Não, o STF não julgará processo que proíbe a demissão sem justa causa

Fotografia: Nelson Jr./STF

Alardear que o STF deve aprovar ou validar “medida que proíbe”soa como terrorismo oportunista que pode gerar efeitos no próprio mercado de trabalho.

André Gonçalves Zipperer 

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 07/01/2023

A Organização Internacional do trabalho (OIT) foi fundada em 1919 pelos signatários do Tratado de Versalhes (O Brasil, inclusive, é um de seus fundadores) tendo como propósito assegurar internacionalmente condições de trabalho justas e equitativas. É a única agência das Nações Unidas que tem estrutura tripartite, na qual representantes de governos, de organizações de empregadores e de trabalhadores de 187 Estados-membros.

Uma das funções fundamentais da OIT é a elaboração, adoção, aplicação e promoção das Normas Internacionais do Trabalho que estabelecem princípios e direitos no trabalho, sendo uma delas as Convenções

Atualmente existem mais de 180 Convenções, tratados internacionais que definem padrões a serem observados e cumpridos por todos os países que os ratificam. A ratificação de uma convenção da OIT por qualquer um de seus Estados-membros é um ato soberano e implica sua incorporação total ao sistema jurídico, tendo, portanto, um caráter vinculante.

No Brasil, para que as Convenções Internacionais se tornem aplicáveis, é preciso a manifestação do Congresso Nacional e do Presidente da República. Qualquer compromisso externo, portanto, somente pode ser assumido pelo Estado mediante manifestação da vontade nacional, que, no Brasil, se dá através da aprovação do Congresso Nacional. É o que prevê a Constituição Federal no seu artigo 49, I.

Quando o Tratado ou Convenção é incorporado ao Direito brasileiro, ele se situa, em regra, no plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais, ou seja, no mesmo patamar em que se encontram as leis ordinárias. (Segundo a CF, tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais.)

Vale citar também que o Estado Nacional pode denunciar a Convenção o que, na prática, implica em “dar um aviso” que este não tem interesse em continuar observando aquela norma em seu ordenamento jurídico interno. Isso deve acontecer, claro, dentro de determinados prazos.

Em 1982 a OIT aprovou a Convenção 158 que prevê diversas proposições relativas ao término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, como a que consta no seu artigo 4º. segundo o qual “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”.

Sem entrar no seu mérito, ainda, vale citar que a mesma chegou a ser ratificada pelo Estado brasileiro sendo promulgada através do Decreto 1.855, de 10/04/1996. Esta, todavia, teve vida curta no ordenamento nacional sendo denunciada pelo Decreto  2.100, de 20/12/1996. A Convenção, aliás, nunca chegou a ser um “sucesso” internacional, já que apenas 37 dos 187 países membros a ratificaram.

A medida (denúncia), no entanto, foi contestada judicialmente em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.625) movida junto ao STF ainda no ano em 1997 pelas Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e pela CUT. O fundamento foi de que o decreto deveria ter sido ratificado pelo parlamento.

Em resumo, portanto, o que o STF analisa, após demandado, é apenas e tão somente este aspecto formal: O decreto de denúncia da Convenção 158 deveria ou não ter sido ratificado pelo parlamento? Uma questão absolutamente técnica!

É fato que após uma longa tramitação de 25 anos e intermináveis pedidos de vista, sendo o último do ministro Gilmar Mendes em outubro de 2022, com votos inclusive de ministros aposentados e já falecidos, o julgamento, ao que parece, se encaminha para o fim, já que, pelo novo regimento interno aprovado pelo STF no final do ano passado, o retorno de vista deverá se dar de forma inadiável em não mais do que 90 dias após o seu pedido. Aliás, a contagem dos votos aponta que a ADI deverá ser julgada procedente.

Há aqui, contudo, outras questões de fundo que merecem análise. Na já jurássica ADI 1.625 não votaram Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Carmen Lúcia pois estes substituem os que já votaram e já se aposentaram ou então faleceram.

Ocorre que, paralelamente a esta ação tramita no STF, também com o mesmo objeto, outra Ação Direta, a ADC 39, na qual entidades sindicais patronais, pretendem a declaração de constitucionalidade do Decreto. Esta ação é mais recente, de 2015 e, por conta disso, será analisada por uma composição de plenário diferente da ADI de 1997, ou seja, nela votarão outros ministros e ministras e o resultado pode ser outro completamente diferente para o mesmo tema. O ministro Gilmar Mendes pediu vista em ambas as ações e, ao que se sabe, conversas acontecem para evitar o imbróglio.

Por fim, há também um outro ponto importante que merece destaque que é a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão daquele Tribunal. No julgamento da ADI 1.625, os ministros Teori Zavascki e Dias Toffoli em seus votos, não restabelecem a vigência da Convenção, mantendo a eficácia do Decreto, pois entenderam que os efeitos do entendimento deverão ser aplicados a partir da publicação da ata de julgamento da ADI tão somente.

