Na era da terceirização, o predomínio do trabalho como ‘labor’, e não como ‘opus’

A marcha da reforma trabalhista em direção à terceirização caminha a passos largos no Congresso, levando em sua bagagem um histórico que alia trabalho análogo à escravidão com serviços terceirizados em 80% dos casos conforme pesquisa realizada entre 2013 e 2016. “Em poucas palavras, a questão é que reforma trabalhista realizar? A que está sendo proposta pelo governo federal tem como finalidade atender os reclamos empresariais de reduzir custos e aumentar a flexibilidade das relações de trabalho, o que tende a produzir efeitos devastadores sobre o tecido social brasileiro”, aponta José Dari Krein, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. O professor e pesquisador ainda ressalta que a medida, justificada sob a égide do aumento dos postos de trabalho, é insustentável.

“A reforma em discussão no Congresso retira direitos e não cria empregos. Por motivos humanos e civilizatórios, a proposta de reforma do governo federal precisa ser combatida. Ela serve para desenvolver negócios privados, um mercado, mas mata a perspectiva de construir uma nação”, pondera. A cortina de fumaça que ganha densidade com a recessão econômica serve para aprofundar ainda mais as desigualdades e retirar direitos dos trabalhadores. “É uma flexibilidade para baixo, para retirar direitos. É uma inversão nas hierarquias das regras em que o particular (empresa ou categoria) se sobreponha ao geral (a sociedade)”, complementa.

O trabalho na era da terceirização esvazia-se ainda mais de sentido à medida que prevalece a noção de labor, termo que designa um trabalho árduo e pesado, à de opus, mais relacionado à criação de algo socialmente e culturalmente relevante. “Grande parte das ocupações criadas nos anos recentes são desprovidas de conteúdo que dê sentido à vida”, avalia Krein.

José Dari Krein é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, tem mestrado e doutorado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as consequências de se aprovar a terceirização na atividade fim?

José Dari Krein – Na prática significa que não haverá mais travas para as empresas utilizarem a terceirização em qualquer etapa do seu processo de produção ou realização da atividade econômica. A terceirização é uma forma de contratação mais vantajosa e barata para as empresas, mas deixa os trabalhadores em situação de maior precariedade e insegurança. Os possíveis impactos com a generalização da terceirização são:

1. Os estudos mostram que o terceirizado (que está protegido pela mesma lei geral dos demais trabalhadores) apresenta condições de trabalho piores, os salários são menores, a jornada é mais longa, as perspectivas de trajetória profissional ficam limitadas e as expectativas de conseguir tempo de contribuições para aposentadoria se tornam mais complicadas. Ou seja, as condições de vida e de trabalho dos terceirizados são afetadas negativamente;

2. É um mecanismo que facilita o avanço da fraude, pois é mais difícil de fiscalizar, uma vez que as atividades são pulverizadas em milhares de pequenas empresas. Inclusive, há comprovação de que o trabalho análogo ao de escravo combina com terceirização em praticamente 80% dos casos inspecionados entre 2013 e 2016;

3. Contribui para desestruturar um mercado de trabalho historicamente pouco organizado e marcado por baixos salários, alta informalidade, desigualdade e alta rotatividade;

4. Fragiliza a capacidade de ação coletiva, pois o avanço da terceirização retira trabalhadores de categorias com históricos de conquistas e os coloca em outra categoria sem tradição sindical, além de dividir ainda mais os trabalhadores em vários sindicatos. Ou seja, enfraquece os grandes sindicatos e divide ainda mais os trabalhadores;

5. Também esvazia a negociação coletiva, pois sempre estará colocada a ameaça de a empresa subcontratar setores que apresentam maior mobilização ou que conseguiram conquistas trabalhistas via greve. Ou seja, pode tornar a greve um instrumento sem eficácia;

6. Fragiliza as contas públicas e inclusive compromete as fontes de financiamento da seguridade social, pois as terceirizadas podem ser pulverizadas em micro e pequenas empresas, enquadradas no Simples, com uma carga tributária menor e, principalmente, estimular a contratação da empresa como pessoa jurídica, em que o valor dos tributos, especialmente com MEI [Microempreendedor Individual], é muito baixo.

Ou seja, é uma medida contraproducente em relação ao que o governo pretende na reforma previdenciária. Pois além da possibilidade de a terceirizada pagar menos encargos sociais e impostos, ela tende a estabelecer contratos mais sazonais, que vão ser rompidos com mais intensidade, o que afeta a arrecadação, mas, principalmente, a possibilidade de o trabalhador conseguir tempo de contribuição para um dia se aposentar;

7. Deixa o trabalhador em uma condição mais vulnerável, insegura, o que pode ter efeitos negativos sobre as condições de saúde e de vida das pessoas.

