Mulheres pesquisadoras parecem estar submetendo menos artigos científicos durante a crise de coronavírus. “Nunca vi nada parecido”, diz um editor

Da esquerda para a direita, as pesquisadoras Leslie Gonzales, Einat Lev e Erica Williams. Imagem: The Lily

Este deveria ser um grande ano para Einat Lev. Ela planejava fazer trabalho de campo no Havaí e no Alasca, submeter uma importante proposta de pesquisa e, depois, terminar de escrever o último dos cinco artigos científicos necessários para sua solicitação de estabilidade1. Em setembro, ela finalmente compareceria ao comitê avaliativo, o passo final para se tornar um professor associado de sismologia na Columbia University.

Agora, com sua filha de 7 anos em casa, Lev só pode trabalhar quatro horas por dia, em vez das 10 habituais. Inclusive, ela começou a lidar bem com os atrasos, encontrando alegria em longas caminhadas, ajudando a filha a identificar flores e pássaros do bairro.

Mas então ela ouviu um comentário de um colega do sexo masculino. Eles começaram suas carreiras na mesma época. A esposa dele cuidava dos filhos de ambos em período integral. O marido de Lev tem um emprego de período integral.

“Olhando pelo lado positivo das coisas”, disse o colega sobre sua experiência, “[a auto-quarentena] me dá tempo para me concentrar na escrita.”

Lev queria gritar.

“Isso parece um luxo”, ela respondeu. “Não consigo nem imaginar.”

Seis semanas após a auto-quarentena generalizada, os editores de revistas acadêmicas começaram a perceber uma tendência: as mulheres – que inevitavelmente assumem uma parcela maior das responsabilidades familiares – parecem estar submetendo menos artigos.

“Isso ameaça prejudicar as carreiras das mulheres na academia”, diz Leslie Gonzales, professora de administração educacional da Michigan State University, que se concentra em estratégias para diversificar o campo acadêmico. “Quando as instituições decidem a quem conceder a estabilidade, como avaliarão as realizações do candidato durante a crise do coronavírus?”.

“Não queremos que um comitê analise a produtividade externa de, digamos, um homem hétero branco com uma esposa em casa e diga: ‘Bem, essa é uma pessoa que conseguiu'”, diz Gonzales. “Não queremos fazer disso nossa referência.”

A astrofísica é um campo em que a Covid-19 parece ter um efeito desproporcional nas pesquisadoras, disse Andy Casey, pesquisador de astrofísica da Universidade Monash, que analisou o número de submissões para “servidores de preprints” de astrofísica, nos quais os acadêmicos geralmente publicam versões preliminares de seus artigos científicos.

Para o The Lily, Casey comparou dados de janeiro a abril de 2020 com o mesmo período dos anos anteriores, observando “talvez até 50% mais perda de produtividade entre as mulheres.” Especialmente porque as mulheres já estão sub-representadas na astrofísica, disse Casey, foi fácil para os editores perceberem a queda dos números.

“A sensação é de que o arXiv pendeu bastante para o sexo masculino nas últimas semanas. Assim como as submissões de artigos que estou vendo como editora. Alguém já parou para olhar essa questão na astrofísica?”

Editores em outros campos do conhecimento notaram a mesma coisa. Elizabeth Hannon, editora adjunta do British Journal for the Philosophy of Science, disse que os números eram diferentes de tudo que ela já havia visto antes.

“Um número mínimo de submissões feitas por mulheres para o periódico no último mês. Eu nunca havia visto nada igual.”

Enquanto a Comparative Political Studies, um periódico acadêmico que publica 14 vezes por ano, recebeu o mesmo número de submissões de mulheres neste ano e no ano passado, o número de inscrições de homens aumentou  mais de 50%, segundo o co-editor David Samuels. Outros periódicos viram uma queda no número de artigos somente nos casos de autoria individual submetidos por mulheres; as submissões continuam estáveis para mulheres que trabalham como parte de uma equipe.

Essa evidência é anedótica: algumas revistas dizem que não viram nenhuma mudança ou estão recebendo comparativamente mais submissões de mulheres desde o início da auto-quarentena. Mas as histórias são consistentes com padrões mais amplos da academia, diz Gonzales: Se homens e mulheres estão em casa, os homens “encontram uma maneira” de realizar mais trabalhos acadêmicos.

Quando os homens se aproveitam das políticas de “pare o relógio”, tirando um ano de licença após ter um bebê, os estudos mostram que eles terão um desempenho muito mais profissional do que suas colegas mulheres, que tendem a gastar esse tempo focadas principalmente – ou exclusivamente – nos cuidados com as crianças. Algumas das responsabilidades são determinadas pela biologia: se uma mulher escolhe amamentar, isso leva horas todos os dias. As mulheres também enfrentam uma recuperação física ao dar à luz.

