Não, motorista de Uber não é um “empreendedor”

O uberizado não só não é um empreendedor como, de fato, é um trabalhador precarizado com facilidades flexíveis.

Lucas Casagrande , Martin A. M. Zamora e Carlos F. T. Oviedo

Fonte: DDF
Data original da publicação: 14/11/2022

  1. INTRODUÇÃO

Com a diminuição do custo transacional (procurar quem faz o trabalho, contratualizar, fiscalizar, etc), o contrato de trabalho por empreitada passou a se tornar mais utilizado. Essa diminuição de custo transacional é facilmente atribuível ao uso da internet e smartphones, que possibilitam que qualquer pessoa possa se comunicar com qualquer outra a qualquer momento.

De forma ainda mais aprofundada, há o fenômeno da uberização (ou plataformização), que se utiliza do contrato por empreitada centralizado em uma única empresa e uma única plataforma que faz a mediação do contrato. Nessa nova forma, uma miríade de conceitos é utilizada. Neste artigo, nos fixaremos na discussão de um conceito amplamente utilizado para descrever essa nova forma de trabalho: a do empreendedorismo. De fato, inúmeros artigos, tanto científicos (por exemplo, Bianquis, 2016; Nascimento, 2016; Padilha, Stein, & Lemos, 2017; Bakker & Salgado, 2016; Abílio & Machado, 2017)[1] quanto os principais jornais brasileiros têm utilizado o termo “empreendedor” para se referir ao trabalho do motorista de Uber. Ademais, a partir de 2019, os motoristas podem se cadastrar como “micro-empreendedores individuais” (MEIs) para exercerem suas profissões, o que lhes caracteriza, legalmente, como microempreendedores. No entanto, carece uma discussão sobre o que é, de fato, ser um empreendedor e seus significados.

Neste artigo, discutimos os conceitos de uberização e empreendedorismo e de como há uma incomensurabilidade entre os dois. Para isso, traçaremos o histórico do conceito de empreendedor e analisaremos o fenômeno da uberização para que passemos a entendê-los com maior precisão.

Tal discussão é relevante no atual momento histórico em que o contexto neoliberal (ou de capitalismo tardio) coloca o empreendedorismo como panaceia social. Isso não ocorre só discursivamente: de fato, os governos neoliberais tem incentivado o empreendedorismo, especialmente o micro, como saída para as graves crises sociais. Isso se dá, dentre outras formas, por meio de crédito, de políticas de isenção fiscal e de facilidade de abertura de empresas. Nas últimas décadas isso tem se tornado tão presente nas políticas públicas que até mesmo o processo de pacificação colombiana conta com apoio ao empreendedor ex-guerrilheiro. Ao fim, o empreendedorismo se apresenta como uma solução a todos problemas sociais, individualizando a responsabilidade social. Afinal, sob o jugo neoliberal, se alguém está passando fome a responsabilidade é daquele faminto – e não um problema social.

De fato, o fenômeno empreendedor é de interesse atual e amplamente aceito enquanto disciplina e conceito norteador. Procederemos, inicialmente, a analisar o que é o Uber e como se organiza o trabalho nessa plataforma que se tornou pinacular para uma nova organização laboral. A partir daí, analisaremos como os significados do vocábulo “empreendedor” foram sendo conceituados conforme a diferentes contextos.

Com isso, discutiremos que as características típicas do trabalho uberizado não são subsumíveis em nenhum dos conceitos de empreendedor. No lugar de empreendedor, o motorista de Uber é um trabalhador precário, com flexibilidade de tempo e gerência automatizada. Isso ocorre porque o trabalho uberizado é gerenciado em uma lógica taylorista, mas com um algoritmo que substitui um gerente. Ademais, incorpora aspectos do toytotismo, tais como o just-in-time e a cooptação da subjetividade.

Nota: discutimos mais aprofundadamente o taylorismo e o toyotismo na uberização no artigo original do qual este artigo deriva (Casagrande, Zamora e Oviedo, 2021).

