Notas sobre fome, dividendos e espoliação no Brasil atual

Como as espoliações, expropriações e pilhagens se tornaram dispositivos abrangentes e intensivos do funcionamento do governo militar de Jair Bolsonaro.

Felipe Brito

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 07/12/2021

63 bilhões de reais: essa será a enxurrada de remuneração que os acionistas da Petrobras receberão, em 2021 – maior quantia paga, até hoje. No início de novembro, foi anunciada uma antecipação do pagamento desses dividendos na ordem de 31,6 bilhões de reais Na prática, o que está acontecendo? O excedente que se arrecada com o inflacionamento escorchante dos preços dos combustíveis e do gás de cozinha amplia a margem de lucros e é bombeado para os ganhos rentistas dos acionistas. E quem são os acionistas minoritários da Petrobras que se beneficiam dessa enxurrada de dividendos? Sobretudo, grandes empresas (especialmente, as financeiras, como bancos e fundos de investimentos) e operadores endinheirados do mercado financeiro. Do que se trata, basicamente? Espoliação, que penaliza os mais pobres, e concentração de renda/riqueza. O aumento do flagelo da fome no Brasil tem vinculação direta com esse e outros dispositivos de espoliação/expropriação/pilhagem e concentração de renda/riqueza.

Esse inflacionamento exacerbado dos preços dos combustíveis e do gás de cozinha, uma das bases do maquinário (espoliador) de distribuição de dividendos, atua como o principal gatilho de inflacionamento do preço dos alimentos, em um cenário de intenso desemprego/subemprego/informalidade e desmonte de políticas sociais públicas direcionadas ao enfrentamento da fome, no âmbito de uma imensa captura de fundo público, tanto pelos circuitos financeiro-rentistas quanto pelo miolo fisiológico da política tradicional. Vide, por exemplo, o tal “orçamento secreto”, um dos polos de financiamento do “apoio” do tal Centrão ao governo militar de Bolsonaro. A propósito, o tal Centrão, que sempre foi proeminente na lógica da “Nova República”, cuja formação, a rigor, remonta às articulações de poder da ditadura empresarial-militar de 1964-1985, nunca esteve tão fortalecido.

A Petrobras foi acorrentada à tarefa de promover a maximização imediatista de renda de acionistas minoritários, ou seja, foi convertida numa máquina de distribuição de dividendos para acionistas minoritários. Dividendos, a propósito, que no Brasil são isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física; no Brasil e na Estônia – os únicos países do mundo que o fazem. E essa lógica de estruturação e funcionamento, assentada em espoliação e concentração de renda/riqueza, é propalada como racionalidade técnica única e inexorável no setor de petróleo e gás (um dos mais estratégicos do sistema capitalista). A tal da política de preços da empresa, chamada de PPI (Política de Preços de Paridade de Importação), constitui um dos dispositivos desse maquinário voraz de distribuição de dividendos. E como funciona essa Política de Preços de Paridade de Importação? Funciona baseada na dolarização e no atrelamento à cotação internacional de preços do barril de petróleo. Essa cotação de preços é impactada tanto por fatores geopolíticos quanto pela avidez especulativa nos mercados futuros do petróleo. Além do mais, é impactada pela variação do preço do dólar (que também é perpassada por fatores geopolíticos e por um forte movimento especulativo no mercado futuro do dólar). O atrelamento a essa dolarização fortalece, ainda, diretamente, um objetivo geopolítico norte-americano: a fixação do dólar como a moeda de referência central para o sistema internacional de produção de mercadorias, dada a centralidade do petróleo e derivados para o funcionamento desse sistema. É muito difícil encontrarmos alguma mercadoria cuja produção, circulação e venda não dependa do petróleo. Logo, não é exagero afirmarmos que o capitalismo contemporâneo é “petroleocêntrico”. 

Esse circuito espoliador envolve o esquartejamento da Petrobras para fins de alienação de seus ativos a “preços de banana”: além das próprias reservas de petróleo e gás, não escapam a esse circuito polos petroquímicos, redes de dutos, empresas subsidiárias etc. O desmonte de uma proposta de Petrobras voltada à integração de atividades de prospecção, extração, refino, transporte e distribuição abala o extenso setor produtivo de petróleo e gás, deliberadamente desmantelado pela Operação Lava Jato e pelos governos pós-golpe de 2016. O maquinário de distribuição de dividendos para um punhado de endinheirados atua também como um maquinário de extração frenética de óleo, reforçando a posição do país na divisão internacional do trabalho amarrada às commodities, na medida em que o petróleo, no âmbito desse desmonte, é tratado e tomado meramente como uma mercadoria desse tipo. A propósito, é importante sublinhar que os custos atuais de extração de petróleo das jazidas do pré-sal estão próximos dos custos mais baixos do mundo, praticados na Arábia Saudita.