Portanto, é uma regulamentação que afeta a vida e as condições de trabalho das pessoas e ainda coloca dificuldades adicionais para pensar qualquer processo de construção da nação ou de modelo de desenvolvimento com inclusão social e valorização do trabalho.

IHU On-Line – Afinal de contas, a reforma trabalhista é necessária? Que questões urgentes deveriam entrar na pauta?

José Dari Krein – A realidade do trabalho está em constante mudança, pelo progresso técnico e pela criação de novas atividades econômicas e ocupações. O problema é que nos últimos 30 anos, o avanço técnico e a capacidade de produção de bens foi utilizada para criar um ambiente de maior pressão sobre os trabalhadores para aceitar, em geral, um padrão de regulação do trabalho mais flexível, instável e precário. Por exemplo, a redução da jornada do ponto de vista formal não se alterou, mas na realidade, nos países em que houve avanços, houve um aumento dos contratos parciais e temporários que reduziu horas de trabalho, e ao mesmo tempo avançou a parcela das pessoas que trabalham além da jornada legal. Ou seja, há uma tendência de compatibilizar as relações de trabalho com as características do capitalismo contemporâneo, com uma economia mais desregulamentada, financeirizada, uma produção de bens e serviços mais internacionalizados, que apresenta maior instabilidade, em que as empresas tenham liberdade de ajustar a relação de emprego às suas necessidades, tendo como referência o padrão de custos do trabalho existente nos países asiáticos.

Em poucas palavras, a questão é que reforma trabalhista realizar? A que está sendo proposta pelo governo federal tem como finalidade atender os reclamos empresariais de reduzir custos e aumentar a flexibilidade das relações de trabalho, o que tende a produzir efeitos devastadores sobre o tecido social brasileiro, sem, no entanto, trazer os resultados esperados de melhorar as condições de competitividade e produtividade da economia, com efeitos sobre a geração de emprego.

A referência para analisar as proposições em curso não podem ser a funcionalidade econômica, mas a natureza histórica da regulação, que é garantir uma condição de dignidade a quem precisa se assalariar para poder manter a si e sua família. Portanto, a análise das medidas é feita utilizando como critérios se elas contribuem para ampliar a proteção social e redistribuir a riqueza gerada ou para alargar a liberdade da empresa na determinação das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho.

As regras foram criadas para colocar limites ao empregador na utilização do trabalho na perspectiva de haver uma sociedade civilizada e a pessoa humana ter sua condição de dignidade assegurada. Como lembrou Polanyi [1], a sociedade não pode aceitar que o trabalho não pode ser uma mercadoria transacionada no mercado, pois ela envolve uma vida humana. A reforma em discussão no Congresso retira direitos e não cria empregos. Por motivos humanos e civilizatórios, a proposta de reforma do governo federal precisa ser combatida. Ela serve para desenvolver negócios privados, um mercado, mas mata a perspectiva de construir uma nação.

IHU On-Line – Quais são os riscos ou as implicações de se sobrepor as negociações trabalhistas à legislação? Por outro lado, em que medida isso já faz parte da rotina dos trabalhadores hoje?

José Dari Krein – Hoje é permitido aos atores sindicais estabelecer autonomamente regras para reger as relações de emprego desde que acrescente direitos ao patamar inscrito na legislação. É uma flexibilidade para cima. O que se pretende é que as tratativas possam negociar restringindo ou até derrogando o que está inscrito na legislação. É uma flexibilidade para baixo, para retirar direitos. É uma inversão nas hierarquias das regras em que o particular (empresa ou categoria) se sobreponha ao geral (a sociedade).

A prevalência do negociado sobre o legislado não fortalece os sindicatos, pois com ela estão vindo outras propostas que fragilizam os sindicatos, tais como a regulamentação da representação no local de trabalho, que é independente do sindicato e pode exercer o papel negocial dos sindicatos e resolver conflitos trabalhistas (suprimindo o papel da Justiça do Trabalho), os estrangulamentos do financiamento sindical e a fragmentação da categoria com a terceirização. Tudo isso em um contexto de crise econômica e de alto desemprego, em que o movimento sindical tende a ter, no âmbito da categoria, uma postura defensiva, pois a prioridade é negociar com a expectativa de manter o emprego e não de assegurar direitos.