  1. UBERIZAÇÃO

Embora tratemos aqui do motorista de Uber, compreendemos que a uberização é um fenômeno mais amplo. Trata-se do trabalhador que é mediado e gerenciado por uma plataforma algorítmica. A chamada uberização se apoia na forma de organização que surgiu com o modelo Uber de serviços de transporte de passageiros, que foi seguido por outras empresas e se estende para diversos setores da economia[2].

Quando a empresa Uber iniciou suas operações, a empresa parece ter se apropriado de uma ideia em voga naquele momento: a de que seria parte de uma economia colaborativa, só um mediador de caronas. Só mais tarde a Uber passou a definir que “caronas”, de fato, não eram dádivas entre desconhecidos, mas, sim, um serviço prestado em troca de dinheiro, aquilo que o mundo ocidental chama simplesmente de “táxi”. Mas, claro, caso esse fosse seu anúncio de antemão, é provável que sua operação fosse prontamente barrada em inúmeras cidades e países (Slee, 2017).

Quando os motoristas se cadastram na plataforma e começam a trabalhar, tornam-se, ao mesmo tempo, responsáveis por oferecer a sua força de trabalho e também pelas ferramentas necessárias para produzir a mercadoria que oferece – o carro, principalmente, mas também o smartphone, a conexão com a internet, o combustível, o seguro etc. A partir deste momento, deve-se aderir a um contrato com termos pré-definidos. Assim que começa a trabalhar, é o aplicativo que define quais passageiros deve-se atender. O motorista não pode captar clientes por iniciativa própria; deve aguardar de forma passiva as definições do aplicativo. Quanto o passageiro paga e o quanto o motorista recebe é determinado pelo algoritmo da plataforma.

Os motoristas são avaliados pelos seus clientes. Dependendo da nota obtida, o motorista pode ser suspenso ou descredenciado. Há ainda outro motivo que pode levar ao desligamento parcial ou total de um motorista que é a recusa de chamados. Cada motorista tem um número máximo de corridas que pode recusar.

Assim, é possível entender que a relação dos motoristas com a plataforma é de subordinação? A Uber vem respondendo a esse questionamento pela negativa (Pelegi, 2019)⁠. De acordo com a empresa, os motoristas não são empregados, mas “parceiros”, uma vez que são donos dos seus veículos e, assim, não vendem a sua força de trabalho em troca de um pagamento regular na forma de salário. Dessa forma, os motoristas vendem um serviço que é pago por quem o consome: os passageiros. A taxa que deve ser paga à Uber é uma remuneração à plataforma pela sua mediação. Além disso, são os motoristas que decidem quando e por quantas horas ficarão conectados à plataforma recebendo chamados de passageiros. Por último, eles escolhem com qual plataforma querem trabalhar. Pela lógica apresentada, é possível chegar à conclusão que não é a Uber que contrata os motoristas, mas são os motoristas que contratam a Uber.

De acordo com Franco e Ferraz (2019)⁠, a uberização produz uma nova forma de mediação da subsunção do trabalhador, o qual assume a responsabilidade pelos principais meios de produção da atividade produtiva. Para os autores, o fato de não haver uma jornada de trabalho previamente fixada, não desaparece com os papéis de comprador e vendedor de força de trabalho. O que de fato se altera é que o capital que deveria ser adiantado pela empresa na condição de capital constante, agora é exigido ao trabalhador. A partir do conceito de salário por peça, entendem que é um “salário por corrida”.

A organização do trabalho uberizada flexibiliza ao extremo a disposição do trabalhador. Ele só será acionado quando houver demanda para o seu perfil, relacionado à sua localização e ao tipo de veículo. Ao mesmo tempo, os trabalhadores das plataformas estão totalmente desprovidos de qualquer proteção social, sem contribuir para a previdência – a não ser que façam por conta própria – sem possuir adicional noturno, horas-extras, décimo terceiro salário, férias remuneradas e, muito menos, seguro-desemprego. Quando o trabalhador é desligado da plataforma, a desvinculação acontece sem qualquer aviso prévio. É como se o trabalhador nunca tivesse ali existido.

