Nem todas as vaquinhas do mundo salvarão os entregadores do iFood

Substituição de direitos por favores, além de imoral, é impagável, e transfere à sociedade os ônus que deveriam ser da uberização, numa operação que renova os patamares de crueldade do capitalismo.

João Peres

Fonte: O Joio e o Trigo
Data original da publicação: 08/07/2021

Tudo começou como uma iniciativa pontual. Depois, foram surgindo outras. E, agora, todas as semanas nos deparamos com uma, duas, três vaquinhas virtuais voltadas a ajudar entregadores do iFood. Uma bicicleta roubada. Uma moto. Um tratamento de saúde. E até uma espécie de indenização por um caso de racismo. Acredite: nem todas as vaquinhas do mundo serão capazes de salvar os entregadores do iFood.

Antes que seja tarde, é importante dizer que a ideia desse texto não é melar nenhuma campanha de arrecadação em curso. Nem afirmar que algum entregador do iFood não é digno da mobilização das pessoas. É o contrário: é dizer que eles são tão dignos que merecem muito mais do que uma vaquinha – merecem direitos trabalhistas. 

Em alguns casos, os próprios entregadores têm pedido aos clientes que abram uma campanha. A lógica não está errada: “Burguês, cê quer comida quentinha? Dá uma força aê.” Mas a situação coletiva é bastante mais complexa que uma iniciativa individual. Trata-se de transferir à sociedade um peso que deveria caber à empresa.

As corporações aprenderam rapidamente a se valer da narrativa sobre privilégios – inclusive, alimentada por influenciadores digitais. Assim, ajudar o entregador do iFood seria uma maneira rápida e fácil de expiar a “culpa burguesa”. Como você sabe que a remuneração é péssima, o aplicativo te dá a chance de colocar uma gorjeta em cima – assim, talvez, você possa comer sem sentir o peso no estômago. 

Mas não importa o quanto tenham te chamado de burguês. Você não é burguês, a menos que…

  • seja dono de uma corporação
  • tenha uma fortuna capaz de influenciar parlamentares, pressionar juízes, pautar a conduta do ministro da Economia
  • seja herdeiro de um patrimônio bilionário. 

A classe média branca não tem privilégios? Tem, é claro. Mas isso não quer dizer que esses privilégios sejam comparáveis aos da burguesia. E, portanto, isso não quer dizer que você é o responsável pelos direitos trabalhistas do entregador. Uma parte da discussão internet afora também tem promovido uma enorme confusão entre privilégios e direitos.

  • Ser vacinado é um direito. Furar a fila da vacina é privilégio
  • Estudar na universidade pública é um direito. A universidade pública ser excludente é o que cria privilégios
  • Ter direito a moradia e alimentação é um direito (constitucional, por sinal). Conseguir 20 mil hectares de terras públicas, por grilagem ou por concessão, é um privilégio

Eu sei que fazer uma vaquinha é uma maneira de demonstrar solidariedade. E que os tempos que vivemos demandam uma enorme solidariedade, e um esforço ativo para não se tornar indiferente. Quem sabe essa solidariedade não possa ser o embrião de mudanças mais profundas. Mas uma sociedade regida por vaquinhas é a sociedade dos sonhos das corporações, que com isso não precisariam arcar com mais nada. 

Primeiro, essa ideia não sobrevive a uma regra de três. Só o iFood diz contar com 160 mil entregadores diretos. Cada um pode precisar de um tipo de ajuda, mas vamos nivelar pela bicicleta, que é o instrumento básico de trabalho. Uma bicicleta ruinzinha custa R$ 800. Então, precisaríamos de R$ 128 milhões para cobrir essa demanda. 

A reinvenção da pirâmide

Aplicativos como o iFood se alimentaram de maneira tão formidável da nossa precariedade que estão criando todo um novo ecossistema laboral. A capacidade da empresa em atrair trabalhadores diz muito mais à falência do modelo industrial dos últimos quatro séculos do que ao pagamento de bons salários. É uma espécie de WO no jogo dos empregos. 

Como mostra a reportagem de Guilherme Zocchio, os entregadores acabam ranqueados de acordo com o desempenho. A empresa não confirma, mas a hierarquia vai de um “super-entregador” a um entregador “ruim”, o que não significa que algum deles seja devidamente remunerado. 

Também sem confirmação oficial, mas com uma grande incidência na vida prática, estão os operadores de logística, que exercem uma espécie de coordenação das atividades dos entregadores. Como a estrutura do iFood se torna muito grande, surge essa espécie de atravessador que consegue atrair mais pedidos e criar um grupo de entregadores, em troca de manter a situação em ordem. 