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Toda essa situação aludida acima diz muito sobre a tal “financeirização” do capitalismo contemporâneo e o neoliberalismo. Na financeirização, a imensa maioria dos fluxos econômicos globais passa a ter proveniência financeira, especulativa e rentista. São instituídas e ampliadas, de maneira exponencial, formas de obtenção de renda vinculadas à propriedade de ativos financeiros (como ações nas Bolsas de Valores e títulos da dívida pública), patentes, terra, imóveis etc. É importante demarcar que essa hipertrofia financeiro-especulativo-rentista emerge em um contexto de crise do capitalismo, que remonta à década de 1970 do século passado e se arrasta, desde então. Crise econômica do capitalismo é crise de superacumulação de mercadorias, capitais, dinheiro. Essa superacumulação acarreta um aumento da capacidade produtiva ociosa, na expulsão de massas de trabalhadores dos circuitos formais de trabalho, cuja implicação básica na lógica de acumulação de capital é a queda tendencial média da taxa de lucros. Aí, entra a ofensiva neoliberal, voltada a turbinar a expansão das fronteiras de negócios, diante desse contexto de queda tendencial média da taxa de lucros. A rigor, mais do que expandir fronteiras de negócios: extravasar, transbordar a lógica da acumulação monetária para todos os escaninhos da vida social, vasculhando qualquer canto da sociedade ainda não atrelado ao imperativo do lucro para submetê-lo a tal imperativo. E ao contrário do que certas imagens do neoliberalismo sugerem, tal ofensiva precisou e precisa do ativismo e do aparato estatal.

Obviamente, esses processos não foram homogêneos e instantâneos ao redor do mundo, e há vários percursos possíveis de apreensão do neoliberalismo. Não obstante, é importante considerarmos que o neoliberalismo não apenas serviu de instrumental para turbinar a financeirização: o neoliberalismo compôs e compõe, estruturalmente, e com centralidade, a financeirização do capitalismo. E é importante considerarmos também que, no contexto de superprodução/superacumulação de mercadorias, capital, dinheiro, atravessado pela financeirização, a expansão da fronteira de negócios tende a se vincular, diretamente, com dispositivos de espoliação, expropriação, pilhagem, sobretudo na periferia do sistema capitalista. A desenfreada expansão da fronteira de negócios tende a acionar ou se manifestar como alguma forma de espoliação, expropriação, pilhagem, sobretudo nas imensas áreas periféricas do sistema. David Harvey elaborou um fio condutor conceitual/categorial interessante para a apreensão desse processo:acumulação por despossessão ou espoliação (HARVEY, 2004). Elmar Altvater, percorrendo essas coordenadas, constatou que a “apropriação pela desapropriação” (e não, exatamente, pela produção) é uma tendência marcante da economia capitalista vigente (ALTVATER, 2010).

Logo, o que encontramos como substrato desses fluxos econômicos de procedência financeiro-especulativo-rentista é espoliação, expropriação, pilhagem. Trata-se de “violência econômica” (Marx) entrelaçada com “violência extraeconômica” (Marx), cujas manifestações se exacerbam em um país da periferia do sistema capitalista, chacoalhado pelo bolsonarismo, na esteira do golpe de 2016.

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No país que é o maior exportador de carne bovina do mundo e segundo maior exportador de grãos, alastra-se o flagelo da fome e da extrema pobreza. Seguindo percursos que acompanham dispositivos de espoliação/expropriação/pilhagem vigentes no país, cabe registrar o avanço da fronteira agropastoril sobre áreas públicas de florestas, mediante armas de fogo e grilagens. É comum que esse avanço ilegal sobre biomas destine-se a criar áreas de pastos, submetidas a alguma “novidade” no mercado da grilagem, e que o gado ali criado seja vendido (ou repassado) para áreas intermediárias (com situação supostamente “regularizada”). Dessas áreas intermediárias, o gado será vendido para algum grande frigorífico. Esse esquema revela, a propósito, o quanto nesses dispositivos de espoliação/expropriação/pilhagem as fronteiras entre o “ilegal” e o “legal” são tênues. Somente ingenuidade ou má-fé tratam o “agro é pop” e o banditismo extrativista/fundiário como esferas essencialmente diferenciadas e desvinculadas.