E isso tudo ocorre sob a ideia de que o motorista é, na verdade, um empreendedor parceiro. Mas então, o que seria um empreendedor?

  1. O QUE É UM EMPREENDEDOR?

O conceito “empreendedor” surge com a emergência do mercantilismo, sendo utilizado no senso comum anteriormente a Richard Cantillon (1680-1734). Desde então, o conceito tem sido readaptado, reutilizado e revisto, mas guarda em comum algo que lhe permanece estável: a finalidade legitimadora das relações econômicas emergentes. Por isso, o rigor conceitual que advogamos aqui não é só um preciosismo acadêmico, mas um meio necessário para analisar a realidade com maior potencial emancipador humano.

Tratamos, adiante, de fazer uma genealogia do conceito a partir de três momentos históricos. Não estamos supondo que os conceitos trabalhados abaixo foram unânimes em seus contextos, nem que não existiram outras conceituações, mas, sim, que estamos, para fins analíticos, tratando a ideia de empreendedorismo como uma evolução histórica pari passu com o capitalismo.

3.1 O primórdio conceitual: Cantillon

Etimologicamente, “empreendedor” advém do vocábulo francês medieval “enterprendre”, que significava “fazer algo”. Deriva das raízes “in” (para dentro) e “prendĕre”, o que também pode ser interpretado como “tomar para si”. Enquanto adjetivo, segundo Hoselitz (1951), atribuía a qualidade de uma pessoa altamente ativa. Assim, podemos dizer que no decorrer de um milênio a palavra parece não ter perdido seu espírito inicial, embora seu significado pareça derivar conforme veremos.

Richard Cantillon, nascido em 1680 na Irlanda e imigrante francês, parece ser o primeiro teórico a se fixar no conceito de empreendedor e seu significado. Tendo um histórico bastante agressivo comercialmente, Cantillon escreve seu famoso Essai sur la nature du commerce en général, publicado tardiamente em 1756. O empreendedor, para ele, era como uma espécie de ativador do mercado. Com ele, o mercado sai de sua inércia. Sua visão de empreendedor, diferentemente de autores como Adam Smith (1723-1790), não era baseado numa ideia de mercado que se auto-regula, mas, sim, em um mercado que constantemente tende a uma inércia que é rompido pelo empreendedor (Murphy, 1986). Por claro, sua visão derivava da oposição a uma vida subsistente e, portanto, alheia ao mercado – algo comum ao seu contexto histórico marcado por ideias de modernidade.

Para Cantillon, o central no empreendedor era a natureza de incerteza da sua atividade. O empreendedor era uma espécie de ser hiperativo que apostava em mercadorias que não conhecia o valor. Mas, acima de tudo, apostava sua vida em aventuras. Afinal, o valor dessas mercadorias em um mundo de forte subsistência não era, em si, a mercadoria, mas o exótico.

É claro que a visão de Cantillon do empreendedor beira a idealização aventureira, que podemos visualizar por meio da imagem de Marco Polo (1254-1324), o empreendedor-desbravador de mercados. Ao seu tempo, Marco Polo arriscara a própria vida em viagens que duravam meses e até anos, levando especiarias e seda do oriente extremo para Europa. Para isso, atravessava regiões desérticas controladas por hashashins, conheceu e se afeiçoou ao imperador mongol Kublai Khan (neto de Gengis Khan), navegava o Mediterrâneo e o Arábico, atravessou a Pérsia e foi ao que hoje é Myanmar, China, Singapura, Indonésia e Sri Lanka. Ao seu tempo, Marco Polo fez o que era inimaginável a muitos (Polo, 1996).