A experiência mostra que muitos sindicatos assinaram acordos bastante lesivos aos trabalhadores. Por exemplo, acordos prevendo uma jornada de 12 horas diárias de segunda a sábado. Outro caso é o sindicato excluir uma parte dos trabalhadores do adicional de periculosidade. Exemplos não faltam. Alguns são revertidos na Justiça do Trabalho, quando esta é acionada.

Boas negociações pressupõem a existência de sindicatos representativos, o que é um problema, pois parte significativa das entidades sindicais brasileiras são cartoriais. Combinado com contexto econômico, político e ideológico desfavorável ao trabalho e à ação coletiva, a instituição da prevalência do negociado pode ter um efeito devastador sobre a estruturação do mercado de trabalho e o tecido social.

IHU On-Line – Caminhamos para o fim da sociedade fordista, de garantia no emprego e relações contratuais estáveis?

José Dari Krein – Estamos em uma sociedade de profundas mudanças, em que as bases do que é denominado de fordismo foi desconstruído nos anos recentes. Ou seja, uma das principais mudanças foi a pressão para desconstituir direitos e diminuir a proteção social em todos os países mais avançados. Um processo que ocorreu por mudanças no marco legal ou por esvaziamento das negociações coletivas ou diminuição da sua abrangência. Por exemplo, nos Estados Unidos, como nunca houve grande proteção a partir do Estado e a seguridade construída estava na negociação coletiva, houve uma brutal redução da cobertura e hoje somente 7% dos trabalhadores privados estão cobertos por contratos coletivos de trabalho.

Os estudos mostram que parte importante dos trabalhadores está submetida a condições de trabalho muito ruins. O aumento da produtividade não se reverteu em favor dos salários e houve forte aumento da desigualdade. O mundo da instabilidade e insegurança a que os trabalhadores estão submetidos, em um contexto de globalização e deslocamento produtivo para regiões com menores custos, possibilitados pelas inovações tecnológicas, é o que impera. Ou seja, avançou-se na desproteção, sem no entanto, alterar a condição básica da relação de emprego, que é o assalariamento. Ou seja, o assalariamento continua sendo a relação predominante, mas expressando, do ponto vista jurídico, em diferentes modalidades de contratação, mais temporária, sazonal, sem proteção, terceirizada. Assim como se avançou na flexibilização da jornada e na remuneração variável.

A questão fundamental é que as travas regulatórias perderam forças e caminha-se para ajustar as relações de emprego para o que é bom aos negócios. Neste sentido, é um período de vingança do capital sobre o trabalho, pois foram erodidas as bases para a constituição de uma sociedade com inclusão e distribuição mais equitativa da riqueza gerada, inclusive alterando a concepção dos indivíduos sobre a sua perspectiva de vida no trabalho, como nos mostram Laval [2] e Dardot [3] – Nova Razão do Mundo (São Paulo: Boitempo, 2016) –, em que estamos numa sociedade da concorrência permanente e de fragilização das instituições que historicamente se contrapuseram à lógica de organização do trabalho em uma sociedade de mercado. É um mundo do trabalho mais fragmentado, instável e flexível, com uma reconfiguração da classe trabalhadora, em que as ocupações estão fortemente localizadas nos serviços, que é mais pulverizado e com menor tradição sindical. Não é uma construção decorrente simplesmente do processo de organização da produção e do trabalho, mas resultante da lógica de como se organiza o processo de acumulação no capitalismo contemporâneo.

IHU On-Line – Como pensar uma sociedade da inclusão social via emprego se o mesmo está em crise? Quais são as alternativas?

José Dari Krein – Não existe um determinismo tecnológico e inexorável na produção de bens e da estrutura social. Infelizmente, continua-se em uma sociedade capitalista, em que o emprego (ou outra forma disfarçada de subordinação) continua sendo a forma predominante de grande parte das pessoas obterem renda para sobreviver. O que se reduziu foram as proteções para os que trabalham e os sindicatos foram fragilizados. Houve uma efetiva reconfiguração da classe trabalhadora, criando dificuldades adicionais para ação coletiva. Mais, essas alterações precisam ser entendidas em um contexto mais amplo – político, econômico e ideológico – em que se viabiliza a acumulação capitalista, em que os ganhos de produtividade tendem a eliminar postos de trabalho e a criar outras atividades, em que os indivíduos continuam vulneráveis e inseguros. As manifestações de precariedade, possivelmente, não mais se refletem nas taxas de desemprego, pois parte das pessoas simplesmente não está mais buscando se inserir ou aceita qualquer atividade para ter acesso a políticas de transferência de renda ou, simplesmente, por não ter opção.