Mediante armas de fogo e grilagem, o garimpo, a mineração, o contrabando de madeiras, a disputa fundiária também avançam sobre áreas públicas de florestas, bem como sobre terras indígenas e de proteção ambiental. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 2020, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário, revela o aumento em 137% de invasões a terras indígenas e 61% no número de assassinatos de indígenas, nos anos de 2019 e 2020.

A alavancagem armamentista provocada pelo governo federal foi combustível para o banditismo extrativista e fundiário, o “lado B” de um modelo de funcionamento econômico excessivamente dependente de divisas oriundas da exportação de commodities para o mercado externo. Apesar da retórica “anticomunista” do Presidente da República, o nível de exportação de commodities para a China atingiu patamares inéditos, aprofundando, ainda mais, o peso da participação chinesa na balança comercial brasileira. Logo, não obstante toda a retórica “anticomunista”, a dependência perante a China intensificou-se, empurrada pelo aprofundamento de um modelo econômico excessivamente direcionado à exportação de commodities ao mercado externo, em meio a um desmanche deliberado de instrumentos mínimos para se esboçar algum projeto de desenvolvimento econômico adaptado ao atual contexto do capitalismo, e o crônico esvaziamento do investimento público, como decorrência da rapinagem financeiro-rentista do fundo público. A rubrica orçamentária investimento público encontra-se rebaixada a patamares verificados na década de 1940 do século XX.

Turbinando esse modelo, o governo federal mobiliza intenso ativismo, o que gerou um recorde de autorizações/registros de agrotóxicos no país: 1.411, nos últimos três anos. Tal ativismo abarca o desmantelamento de marcos regulatórios e aparatos fiscalizadores, junto com o aparelhamento das instituições voltadas ao tratamento das questões ambientais, indigenistas e fundiárias, como IBAMA, ICMBio, FUNAI, INCRA. Em 1 ano, foram 721 “tratoradas”. Quando o então Ministro do Meio Ambiente proclamou o “esforço” de “ir passando a boiada, e mudando todo o regramento e simplificando normas”, não emitiu apenas uma peça raivosa de narrativa. Proclamou uma tecnologia de governança, direcionada à espoliação, expropriação, pilhagem, que beneficiou e beneficia o “agro é pop”, o banditismo extrativista/fundiário e suas intersecções. A fúria desregulamentadora não prescinde, porém, de movimentos de regulamentação. Nessa direção, por exemplo, articulações políticas são formatadas em níveis estaduais, em aliança com o banditismo extrativista, visando à regulamentação de garimpo, mineração, extração de madeira em terras indígenas.

Tal ativismo também envolveu a ampliação acelerada do armamentismo na sociedade brasileira, e isso serviu, também, como uma propulsão ao banditismo extrativista/fundiário e suas intersecções com o “agro é pop”. O governo militar de Bolsonaro usou e abusou do Decreto Administrativo, bem como da Instrução Normativa para promover uma abrupta e profunda desregulamentação no setor. De fato, o que estava ao alcance imediato do Poder Executivo Federal foi mobilizado para o ativismo armamentista. Nessa direção, o Chefe do Poder Executivo Federal anunciou:

Tudo que pode fazer por decreto, eu fiz. CAC [colecionador, atirador e caçador] está podendo comprar fuzil. CAC, que é fazendeiro, compra fuzil 762. Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Sei que custa caro. Tem idiota, “ah, tem que comprar feijão”. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.

Na verdade, mais do que anunciou, “esfregou na cara”. É importante verificar que os maiores desatinos enunciados por Bolsonaro servem, também, como ferramentas de exercício/esbanjamento de poder, na medida em que abdicam, com viés conflitivo e/ou desdenhoso, de fundamentações públicas e, ainda, interpelam e mobilizam a faixa de seguidores incondicionais do Presidente. Em geral, tais “enunciados” baseiam-se em uma oscilação pendular entre a mentira tosca e a “hiperverdade” com propósito intimidador, raramente comportando camuflagens, disfarces, velamentos. Nesse caso, uma “hiperverdade” com propósito intimidador foi emitida, ou melhor, “esfregada na cara”. De fato, “CAC [Colecionador, Atirador, Caçador], que é fazendeiro, compra fuzil 762”.