O grande feito do mercador veneziano não foi enriquecer – embora também o tenha feito – mas, sim, transpor metade do planeta, lidando com culturas tão distintas e com riscos tão elevados. O empreendedor era um agente de transformação social e econômica, um habitante do imaginário social. Era o homem que trazia ao mundo vernáculo as históricas idílicas das maravilhas terrenas inalcançáveis. O empreendedor de Cantillon não era quem assumia tão somente o risco de quebrar – era quem assumia o risco de morrer por inanição, por violência ou por acidentes de um mundo desconhecido.

Cantillon estava usando o conceito, já naquele momento, como um invólucro discursivo, como aparato ideológico. O momento histórico europeu era o da formação moderna, da Revolução Industrial e cercamento dos rebanhos e da constituição de um apartheid homem/mulher como o que trabalha fora e a que trabalha em casa.

Nesse contexto histórico, o empreendedor é um conceito elogioso, apologético e celebrativo de um novo mundo: o do capitalismo moderno incipiente.

3.2 O conceito clássico: Schumpeter

Durante a Segunda Revolução Industrial, transição entre o século XIX e XX, emerge o conceito de empreendedorismo que hoje podemos tratar como o conceito clássico, vinculado no imaginário social como derivado de um processo inovador. O pensamento liberal daquele momento histórico centrava boa parte de sua visão econômica em Léon Walras (1834-1910).

Segundo o pensador e formulador da Teoria do Equilíbrio Geral, o mercado poderia ser compreendido na metáfora de grande leilão, em que os preços tenderiam a um equilíbrio na medida em que sua atuação não fosse refreada. Em outras palavras, tendendo ao infinito, o mercado se equilibraria e se consolidaria de uma forma estanque, reduzindo progressivamente os lucros (Walras, 1996). O processo de agência humana seria não mais do que achar brechas de leilões ocultos. Elementos como o desenvolvimento tecnológico não são considerados nesse modelo econômico e são entendidos, entendidos como fatores exógenos.

Frente a isso, Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) adiciona o fator tecnológico, por meio do empreendedor, aos modelos liberais da época. Para o autor, as mudanças relevantes na economia são desencadeadas pelo empreendedor. Essa nova teoria da dinâmica econômica está centrada na figura do empreendedor como agente da inovação. Para ser digno desse título, não basta investir capital em qualquer negócio. O empreendedor schumpeteriano é responsável pelo desenvolvimento de novos produtos para o mercado, por meio de inovações na combinação mais eficiente dos fatores de produção. Assim, o autor chegou na seguinte tipificação da inovação: 1. introdução de um novo bem; 2. introdução de um novo método de produção; 3. abertura de um novo mercado; 4. a conquista de uma nova fonte de matéria-prima; e 5. criação de uma nova organização de qualquer indústria (Swedberg, 2000).

Essas inovações, ao contrário do pensamento marginalista, não buscam o equilíbrio, ao contrário, perturbam o equilíbrio estabelecido. O sujeito dessa transformação é justamente o empreendedor. Daí advém o conceito de destruição criativa, que é a introdução de tecnologias disruptivas e inovadoras que, por um lado, proporcionam saltos produtivos e, por outro, destroem antigas formas de produzir – tal como o carro frente à charrete; o computador frente à máquina de escrever; e os robôs industriais frente aos operários.

Se Cantillon e seu conceito entravam em voga em um momento histórico que a burguesia ascendia e substituía progressivamente a aristocracia feudal, Schumpeter e seu empreendedor entram em cena para legitimar o industrial que promovia a Segunda Revolução Industrial. As linhas de montagem estavam constituindo, por um lado, um salto produtivo, mas, por outro, uma mudança substancial no modo de vida. O empreendedor era a figura que tornava isso aceitável, palatável, naquele momento histórico. Era o mensageiro da novidade de Schumpeter.

