Valquiria Padilha
Fonte: Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 71, p. 329-346, maio/ago. 2014.
Resumo: Este artigo visa a apresentar resultados de uma pesquisa qualitativa cujo objetivo principal foi analisar criticamente o sofrimento ancorado no trabalho precarizado de limpeza. Foram realizadas observações e entrevistas semiestruturadas com 12 trabalhadores de limpeza terceirizados de shopping centers no Brasil e no Canadá. A análise das entrevistas buscou regularidade dos assuntos recorrentes, agrupou elementos para constituir os núcleos temáticos de análise e construiu indícios para realizar a coerência teórica a partir da interpretação das descobertas sistematizadas. A pesquisa mostrou que o nojo e a humilhação dos trabalhadores de limpeza, ao lidarem com o lixo e a sujeira deixados pelos clientes em praças de alimentação e banheiros, são causa de sofrimento e demandam a performance de Trabalho Emocional. Foi possível encontrar, nos dois países, três núcleos temáticos de análise que se inter-relacionam no cotidiano do trabalho terceirizado de limpeza de shopping centers: o nojo, a humilhação e o controle.
Sumário: Introdução | Metodologia | Os olhares possíveis a partir dos campos teóricos sobre trabalho | Os achados da pesquisa e os núcleos analíticos | O trabalho emocional e o sentimento de nojo | A humilhação | O controle | Um dia de treinamento no Brasil | Considerações finais | Referências
Introdução
Quando uma pessoa entra num shopping center (SC), em qualquer lugar do mundo, está adentrando numa cidade artificial, mais limpa, segura, bonita, moderna, prática e atraente do que a cidade real que está no “mundo de fora” (Padilha, 2006a). Mergulha num “shopping center híbrido” (2006a; 2006b), que oferece, ao mesmo tempo, oportunidades de compras, alimentação, lazer, cultura e sociabilidade espalhados em lojas, restaurantes, cinemas, salas de jogos, espaços de eventos, exposições de arte, academias de ginástica, clínicas médicas e até capelas. Na grande maioria dos shopping centers existentes hoje no mundo, a higienização desses espaços é um importante fator para atrair e manter os clientes. É por isso que os SC devem ter um mutirão de profissionais de limpeza que, 24 horas por dia, todos os dias da semana, colocam seus corpos e suas emoções a seu serviço. Os trabalhadores da limpeza são quase os únicos – juntamente apenas com os responsáveis pela segurança – que permanecem no SC quando ele está fechado ao público. A limpeza e a segurança, atividades laborais mais importantes destes centros comerciais, são feitas por trabalhadores terceirizados.
Estamos diante de um fenômeno global, que é a tendência de terceirizar tudo que se puder terceirizar numa empresa, seja ela pública ou privada. No Brasil e no Canadá – países que foram olhados mais de perto no desenvolvimento da pesquisa que gerou este artigo – a terceirização pode ser pensada metaforicamente como um jogo que traz vantagens para os shopping centers e para as empresas terceiras – os players que lucram –, mas desvantagens para os trabalhadores terceirizados, os players expropriados e precarizados. Essa forma de contrato, para além de um instituto legal, é também um modo específico de organizar e administrar o trabalho. As empresas terceiras fazem a mediação entre trabalhadores terceirizados e clientes (no caso, os shopping centers), em nome de oferecerem um serviço no qual elas são especializadas – o que garante, em última instância, maior qualidade do trabalho e maior satisfação dos clientes (no caso, tanto os SC quanto seus consumidores).
Compartilho com alguns autores a visão de que há uma relação intrínseca entre terceirização e precarização do trabalho (Carelli, 2003; Druck, 2009; Druck; Franco, 2007, 2009; Dau et al., 2009; Marcelino, 2004; Santos et al., 2009) na “nova realidade da organização produtiva capitalista” (Lopes, 2009). Trabalho precário, sob a lógica do capital, é quase expressão de tautologia, visto que os padrões de acumulação capitalista que vêm se instalando no mundo desde o final do século XIX até os dias de hoje (taylorismo, fordismo, toyotismo) dão-se por meio da superexploração da força de trabalho (articulação entre baixos salários, jornadas de trabalho prolongadas, intensidade do ritmo de trabalho, subcontratação e terceirização). É possível afirmar que a terceirização é uma estratégia baseada numa visão de contrato essencialmente mercantil (Russo; Leitão, 2006), que vem, nas últimas décadas, agravando e solidificando – ao mesmo tempo em que generaliza – uma vulnerabilidade socioeconômica e emocional no chamado “mundo do trabalho” (Kergoat, 1998; Antunes, 1999).
É visualizando esse cenário que insiro algumas questões norteadoras da pesquisa que desenvolvi com trabalhadores de limpeza de shopping centers no Brasil e no Canadá, no período entre 2009 e 2012. Essas questões envolvem aspectos objetivos e subjetivos do trabalho. Quem são os trabalhadores terceirizados desses centros de consumo e de lazer? Como se caracterizam suas atividades laborais cotidianas? Como seu trabalho é organizado e administrado? Como esses trabalhadores vivem prazeres e desprazeres na realização de suas profissões? Quais são as emoções mobilizadas quando esses trabalhadores entram em contato com os clientes dos SC? Será que a sensação de bem-estar e de segurança relatada pelos consumidores de shoppings (Padilha, 2006a) se estende a esses trabalhadores de limpeza?
Tendo essas questões em mente, mobilizei diferentes matrizes epistemológicas para formatar meus conhecimentos e respondê-las. Procurei, inicialmente, análises teóricas nos campos da sociologia do trabalho, da psicodinâmica do trabalho e da psicologia social do trabalho. No decorrer da pesquisa, entrei em contato com as teorias sobre Trabalho Emocional. Nos últimos meses da investigação, encontrei-me com autores franceses da psicossociologia do trabalho. Neste artigo, utilizo referenciais dessas áreas do saber. Cada uma, à sua medida, lançou luz sobre meu campo de pesquisa e participou da elaboração dos núcleos analíticos.
Valquiria Padilha é Doutora em Ciências Sociais. Pós-doutorado em Ciências Sociais. Professora do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP), Universidade de São Paulo (USP).