Grande parte das atividades oferecidas são pouco edificantes, e a crescente desocupação aumenta a perda de significado do trabalho como realização pessoal. É um mero meio para conseguir uma renda. Grande parte das ocupações criadas nos anos recentes são desprovidas de conteúdo que dê sentido à vida. Como é crescente a ausência de emprego, há, especialmente nos jovens, a tendência de avançar o desalento. Ao mesmo tempo, avança-se na lógica de incutir nos trabalhadores a visão de empreendedorismo e empregabilidade como saída para um mercado de trabalho hostil e escasso. O que constitui um grande problema para construção de identidade coletiva. Ou seja, as características do capitalismo contemporâneo são absolutamente desfavoráveis ao trabalho e à ação coletiva.

Neste contexto, as alternativas que se pode apontar são:

1) a resistência contra a desconstrução dos direitos sociais, pois a sua eliminação tem consequências sobre o tecido social e as possibilidades de lutar no futuro para qualquer projeto com inclusão social, e que, ao menos, os ganhos de produtividade sejam repartidos com os trabalhadores e a sociedade;

2) proposição de reformas que ampliam a proteção social, dentro das características do trabalho contemporâneo. Por exemplo, regular para não permitir que o mercado de trabalho se torne “uberizado”;

3) defesa da redução da jornada de trabalho, combinada não somente com a distribuição do trabalho útil, mas com uma nova perspectiva de as pessoas viverem a vida em todas as suas dimensões, inclusive com redefinição do padrão de consumo e preservação da vida natural;

4) assegurar mecanismos de proteção social da sociedade, em que os avanços tecnológicos de redução do trabalho necessário seja revertido à coletividade, inclusive com a garantia de uma renda mínima que seja suficiente para assegurar a condição de vida das pessoas independentemente do trabalho;

5) criar formas de atividades coletivas, voltadas para o bem-estar coletivo e de preservação do meio ambiente;

6) abertura para criação e fortalecimento de organizações sociais que sejam capazes de vocalizar as aspirações dos jovens e de todos que precisam trabalhar para viver. É muito difícil ter democracia sem entidades representativas que possam fazer o contraponto.

IHU On-Line – Muitos fizeram críticas ao movimento sindical nos últimos anos, por considerarem que ele foi cooptado nos governos Lula e Dilma. Qual é a relevância dos sindicatos para o trabalhador nos dias de hoje e de que modo os trabalhadores têm se relacionado com os sindicatos?

José Dari Krein – Os sindicatos foram instituições criadas para defender os trabalhadores das condições perversas do trabalho assalariado, na perspectiva de assegurar condições de vida e de trabalho, de repartir os resultados da riqueza gerada e de fomentar movimentos de questionamento da sociedade para construção de novas formas de organização social. Assim como são instituições fundamentais para a efetivação da democracia. Sem dúvida há uma difusão de novas organizações e movimentos sociais, que são bem-vindas em um contexto em que novas questões são vocalizadas e são fundamentais para construção de uma sociedade de inclusão e de respeito da diversidade. No entanto, ainda considero, apesar de seu desgaste e burocratização, que os sindicatos são muito importantes, pois estamos vivendo uma sociedade capitalista em que permanecem as classes sociais.

O sindicalismo nos anos 2000 apresenta movimentos contraditórios. Por um lado, se fortaleceu no âmbito da categoria profissional, ao obter resultados positivos nas negociações salariais entre 2004 e 2014, aumentando o número de greves e ampliando o número de sindicalizados em 4,5 milhões. Nos anos de 2014 e 2015 (últimos com dados disponíveis), houve um crescimento de 1,5 milhão de novos sindicalizados no Brasil. Por um lado, somente nas mobilizações recentes de 2017 conseguiu um certo protagonismo na sociedade, algo que tinha perdido nas duas últimas décadas. As ações de defesa dos direitos sociais e contra as reformas estão mostrando uma possibilidade de recuperação de terreno na confiança na sociedade. No entanto, a sua capacidade de mobilização, com algumas exceções, ainda se mostra pequena.