3.3 O conceito corrente: o neoliberalismo empreendedor

Em seu estágio atual, o capitalismo neoliberal atribui a um agente a função de catalisar o processo de alocação de recursos e de competição. Trata-se do novo conceito de empreendedor, postulado por Kirzner (1973): aquele que encontra brechas entre oferta e demanda, atuando nos vazios de oferta e, assim, normalizando o mercado por meio de uma aposta futura incerta. Nesse sentido, o que caracteriza ao empreendedor é seu permanente estado de alerta para identificar oportunidades de negócio no mercado. Trata-se de uma questão de percepção individual, a partir da qual o empreendedor aproveita oportunidades e, de passo, reestabelece o equilíbrio entre demanda e oferta. As supostas virtudes do empreendedor são centrais para o rejuvenescimento moral do empreendedorismo e, assim, do próprio capitalismo. Nesse processo, se internaliza em cada um de nós valores como assumir o risco e a autossuficiência, em um processo de responsabilização individual por problemas sociais.

Aqui, diversos autores do neoliberalismo fortalecem a visão do empreendedor neoliberal como solução econômica, como em Hayek, Mises, Casson e Drucker. Em Hayek (1948), a figura do empreendedor aparece de uma forma prática, um do-er, um ser provido de conhecimento prático e que ignora as teorias e o mundo abstrato. Já em Mises (1996), a figura do empreendedor é central para que a economia flua. Seu argumento, por vezes, lembra o de Schumpeter na medida em que há a pressuposição de um mercado estável que necessita da figura do empreendedor para se renovar. No entanto, Mises argumenta que o empreendedor é a figura que se antecipa a eventos incertos — e não como a figura que inova por meio da destruição criativa (Swedberg, 2000).

Mas para além dessas diferenças teóricas, importa aqui perceber as consequências materiais do discurso propagado. As ciências sociais e econômicas não são só intérpretes do mundo; elas criam o mundo em que vivemos também. Na visão do empreendedor neoliberal se percebe que há uma ecologia populacional em constante rotação. Dito de outra forma, é necessário que vários empreendedores vão a falência para que outros possam ser bem sucedidos, tudo operado por uma seleção de mercado. Afinal, prever demandas futuras é, na melhor das hipóteses, uma aposta educada.

O empreendedor neoliberal se torna, a partir da metade do século XX, o modelo que visa substituir o bem estar social nos países ricos. No lugar de proteção social, deveríamos todos estar apostando em mercados futuros. Assim, há uma conotação profundamente moral do empreendedorismo neoliberal, que introjeta em cada indivíduo a ideia de sucesso por suas virtudes e seus fracassos por seus erros. Assim, o miserável deixa de ser um desprovido e se torna um ser que errou. Como Ortega (2014) salienta, o conceito de empreendedor neoliberal se tornou um imperativo moral.

Dessa forma, empreendedorismo se torna o projeto de virtude do homem neoliberal.

No entanto, mesmo o conceito neoliberal de empreendedor, um conceito bastante amplo que abarca tanto quanto possível, parece não caber para designar o trabalho do motorista de Uber. Não basta fazer algo para ser empreendedor, caso contrário o conceito nada significaria. O que designa o empreendedor neoliberal é a disposição de aproveitar oportunidades e se projetar em antecipação à reação do mercado. Trata-se de reagir ao mercado antes que o mercado faça o leilão. E, como o futuro é incerto por natureza, só a agência criativa pode dar conta desse feito.