A escrita e a pesquisa acadêmica exigem “tempo e espaço para respirar e ser criativo”, disse Erica Williams, diretora dos departamentos de sociologia e antropologia do Spelman College. “Não é algo que você possa fazer de forma intermitente”

Williams divide os cuidados infantis com o marido, trabalhando das 8h às 13h, e observa o filho de quatro anos até as 18h, quando todos se reúnem à noite. Todo o seu tempo de trabalho vai para tarefas diárias: responder a e-mails, viabilizando a logística departamental. Ela “não tocou” em nenhum dos seus dois projetos pendentes de livros, que precisará concluir antes de poder obter uma cátedra completa, particularmente importante para Williams, porque há poucas mulheres negras com esse título. Ela esperava alcançar esse objetivo dentro de dois ou três anos. Agora ela provavelmente terá que esperar mais.

Ainda assim, Williams sabe que tem sorte: ela já tem estabilidade.

Lev não consegue parar de pensar em como isso pode afetar suas chances. Em sua última avaliação, ela foi instruída a enviar cinco artigos até setembro, criando pelo menos alguns por conta própria.

“Se isso não ocorrer, será um problema”, disse Lev. Um grande grupo de professores da universidade, bem como 20 avaliadores externos, analisarão seu portfólio.

“Eles podem olhar e pensar: ‘Você ficou em casa por quatro meses, por que não estava escrevendo?'”

Durante o dia, ela gerencia a educação da filha, clicando nas lições virtuais da escola. Quando as tarefas são feitas, ela tem que inventar outras coisas para fazer. Seu marido assume o controle quando ela está em reuniões, mas ela nunca tem um pouco de tempo para si mesma durante o dia. Ela tem tenado trabalhar à noite, depois que a filha vai para a cama. Até então, está cansada demais para qualquer coisa que exija muito poder do cérebro.

“Um dia no escritório é menos cansativo do que um dia com uma criança de 7 anos”, diz Lev.

A maioria dos membros seniores de seu departamento é mais velha: se eles tiveram filhos, ela diz, eles tiveram há muito tempo. Ela está preocupada com o fato de que eles possam não ter empatia com sua situação. (Outras mulheres tinham a mesma preocupação, mas não falaram isso no registro da conversa, pois temiam que isso pudesse comprometer sua chance de estabilidade.)

“Eu até posso ver as pessoas dizendo ‘Ah, foi difícil para todos, todos estávamos em casa e nervosos”, disse Lev. Será necessário algum esforço, diz ela, para explicar por que ela pode ter sido menos produtiva do que alguns de seus colegas.

Antes do coronavírus, Whitney Pirtle, professora assistente da Universidade da Califórnia em Merced, também estava programado para a candidatura de estabilidade no outono. Mas quando a escola ofereceu uma “prorrogação de um ano devido à Covid-19”, ela decidiu aceitá-la. Ela estava planejando submeter seu livro a uma editora acadêmica em maio. Março e abril deveriam ser a “hora da verdade” da escrita. Em vez disso, ela está em casa com duas crianças de quatro e nove anos. Seu marido ainda trabalha diariamente, propiciando almoços grátis como diretor de uma escola primária.

Pirtle sabe que está se arriscando com a prorrogação. Seus colegas têm falado sobre a possibilidade de uma recessão: se ela esperar mais um ano, seu departamento poderá estar operando com um orçamento mais apertado. Também poderia ser mais difícil conseguir um emprego em outro lugar.

Todo mundo que tenta obter a estabilidade segue a mesma linha do tempo, diz Pirtle. Ela tem plena consciência de que tem 33 anos, em seu sexto ano de espera pela estabilidade. Ela já atrasou um ano quando teve sua filha de hoje quatro anos de idade.

“Meu outro medo é justamente este: isso parece ruim? Entendemos como é uma linha do tempo típica. Com o que fica parecendo ter que pedir uma prorrogação?”

Muitas universidades em todo o país estão oferecendo prorrogações similares de um ano. Isso é bom, diz Gonzales, mas não é suficiente. Uma prorrogação “não contribui para uma queda na produtividade”: se uma mulher com filhos pequenos em casa leva um ano a mais, os avaliadores ainda podem se perguntar por que ela não conseguiu mais durante esse período.

Nos próximos anos, deve haver uma carta adicionada a cada solicitação de estabilidade, diz Gonzales, instruindo os leitores a considerar como a “a crise [do coronavírus] tem efeitos muito diferentes em gênero e raça”. Os avaliadores devem considerar o conjunto de circunstâncias individuais de cada candidato, disse ela.

“Essencialmente, queremos dizer: ‘Ei, isso foi um grande negócio para muita gente’.” Se alguém não terminou os três artigos científicos que ela esperava escrever, talvez esteja tudo bem.

Lev começou a acompanhar seus dias, anotando quantas horas passou com sua filha e quantas horas conseguiu trabalhar.

Se alguém disser que ela não foi “produtiva” durante o coronavírus, ela terá os registros para provar que estão errados.

Nota do tradutor

1 O que é referido no texto como “estabilidade” se refere à prática do “tenure”, em inglês. Em universidades de países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e outros, a estabilidade de um professor universitário está ligada ao mérito acadêmico. Seus resultados de pesquisa e avaliação docente devem ser expressivos para que ele possa atingir esse patamar.

Fonte: The Lily
Texto: Caroline Kitchener
Tradução: DMT
Data original da publicação: 24/04/2020

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