Por enquanto, o peso do sindicalismo é maior mais pela sua estrutura do que pela capacidade de mobilização. Ou seja, a resistência às reformas é uma oportunidade aberta para o sindicalismo se reconectar com a sociedade e existem sinais desta perspectiva, como a mobilização de 15 de março passado, que foi a maior paralisação trabalhista desde 1989. A oportunidade pode se constituir em uma forma de movimento sindical de se desburocratizar e se aproximar tanto dos trabalhadores quanto dos outros movimentos sociais, pois o momento exige uma capacidade de ação mais geral na sociedade na perspectiva de assegurar direitos e de combater os desmontes que estão em curso pelo governo, Congresso e judiciário.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da reforma trabalhista, a partir do relatório da Comissão especial?

José Dari Krein – O parecer do Relator, Rogério Marinho, de sua proposta de reforma trabalhista ao país, foi apresentado na primeira quinzena de abril [4]. A sinalização é propor uma reforma bastante ampla que sepulta a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e cria um novo código do trabalho muito menos protetivo aos trabalhadores. Ou seja, significa um imenso retrocesso social, pois reconstitui, ressalvadas as devidas diferenças históricas, as bases para submeter o trabalhador aos desígnios do mercado, transformando a vida das pessoas ao leilão da compra e oferta. Por exemplo, a proposição, entre as 100 mudanças anunciadas, de legalizar contratos em que as pessoas ficam à disposição das empresas, mas somente recebem na hora que efetivamente trabalharem ou por produto realizado. A pessoa pode ficar o dia todo no local de trabalho à disposição, mas se, por qualquer problema da empresa, não realizar o trabalho, fica sem receber. É um exemplo, entre vários outros sacos de maldades que a proposta contém.

Tudo isso é feito sob argumentos falsos ou que não encontram evidência empírica na realidade, tais como:

1) há inúmeros estudos que mostram que a flexibilização não é capaz de gerar emprego;

2) a produtividade não decorre da flexibilização, mas de inúmeros outros fatores, tende sempre ser pró-cíclica, crescendo no momento que a economia incrementa;

3) a segurança jurídica almejada pelas empresas é para fazerem o que é bom para os seu negócios, transferindo a insegurança aos trabalhadores;

4) o ataque à Justiça do Trabalho pelo número expressivo de processos trabalhistas é outra falácia, pois a Justiça Federal, mesmo tendo menos capilaridade, tem um número de processos maior. Ou seja, é o ataque às instituições que possam colocar freios à liberdade do empregador de fazer o quiser com os seus assalariados;

5) gera uma competitividade espúria, em que a redução de custos recai somente sobre a condição de vida dos trabalhadores, reforçando uma tendência de maior rebaixamento dos salários;

6) fragiliza imensamente as fontes de financiamento da seguridade social e das políticas sociais. Enfim, é uma reforma que atende os pleitos dos empresários para reduzir custos, mas com imenso potencial de esgarçar o tecido social e aprofundarmos uma sociedade marcada pela desigualdade, violência e exclusão social. É a morte dos direitos trabalhistas. Não tem como não ficar indignado com a monstruosidade que se quer promover no Brasil com a reforma trabalhista apresentada.

A proposta em discussão tem um efeito desestruturador da sociedade e comprometedor do nosso futuro mais intenso do que a reforma da previdência. As possibilidades de a reforma passar são grandes, pois não exige quórum qualificado no Congresso e as centrais sindicais se encontram divididas na matéria, o que fica nítido nas escassas e confusas manifestações públicas de algumas delas.

Notas:

[1] Karl Polanyi (1886-1964): economista austríaco. Sua obra principal é A Grande Transformação – as origens de nossa época (Rio de Janeiro: Campus, 2000), escrita nos Estados Unidos de 1940 a 1943. Sobre o economista a IHU On-Line 147, de 27-06-2005, dedicou o tema de capa A grande transformação. As origens da nossa época. Os 60 anos da obra clássica de Karl Polanyi, disponível para download aqui. (Nota da IHU On-Line)

[2] Christian Laval: é pesquisador e professor de sociologia da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. É autor de L’Homme économique: Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 2007) e também de um volume de história da sociologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)

[3] Pierre Dardot é filósofo e pesquisador da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Desde 2004, com Christian Laval, coordena o grupo de estudos e pesquisa Question Marx, que procura contribuir com a renovação do pensamento crítico. Publicou no Brasil, juntamente com Christian Laval, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)

[4] O relatório pode ser lido aqui. A votação de reforma, no entanto, deve ocorrer somente depois do dia 25 de abril de 2017, dado que alguns deputados pediram vistas. (Nota da IHU On-Line)

Fonte: Instituto Humanitas
Texto: Patrícia Fachin
Data original da publicação: 18/04/2017

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