CONCEITOS DO EMPREENDEDORISMO

 Empreendedor originárioEmpreendedor clássicoEmpreendedor neoliberal
Autor centralRichard Cantillon (1756)Schumpeter (1981)Kirzner (1973)
Contexto históricoMercantilismo europeu, emergência da burguesia comercial na Europa.Formação das grandes corporações, mecanização das indústrias, linha de montagem, emergência da burguesia industrial no Ocidente.Desmonte do Estado de bem-estar social na Europa; neoliberalismo.
Características do empreendedorAventureiro, assume riscos (mesmo de vida), percorre distâncias, cria mercados.Inovador, cria novas formas de produzir ou vender mesmo que destruindo meios de produção ou mercados antigos (destruidor criativo).Apostador precário, aposta em um mercado futuro com informações insuficientes. É selecionado pelo meio conforme acertos e erros (seleção ecológica).
Quem é o empreendedor (exemplos)Marco PoloHenry FordDono do food truck mais próximo.
Motorista de Uber é este empreendedor?Não, porque não assume riscos vitais baseados na assimetria de informações.Não, porque não cria nenhum sistema novo de produção – não “inova”.Não, porque não aposta no mercado futuro nem é selecionado ecologicamente por isso.
Fonte: Casagrande, Zamora e Oviedo (2021)

Em um primeiro momento, é verdade, o motorista de Uber pode parecer esse empreendedor precário neoliberal. Mas mesmo esse conceito amplo ainda necessita de uma ideia de agência humana: o empreendedor assume riscos, aposta em um mercado futuro incerto. O motorista, teleguiado por um algoritmo, assim o faz? Ao que tudo indica, não. Seu trabalho é seguir o que o aplicativo ordena. Em momentos de baixa demanda, o motorista pode observar, pela plataforma, onde há demanda e se dirigir até lá. Isso não é uma agência criativa, mas um comportamento condicionado. A tal ponto que o projeto último da empresa Uber é, de fato, robotizar a frota.

Se o motorista de Uber não é empreendedor, temos de ter algumas categorias para compreender o que ele é, conceitualmente. Para isso, devemos separar o que, de fato, diferencia o trabalhador uberizado do trabalhador celetista moderno.

Um primeiro critério seria que o uberizado, ao contrário do celetista, necessita possuir as ferramentas de trabalho que, muitas vezes, são confundidas com os meios de produção (como o carro e o smartphone). Essa distinção é o que produz muitas crenças de que há um processo de empreendedorismo. No entanto, é importante notar que o meio de produção é, de fato, o aplicativo – o carro é só uma ferramenta de produção. A necessidade de ser responsável pelas ferramentas de trabalho é só mais uma faceta típica da precarização – e não uma faceta de empreender.

Um segundo critério é que o uberizado recebe, ao contrário de um trabalhador celetista, por empreitada (geralmente calculado em uma fórmula que utiliza como fatores quilômetro rodado, tempo de trabalho e tarifa dinâmica). Em outros casos que não envolvam transporte, os fatores são basicamente “peça produzida”, tempo trabalhado e tarifa dinâmica. Aqui, cabe salientar que o pagamento por empreitada não é novidade no trabalho assalariado, tendo inúmeros relatos que remontam há mais de séculos.

Um terceiro critério é que o uberizado possui liberdade de tempo de oferta (quanto tempo trabalhará e a que horas), mas não possui liberdade quanto ao trabalho em si, respondendo a chamados de forma a sequer ter opção entre locais, tipo de pessoas, tarifa a cobrar ou qualquer outra variável. Ele pode negar o trabalho, mas isso o fará perder pontos na plataforma, diminuindo suas chamadas futuras e podendo lhe render um desligamento da plataforma. Esse é um critério importante para distinguir o uberizado do mero trabalho precário, já que isso é, de fato, uma flexibilidade que os trabalhadores uberizados costumam zelar. No entanto, isso não é um regime de produção particularmente novo, sendo, na verdade, a implementação da disponibilidade da mão de obra just-in-time toyotista em uma escala jamais imaginada.

Finalmente, um último critério, é de que o uberizado não possui uma rede de proteção social – não há recolhimento de previdência patronal, não há descanso remunerado, não há cobertura de dias de invalidez médica nem outro tipo de proteção por parte da empresa. Isso é mantido sob a lógica de que o uberizado não é um trabalhador, mas um parceiro equânime da Uber, o que é evidentemente falso.