Está sentindo falta de alguma coisa? Talvez esteja sentindo falta de se ver representado no infográfico? É porque a sua cabeça está olhando para o século errado. No século vinte, naquilo que a uberização chama de “velha economia”, a pirâmide social era ligeiramente diferente. 

Sim, havia uma classe média. De novo, é importante lembrar que classes média e baixa são parte de uma mesma categoria. Embora separadas por algumas características, e por mais horror que a classe média tenha dos pobres, isso não a faz pertencente à burguesia. O que está faltando na “nova economia” é justamente essa classe média, que nos últimos anos foi devastada por reformas trabalhista e da previdência, teto de gastos, remoção de uma série de direitos.

Abaixo você vê o fluxo do dinheiro num esquema mais clássico do capitalismo. Os salários são gastos na forma de bens e serviços, o que cria novos empregos.

Quando projetamos uma sociedade na qual os direitos são trocados por vaquinhas, esse fluxo do dinheiro muda. As gorjetas não são gastas da mesma maneira que os salários. Primeiro, porque são um montante muito menor, que mal dá pra pagar as contas. Segundo, porque os entregadores podem ser “desativados” por qualquer motivo e são obrigados a guardar o que caberia à empresa na forma de Fundo de Garantia, adicional de férias, décimo-terceiro. Diante de tamanha imprevisibilidade – “insegurança jurídica”, diria o tal mercado – ninguém sai gastando dinheiro. 

Trocando em miúdos, essa cultura da gorjeta e da vaquinha irá agravar e perpetuar a concentração de renda. A gente está usando dinheiro do andar de baixo para arcar com custos que são do andar de cima. Não há como haver mobilidade social com um fluxo desses. Esqueça qualquer chance de terminar essa vida mais rico do que entrou: ficar no zero a zero já será lucro. 

Em um certo sentido, os algoritmos da uberização renovam e até agravam os piores patamares de crueldade da história do capitalismo. A burguesia sempre enxergou direitos como favores. Assim, uma cesta básica, por exemplo, era dada como se o empresário estivesse prestando um enorme favor. Mas, ao fim e ao cabo, era ele quem estava pagando por essa cesta. iFood, Uber e companhia conseguem o impensável: que a gente, enquanto sociedade, pague até mesmo por esses favores. 

Recentemente, o repórter Marcos Hermanson flagrou uma cena estarrecedora: entregadores do iFood fazendo filas para pegar marmitas que estavam destinadas à população de rua. O fato de uma empresa de entrega de comida não garantir… comida aos funcionários que fazem a roda girar não é uma contradição: é a síntese de como opera a uberização. 

Assim, o custo que deveria caber à corporação acaba repassado a uma organização social que estava fazendo filantropia à camada mais vulnerável. Mas não é só isso. Se o iFood assumisse o papel básico de fornecer alimentação aos 160 mil entregadores, seja diretamente, seja na forma de vale-refeição, o dinheiro gasto retornaria à sociedade na forma de empregos necessários para cultivar alimentos, preparar e distribuir. 

O que precisamos fazer, portanto, é voltar a pegar dinheiro lá do andar de cima. Isso pode acontecer de algumas maneiras. A mais óbvia é o pagamento de direitos trabalhistas. Vamos retomar aquele plano de comprar uma bicicleta nova por entregador. O iFood diz ter batido recorde em 2020, e agora faz 60 milhões de entregas por mês. Ou seja, com uma ínfima fatia das entregas de um mês ela garantiria o básico aos entregadores.

Mas, calma, o iFood precisa pagar sua estrutura. Hum. Que estrutura? A empresa declara 4 mil funcionários. E esse é o segredo: ao jogar nas costas da sociedade todos os custos, as corporações da uberização mantêm uma estrutura muito enxuta. Depois de muitos cortes, muitos mesmo, a Volkswagen ainda tem 15 mil trabalhadores no Brasil. 

Então, se você quer usar sua posição social para ajudar um entregador, a gente tem algumas sugestões:

  • pesquise sobre programadores que estão criando aplicativos para que os próprios entregadores assumam o controle das operações
  • cobre os procuradores do Trabalho sobre a necessidade de mover ações pelo reconhecimento de direitos dos entregadores
  • junte grupos para pressionar as cortes superiores a firmar uma jurisprudência pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas dos entregadores
  • no mesmo sentido, exponha parlamentares que estejam atuando para frear o reconhecimento desses direitos
  • crie constrangimentos às empresas da uberização nas redes sociais. Mas não vá sozinho
  • vá às manifestações dos entregadores, o chamado “breque”

Como dissemos num recente episódio do Prato Cheio, “O que o Milton Santos diria do iFood?”, os gigantes da uberização têm os pés de barro. Porque não produzem nada. Porque jogaram nas costas da sociedade todas as responsabilidades.

João Peres é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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