Mulheres são as mais impactadas pelas desigualdades na América Latina

Fotografia: Rafael Edwards/Flickr

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, as lutas organizadas e cotidianas na América Latina refletem os desafios aprofundados pela pandemia de covid-19. Ainda como a região mais desigual do mundo, a América Latina foi impactada com um aumento de 81 a 86 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza entre 2020 e 2021, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

O cenário aponta para uma piora significativa da condição de vida de mulheres e grupos historicamente vulnerabilizados, atravessados pelas problemáticas transversais de classe, gênero e raça. No caso das mulheres e diversidades sexuais, os dados revelam retrocessos de mais de uma década em termos de acesso ao trabalho remunerado, à sobrecarga na divisão sexual do trabalho e nos casos de violência.

Para entender em maior profundidade o contexto em que chegamos a este 8 de março na América Latina, o Brasil de Fato conversou com pesquisadoras especialistas em diferentes âmbitos na temática de gênero.

Redomesticação

Olhar para a desigualdade na América Latina é uma forma de compreender a região, segundo Nadya Guimarães, professora titular em Sociologia do Trabalho na Universidade de São Paulo (USP). “A desigualdade está na origem da constituição das nossas sociedades. Não sem razão, todas as estatísticas mostram índices constrangedoramente elevados de desigualdade na América Latina”, diz.

“A conjuntura recente é trágica, com recessão econômica associada à crise sanitária e política que, em vários países, ampliou de maneira notável os índices de desigualdade. O assunto volta à agenda pelo lado difícil, porque demonstra que demos passos para trás nesse quesito.”

O Conselho Latino-americano em Ciências Sociais (Clacso) trará a temática da desigualdade na região na conferência deste ano, que acontecerá entre os dias 7 e 10 de junho na Universidade Nacional Autônoma do México e será transmitida pelo YouTube. A questão de gênero será um dos 34 eixos abordados no evento, o mais importante das ciências sociais na região, e contará com importantes pesquisadoras no campo.

Nadya será uma das conferencistas e avalia os avanços nos estudos sobre gênero e trabalho, com o diálogo estabelecido entre diferentes linhas de estudo que, em algum ponto, se cruzam: o envelhecimento da população, a mudança nos padrões de famílias, a presença das mulheres no mercado de trabalho, o cuidado dos idosos, ainda majoritariamente a cargo das mulheres.

“Os estudos sobre o cuidado criaram um conduto de enlace entre essas várias linhas de estudo e permitiram pensar a temática entre gênero e trabalho sob uma nova perspectiva, que nos permite integrar todos esses elementos”, explica, apontando uma dessas análises transversais:

“Há um enxugamento da oferta de trabalho de cuidado, porque o cuidado domiciliar agora compete com a presença dessas mulheres no mercado de trabalho. Há países onde as mulheres podem trabalhar de 5 a 6 horas por dia em tarefas domésticas, enquanto os homens, 40 minutos. Essa divisão se faz mesmo quando as mulheres trabalham fora. Se não negras, pior ainda. A jornada de trabalho das mulheres negras é proporcionalmente maior do que a das mulheres brancas.”

Estudos mostraram que, durante a primeira fase da pandemia, as mulheres sofreram maior sobrecarga em relação ao trabalho de cuidados. Por exemplo, na Argentina, 54% das mulheres relataram esse cenário. Na Colômbia, enquanto as mulheres dedicavam cerca de 7 horas ao trabalho não remunerado, com a pandemia passaram a dedicar uma hora mais. No Chile, as mulheres somaram duas horas diárias e, no Uruguai, uma hora e meia mais.

A socióloga costarriquenha Montserrat Sagot também será conferencista na Clacso deste ano. Professora da Universidade de Costa Rica, Sagot trabalha com a temática da violência contra mulheres e meninas, e observa como a desigualdade de gênero foi acentuada em amplos sentidos durante a pandemia.

“Chegamos a um 8 de março onde uma grande quantidade de mulheres em todo o continente foram expulsas de seus trabalhos, retornaram à casa em um processo de redomesticação”, pontua. “As mulheres tiveram que cobrir muitas obrigações que os Estados deixaram de assumir no período da pandemia, por exemplo, a educação dos filhos e, em muitos casos, o cuidado das pessoas doentes. Também perderam seus trabalhos de forma massiva, e segundo análise de economistas feministas, muitos desses trabalhos não são recuperados, ou o são em más condições.”

Ainda segundo a Cepal, os países com maiores taxas de tempo das mulheres dedicadas ao trabalho não remunerado, majoritariamente em âmbito privado, são México, com 42,6 horas semanais, Argentina, com 42,4 horas, seguido de Chile, com 42,1 horas semanais.

Comorbidades sociais

Esse cenário remonta a outra aresta da desigualdade de gênero: o acesso à educação e a própria produção de conhecimento sobre os temas que envolvem as problemáticas de gênero – e que, assim, permitem entender o contexto social e exigir e elaborar soluções, como políticas públicas. A historiadora e doutora em educação Janja Araújo, do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA), une o ativismo nos movimentos sociais e institucionais, buscando uma permanência, com sucesso, dos jovens negros no âmbito acadêmico.

“Eu diria que o campo de estudos de gênero, hoje, se constitui com enorme pujança no sentido de apontar não apenas críticas à produção de um conhecimento pautado pelos ideais da modernidade, mas sobretudo no desmonte de um sujeito universal”, conta, destacando que esse fator vem acompanhado de ações afirmativas, no caso do Brasil. “Também possibilitam algumas alterações na forma como o conhecimento é pensado hoje nesse campo.”

“Esses estudos apontam desafios, conquistas, mas acima de tudo, assimetrias intragênero. Um exemplo clássico, largamente denunciado, é a violência intrafamiliar que chega ao ápice do feminicídio. Há uma redução da violência entre as mulheres brancas e um aumento mais que duplicado entre as mulheres negras”, pontua. “Assim, vemos como questões como pobreza e racismo implicam na produção e na permanência de vidas, sobre permanentes comorbidades: são comorbidades sociais naturalizadas aos olhos da sociedade.”

Nesse sentido, a luta pelo direito ao aborto – uma conquista recente da Colômbia na região – representa um ponto de inflexão, que também consiste em uma problemática que afeta especialmente as mulheres pobres e racializadas.

Estima-se que aproximadamente entre 5 e 10 mil mulheres perderam a vida por ano na região por abortos clandestinos. Em relação à situação das diferentes comunidades LGBTIQ+, existem enormes limitações no acesso a direitos como um trabalho ou moradia digna. Quanto ao matrimônio igualitário, o avanço é díspar: na América Latina é reconhecido apenas na Argentina, Brasil, Colômbia, México (21 estados mexicanos), Costa Rica, Equador e Uruguai.

Essa é a luta que Montserrat Sagot identifica como “a última fronteira”, já que não só enfrenta, mas convida vozes reacionárias como parte do processo de conquista do reconhecimento, nesse caso, legislativo.

“Como região mais desigual, a divisão entre as populações dos países complica profundamente os laços de solidariedade e aumenta todas as formas de violência, em particular, contra as mulheres”, observa Sagot. “Sem mudanças estruturais que diminuam as marcas da história em relação ao colonialismo, o racismo, o imperialismo, será difícil diminuir as taxas de violências contra a mulher e outros grupos historicamente excluídos.”

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Fernanda Paixão
Data original da publicação: 08/03/2022

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