Com base nesses critérios e na revisão do conceito de empreendedor, torna-se claro que o motorista de Uber não é empreendedor, nem pelo conceito mais amplo dos três apresentados nem mesmo pelo conceito mais legitimador dessa atual fase do capitalismo. No lugar disso, ele é um trabalhador precário, com flexibilidade de tempo e gerência automatizada. O que nos leva à seguinte questão: se ele é um trabalhador, a que regime de produção ele está subordinado?

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A uberização é um fenômeno novo e, por isso, a reflexão sobre o que significa e seus impactos ainda é incipiente. Por conta disso, a reflexão sobre essa nova forma de organizar o trabalho parece estar ainda se situando.

O motorista de Uber é um trabalhador – com especificidades típicas dos novos arranjos tecnológicos – e não, em nenhum conceito explorado, um “empreendedor” como muitos autores utilizam. Temos motivos para crer de que o termo empreendedor sirva como um tampão conceitual da precariedade, conferindo legitimidade para toda relação de exploração.

Mesmo em um conceito extremamente amplo – o conceito neoliberal – o empreendedor é entendido como alguém que, por meio da tentativa e erro, se antecipa a movimentos do mercado. A lógica nesse conceito é que há uma espécie de ecologia populacional que selecionará os empreendedores que sabem se antecipar corretamente e descartar os que erram. Sob esse conceito, é até possível dizer que o taxista autônomo seja um empreendedor, já que precisa se antecipar aos locais de movimento e buscar mercados incertos. Há, nesse conceito neoliberal, um “toque” de criatividade e inventividade, embora restrita a pequenos movimentos antecipadores das demandas do mercado. No entanto, espera-se que o motorista de Uber siga as demandas do aplicativo ao invés de ser inventivo – na verdade, o aplicativo recompensa quem segue suas demandas por meio da tarifa dinâmica e do sistema de pontuação.

Assim, podemos afirmar que o motorista de Uber não é, em entendimento histórico ou teórico algum, um “empreendedor”. Alertamos que outras proposições conceituais como “autogerenciado subordinado” (Abílio, 2019) também são pouco fidedignas ao fenômeno e tendem a legitimar a exploração. Embora tal conceito reconheça a subordinação, parece crer que a gestão do trabalho é feita pelo próprio motorista, o que não é o caso. Uma pista de que esses conceitos que supõem agência humana criativa não se aplicam é o projeto da própria Uber de automatizar os automóveis totalmente. No lugar da agência humana, o que se espera é justamente um trabalhador treinado.

Com essas variáveis podemos inferir que o uberizado não só não é um empreendedor como, de fato, é um trabalhador precarizado com facilidades flexíveis. Mas note-se que para além do uso de suas ferramentas e da ausência de assistência, há duas variáveis a serem exploradas: a microgestão do seu trabalho feita por meio do algoritmo e a disponibilidade de trabalhadores e da plataforma just-in-time.

O primeiro, remonta o gerenciamento taylorista. Só que, ao invés de um capataz ou supervisor, aqui temos um algoritmo que automatiza o trabalho de microgestão. O segundo, é típico de um toyotismo aprofundado, de um sonho de cooptação da subjetividade plena. Exploramos melhor estes pontos no artigo que deu origem a este[3].

Por certo, a conceituação imprecisa legitima o discurso de precariedade do trabalho. Tratar um trabalhador como empreendedor é instrumental a quem quer abnegar direitos trabalhistas, proteção social ou até mesmo previdência ao trabalhador. Afinal, um empreendedor “assume riscos” e, como tal, deve tomar suas consequências. Mas a ideia de assumir riscos só faria algum sentido se houvesse uma recompensa possível acima do usual – o que também não ocorre. Parece-nos que tal imprecisão não é somente um erro conceitual, mas, sim, uma disputa de significado com vistas a legitimação da exploração.