O desmanche bolsonarista da regulamentação de armamentos resultou, em curto espaço de tempo, na ampliação de 65% da circulação de armas de fogo no país, cuja importação de revólveres e pistolas já excede a de lápis e bicicletas, por exemplo (Cf. GUSSEN, 2021). No ano de 2020, o montante importado de pistolas e revólveres foi 2.656% maior que a média de uma série histórica iniciada em 1997. No universo dos armamentos registrados (que engloba o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas – SIGMA, gerido pelo Exército, e o Sistema Nacional de Armas – SINARM, pela Polícia Federal), há mais de 2 milhões de registros de armas por CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), empresas privadas de segurança, Forças Armadas, Polícias etc. O número de armas com registro ativo no SIGMA, em agosto de 2020, era de 496.172 – percentual 120% maior que em todo ano de 2019. Passado o primeiro semestre de 2021, o volume de registros de CACs alcançou quase 100 mil. Para termos uma dimensão do aumento do número de pessoas com acesso (legalizado) a armas por essa via, em 2011 foram registrados cerca de 8 mil novos CACs (Cf. BOULOS, 2021). Conforme já mencionado, o governo permitiu aos Colecionadores, Atiradores e Caçadores a compra de fuzis que eram de usos restritos das Forças Armadas (calibre 5.56 e 7.62).

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Bolsonaro tem fixação nos golpes militares da América Latina, Guedes é um Chicago Boy egresso das fileiras da ditadura de Pinochet. As Forças Armadas brasileiras espalharam golpes e tentativas de golpes ao longo da história política do país e parte significativa dos militares que atuaram na construção da candidatura Bolsonaro e compõem o atual governo é egressa das paranoicas fileiras anticomunistas do General Sylvio Frota, que considerava o General Geisel “ideologicamente de esquerda” (sic). Entretanto, não há golpe militar em curso; tampouco golpe militar está na ordem do dia no país. A tomada apoteótica do Supremo Tribunal Federal não aconteceu no 7 de setembro de 2021 bolsonarista. No lugar do Cabo e do Soldado pra fechar o STF, [1] Michel Temer, perito em golpes (e em cartas), redigiu uma “missiva”, assinada pelo Chefe do Poder Executivo, para aplainar as tensões entre os Poderes da República, cujo conteúdo, em resumo, declarou que nunca houve intenção de insultar e fechar o STF.

Entretanto, considerando o montante de devastação econômica, política, institucional perpetrada pelo governo militar de Bolsonaro, e que tal devastação foi impulsionada pelos solavancos do golpe de novo tipo de 2016, podemos constatar que, de alguma forma, o recurso a um golpe de Estado dito “convencional” se tornou prescindível. Aliás, o golpe de 2016 foi parlamentar, jurídico, policial, mas também militar. Setores da cúpula das Forças Armadas também tiveram participação nas maquinações que resultaram no impeachment inconstitucional e retomaram o exercício direto do poder político, incrustando-se em setores estratégicos do Estado.

No país do “agro é pop”, campeão de exportação de carne bovina e vice-campeão da exportação de grãos, o flagelo da fome expande-se. Nesse mesmo país, instaurou-se um dispositivo de espoliação, cujos tentáculos alcançam a renda dos mais pobres, que alimenta dividendos recordistas pagos à burguesia e à pequena-burguesia endinheirada (dividendos isentos de Imposto de Renda da Pessoa Física, aliás) e a concentração de renda/riqueza. Esse dispositivo de espoliação integra um vasto circuito de espoliação, expropriação, pilhagem de ativos públicos, fundo público, recursos naturais e socioculturais, em que as fronteiras entre o “lícito” e o “ilícito” ficam cada vez mais tênues, borradas, emboladas, quando não se dissolvem.

Espoliações, expropriações, pilhagens são dispositivos abrangentes e intensivos do funcionamento do governo militar de Bolsonaro. Mais do que exercer uma condição pró-cíclica, que catalisa a “acumulação por despossessão ou espoliação” (HARVEY, 2004), tal governo milita pelas espoliações, expropriações e pilhagens.

Notas

[1] Referência à afirmação do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro: “se quiser fechar o STF, você sabe o que faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”.

Referências bibliográficas

ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
BOULOS, Guilherme. Feijão e fuzil. Carta Capital, 8 de setembro de 2021. Número 1173. p. 25.
GUSSEN, Ana Flávia. No Reino das Milícias. Carta Capital, 4 de agosto de 2021. Número 1168. p.12-17.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.

Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras. Pela Boitempo, organizou com Pedro Rocha de Oliveira o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013). Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil

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