulheres com menores remunerações (nas quais, no Brasil, se encontram principalmente as negras) têm menor acesso à rede de cuidados privadas e à legislação trabalhista, o que as faz se inserirem em atividades com jornadas flexíveis, com menos direitos trabalhistas e piores remunerações, ou mesmo saírem do mercado de trabalho. Segundo Fraser, em relação à correlação entre pobreza feminina e maternidade: 

“There is less evidence of feminization of poverty than pauperization of motherhood; overrepresentation of women among the poor is far less significant than the overrepresentation of mothers of children under age eighteen” (FRASER, 2020, p. 192)[11]

A participação entre homens e mulheres no mercado de trabalho é historicamente desigual e está relacionada com a presença de filhas(os). Enquanto o nível de ocupação entre os homens é de 84,5%, as mulheres participam em 64,8%. Se compararmos as famílias com e sem filhos pequenos (até três anos), o nível de participação das mulheres com filhos é 12,6 pontos percentuais (p.p.) menor do que as que não possuem filhos. Já entre os homens a relação é inversa: aqueles com filhos possuem uma participação 5,7 p.p. maior do que os sem filhos. Essa dinâmica ocorre tanto para a população negra quanto para a população branca: a presença de crianças reduz a participação das mulheres no mercado e aumenta a participação masculina. Em relação às mulheres pretas, há uma redução de 13,3 p.p. comparativamente às mulheres pretas que não possuem filhos; quanto às brancas a diferença é menor, 10,2 p.p.

Gráfico 3 – Nível de ocupação de pessoas de 25 a 49 anos por sexo, raça/cor e presença de criança no domicílio, Brasil, 2019

Fonte: IBGE, Indicadores de Gênero, 2019

A presença de filhos, portanto, altera a relação de homens e mulheres no mercado de trabalho em sentido inverso. A penalização da maternidade repercute em maior peso sobre as mulheres pretas. Seria necessário pesquisas mais profundas para analisar os motivos das mulheres negras saírem em maior percentual do mercado de trabalho em relação às brancas devido à presença de filhos. Pode-se inferir que o fato de as pretas estarem inseridas em maior número em atividades informais as torna mais vulneráveis a demissões e ao desalento por não conseguirem reinserção no mercado de trabalho. Outra razão está relacionada a dificuldade de acesso à rede de cuidados infantis.

O acesso à licença maternidade e paternidade no Brasil, bem como outras licenças voltadas aos cuidados, são exclusivos às pessoas que exercem atividades formais e que são contribuintes à previdência social, tornando as mulheres mães empobrecidas ainda mais vulneráveis à pobreza. Por outro lado, cabe ainda destacar que a legislação protetiva aos cuidados possui forte viés de gênero e tende a aprofundar as desigualdades salariais. Isso se reflete na desigualdade de tempo para as licenças maternidade e paternidade e a falta de licença parental, tornando a contratação das mulheres mais onerosa que a dos homens.  

A legislação voltada aos cuidados no Brasil reforça as desigualdades de gênero, enquanto prioriza o cuidado das mulheres. Outro exemplo disso é o artigo 389 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que garante o acesso aos cuidados com as crianças somente para as empresas com mais de 30 trabalhadoras mulheres durante o período da amamentação:

§ 1º – Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação.

A legislação, portanto, além de conferir somente às mulheres o direito ao cuidado dos filhos, também determina um limite mínimo de trabalhadoras para a concessão do benefício. As empresas, dessa forma, podem optar a contratar menos força de trabalho feminina visando redução de custos.

Outras questões relacionadas à garantia do equilíbrio da vida produtiva e reprodutiva, que possuem impacto sobre a remuneração desigual feminina, estão ligadas ao acesso a escolas de educação infantil e a rede escolar em horários que coincidam com a jornada normal de trabalho. Essa mudança é dificultada considerando o maior número de vínculos precários e, por consequência, levando a redução do poder de barganha da classe trabalhadora sobre a gestão do tempo, aumentando a jornada de trabalho ou tornando-a mais instável.

Há, portanto, grandes desafios para a nova gestão consolidar políticas para a igualdade salarial. Como conclusão, deixo algumas sugestões que merecem atenção:  

  • Reconhecimento das diferenças de classe e raça, além das de gênero na constituição das desigualdades salariais;
  • A extensão dos direitos ao cuidado à toda a classe trabalhadora, não somente aos trabalhadores e trabalhadoras formais;
  • Extensão de licenças de cuidados com crianças para pais e mães;
  • Ampliação das licenças para cuidado de pessoas idosas e com enfermidades;
  • Reconhecimento de que o trabalho de cuidados deve ser compartilhado e valorizado por toda a sociedade, não somente sobre as mulheres e comunidades;
  • A realização de políticas de cuidados integradas, a exemplo do Uruguai, que possui um Plano Integrado de Cuidados, e que estejam alinhadas com políticas de educação, saúde, combate à violência e promoção do acesso ao mercado de trabalho;
  • Políticas de incentivo à contratação de mulheres e ascensão feminina a cargos gerenciais;
  • Consolidação de empresas amigas da família, com a extensão da licença paternidade e criação da licença parental;
  • Ampliação das fontes de dados e indicadores de gênero que contemplem recortes sobre raça;
  • Combate ao assédio moral e sexual no local de trabalho, ratificando a Convenção 190 da OIT, sobre a “Eliminação da Violência e Assédio no mundo do Trabalho”.

A ampliação da igualdade salarial de gênero não deve ser alcançada com a redução da remuneração masculina e precarização do mercado de trabalho, como vem ocorrendo nos últimos anos, mas através do reconhecimento das garantias à classe trabalhadora consolidadas pela legislação trabalhista vigente. Esta deve ser ampliada, garantindo o bem-estar, equilíbrio entre vida laboral e reprodutiva, a equidade de gênero e o cuidado como direito de todas, todos e todes.

Notas

[1] https://lula.com.br/discurso-de-posse-lula-2023/

[2] Ver Eswaran, Musek. Why Gender Matters in Economics. Princeton University Press: New Jersey, 2014.

[3] Ver Convenção 182 OIT e Decreto 6.841/2008

[4] Dados do IBGE – Síntese de Indicadores Sociais, 2021.

[5] Sobre a discussão relativa às diferenças salariais por gênero, ver tese de doutorado defendida por Marilane Teixeira, 2019, disponível em: https://www.eco.unicamp.br/colecao-geral/mundo-do-trabalho-das-mulheres-ampliar-direitos-e-promover-a-igualdade

[6] Para este recorte foi utilizado dados da RAIS – Ministério do Trabalho e Emprego, 2021, remuneração média nominal por principais subgrupos

[7] Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/10-anuario-2022-feminicidios-caem-mas-outras-formas-de-violencia-contra-meninas-e-mulheres-crescem-em-2021.pdf

[8] Fraser, Nancy, The rise and decline of patriarchal systems. An intersectional political economy. Verso: London, New York, 2020

[9] Ver nota 7.

[10] Há menor evidência de feminização da pobreza do que de pauperização da maternidade, a sobrerrepresentação das mulheres entre os pobres é bem menos significante do que a sobrerrepresentação das mãos de crianças de até 18 anos.

[11] Ver nota 7.

[12] A respeito da desigualdade de gênero e os impactos da legislação protetiva sobre as mulheres ver a dissertação de mestrado de Anelise Manganeli, disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/3931

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre, doutora e pós-doutora em economia pela FCE/UFRGS, analista em gênero pelo Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é economista do DIEESE, colunista do site DMT, e professora da ESAG/UDESC.

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