O que se vê, portanto, é que a questão ainda é complexa.

Mas, ultrapassada a questão processual, a eventual inconstitucionalidade do decreto que denunciou a Convenção 158 significaria, conforme vem sendo divulgado (até de forma irresponsável), que “o STF deve aprovar medida que proíbe demissão (ou ‘dispensa’ em linguagem técnica) sem justa causa” ou pior “equivale dizer que não se poderá dispensar ninguém sem justa causa”?

A resposta é, por certo, indubitavelmente negativa a todas essas afirmativas. Isso porque, independentemente da questão técnica da constitucionalidade da sua denúncia, a Convenção 158 da OIT, em si, não prevê tal fato e o julgamento não levaria automaticamente a esta conclusão. Aliás, a discussão nem mesmo é nova.

Com efeito, consultando a jurisprudência do TST, por exemplo, o entendimento é absolutamente pacífico no sentido de que “a Constituição Federal estabelece que a lei complementar seria a via para se estabelecer a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, e que a própria Convenção 158 exige a edição de lei para que produza efeitos. Assim, como, nunca, nenhuma norma regulamentadora tenha sido editada, nenhum ‘efeito’ foi possível“. (Processo: AIRR 1430-79.2014.5.17.0007)

No julgado de 2017 o Min. Bresciani relatou: “A inobservância da forma exigível conduzirá à ineficácia qualquer preceito pertinente à matéria reservada. Se a proteção contra o despedimento arbitrário ou sem justa causa é matéria limitada à Lei Complementar, somente a Lei Complementar gerará obrigações legítimas” E não bastasse, neste mesmo julgamento o Ministro Godinho lembrou que o próprio STF já teria entrado no mérito na decisão liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.480. [1]

Nesta decisão relatada pelo Min.Celso de Mello, consta o seguinte:

A Convenção nº 158/OIT, além de depender de necessária e ulterior intermediação legislativa para efeito de sua integral aplicabilidade no plano doméstico, configurando, sob tal aspecto, mera proposta de legislação dirigida ao legislador interno, não consagrou, como única conseqüência derivada da ruptura abusiva ou arbitrária do contrato de trabalho, o dever de os Estados-Partes, como o Brasil, instituírem, em sua legislação nacional, apenas a garantia da reintegração no emprego. Pelo contrário, a Convenção nº 158/OIT expressamente permite a cada Estado-Parte (Artigo 10), que, em função de seu próprio ordenamento positivo interno, opte pela solução normativa que se revelar mais consentânea e compatível com a legislação e a prática nacionais, adotando, em consequência, sempre com estrita observância do estatuto fundamental de cada País (a Constituição brasileira, no caso), a fórmula da reintegração no emprego e/ou da indenização compensatória. Análise de cada um dos Artigos impugnados da Convenção nº 158/OIT (Artigos 4º a 10).”

A questão material, ao que parece, ainda que encontre alguma divergência, já se resolveria nos argumentos acima, mas é de se ressaltar ainda que a Convenção 158 da OIT em nenhum momento proíbe a dispensa do trabalhador sem justa causa ou assegura estabilidade.

Explica-se: A “justificativa” prevista no artigo 4º da Convenção não afasta ou sequer se confunde com a causa justa prevista no artigo 482 da CLT (o que implicaria conflito de normas, aliás). Tais normas foram criadas para fins diversos, diga-se. Se assim fosse, haveria inconstitucionalidade na Convenção por impossibilidade do exercício da livre iniciativa (art. 170 da CF) por parte do empresário.

E não só. Essa compreensão seria também inconstitucional por conflitar com o próprio inciso I do artigo 7º que prevê expressamente que a proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa em uma relação de emprego deve se dar nos termos de lei complementar, sendo que está preverá uma indenização. Essa lei jamais existiu, no entanto.

Assim, alardear que o STF deve aprovar ou validar “medida que proíbe” dispensa sem justa causa ou mesmo que “equivaleria dizer” que não se poderá dispensar ninguém sem justa causa, como se estivéssemos diante de uma questão de efeito automático além de não ser verdadeiro sob o prisma jurídico, ainda soa como terrorismo oportunista que pode gerar efeitos no próprio mercado de trabalho já que instiga demissões por empresários receosos, além de (ainda mais) estímulo à contratação informal.

Nota

[1] (STF – ADI: 1480 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 04/09/1997, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 18-05-2001 PP-00429 EMENT VOL-02031-02 PP-00213)

André Gonçalves Zipperer é advogado, sócio do escritório Zipperer, Minardi e Pavelski; professor universitário; pesquisador da USP / GETRAB; mestre e doutor em Direito PUC-PR; membro do conselho de relações do trabalho da Associação Comercial do Paraná e da Associação dos Advogados Trabalhistas do Paraná.

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