Referências

Referências

Abílio, L. C. (2019). Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas18(3), 41–51. Doi:10.5027/psicoperspectivas-Vol18-Issue3-fulltext-1674

Abílio, L., & Machado, R. (2017). Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia. IHU On-Line, (503), 20-28.

Bakker, B., & Salgado, J. (2016). “Quando a crise faz o empreendedor”: Desemprego e empreendedorismo no jornal O Estado de S. Paulo. Revista de Comunicação e Cultura15(2), 590-608. doi:10.9771/1809-9386contemporanea.v15i2.17858

Bianquis, G. (2016). Le chauffeur Uber, entrepreneur précaire ? Regards croises sur l’economie2(19), 155-159. doi:10.3917/rce.019.0155

Casagrande, L., Zamora, M. A., & Oviedo, C. F. (2021). Motorista de Uber não é empreendedor. RAM. Revista de Administração Mackenzie22https://doi.org/10.1590/1678-6971/eRAMG210003

Franco, D. S., & Ferraz, D. L. da S. (2019). Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE.BR17, 844–856. doi:10.1590/1679-395176936

Hayek, F. A. (1948) Individualism and economic order. London: Chicago University Press.

Hoselitz, B. F. (1951). The early history of entrepreneurial theory. Explorations in Economic History3(4), 193.

Kirzner, I. M. (1973). Producer, entrepreneur and the right to property. Symposium on the origins and development of property rights, Institute of Humane Studies, San Francisco, CA, January, 1973.

Mises, L. von. (1996). Human action: A treatise on economics (Vo. 2). Indianapolis: Liberty Fund.

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Nascimento, L. F. (2016). O caso Uber no Brasil: Um ensaio de sociologia digital. Critical Reviews on Latin American Research5(1), 88-90.

Padilha, F., Stein, A., & Lemos, C. (2017). Inovação e empreendedorismo. Revista Eletrônica em Gestão e Tecnologia3(1).

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Pelegi, A. (2019, fevereiro). Justiça do Trabalho de BH reconhece vínculo de emprego entre Uber e motorista. Diário do Transporte. Recuperado de: https://diariodotransporte.com.br/2019/02/04/justica-do-trabalho-de-bh-reconhece-vinculo-de-emprego-entre-uber-e-motorista/

Polo, M. (1996). O livro das maravilhas: A descrição do mundo. Porto Alegre: L&PM.

Slee, T. (2017). Uberização: A nova onda do trabalho precarizadoSão Paulo: Elefante.

Swedberg, R. (2000). The social science view of entrepreneurship: Introduction and practical applications. Entrepreneurship: The Social Science View, 7-44. Recuperado de: http://people.soc.cornell.edu/swedberg/2000%20The%20Social%20Science%20View.pdf

Walras, L. (1996). Compêndio dos elementos de economia política pura. São Paulo: No

Notas

[1] Há uma infinitude de termos derivados de empreendedor que também aparecem como “microempreendedor”, “nano-empreendedor”, “empreendedor de si próprio”, entre outros. Neste artigo, focaremos no axioma conceitual, tratando as derivações como problemas derivados.

[2] A uberização do trabalho já é um fenômeno global e que vem demonstrando a sua capacidade de englobar diferentes atividades. Além dos aplicativos de transporte e de entrega, há ainda serviços como o de limpeza, cuidado com animais, logística etc. Ao que tudo indica, entre o envio deste artigo para publicação e sua realização, surgirão novas empresas baseadas na lógica uberizada.

[3]O artigo na íntegra pode ser acessado em: https://www.scielo.br/j/ram/a/xm94xnh5ygKkkLxYDr8t4ck/abstract/?lang=pt# .

Lucas Casagrande é Professor da Escola de Administração da UFRGS.

Martin A. M. Zamora é Professor da Escola de Administração da UFRGS.

Carlos F. T. Oviedo é Professor da Facultad de Psicología da Universidad Del Valle – Cali, Colômbia.

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