Apesar de todos os avanços das mulheres nos mais diversos campos sociais e das mudanças de comportamento da sociedade, o trabalho doméstico segue sendo responsabilidade feminina.
Luana Pinheiro
Fonte: El País
Data original da publicação: 08/03/2019
Lugar de mulher é na cozinha. Mulher entende mesmo é de pilotar fogão. Já sabe cozinhar, já pode casar. Fulana não trabalha, fica em casa com as crianças. Fulano vai ficar de babá hoje, cuidando dos filhos. Sicrano é incrível, ajuda demais em casa.
Essas são falas conhecidas. Todas nós, mulheres, já as escutamos em algum almoço familiar, em conversas com amigos, nos nossos ambientes profissionais ou de nossos parceiros conjugais. Muitas vezes podemos até ter repetido algumas delas, dizendo como nossos companheiros são “modernos” e menos enquadrados no padrão machista quando nos ajudam (ops!) a cuidar dos filhos ou da casa.
Essas frases, cheias de preconceitos e estereótipos, portanto, não são algo do nosso passado. Ao contrário, ainda dialogam com a realidade dos lares brasileiros e com os valores sociais que seguem pautando o entendimento do que é ser mulher ou ser homem no Brasil. Estamos em 2019 e, apesar de todos os avanços das mulheres nos mais diversos campos sociais e das mudanças de comportamento de toda a sociedade, o trabalho doméstico segue sendo responsabilidade feminina.
Os dados mais recentes divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), do IBGE, e compilados na pesquisa Retrato das Desigualdades, do Ipea, mostram que, em 2017, enquanto 93% das mulheres declaravam realizar algum tipo de atividade doméstica não remunerada, entre os homens essa proporção era de 79%. Uma primeira olhada para esses dados parece indicar que estamos diante de uma divisão sexual do trabalho doméstico que se aproxima da igualdade: nove em cada dez mulheres e oito em cada dez homens dizem realizar algum tipo de trabalho doméstico. Então por que ao olharmos para nossas rotinas ou para as rotinas das famílias que nos circundam não nos reconhecemos nesses dados?
Primeiro porque esses números referem-se a uma grande categoria de “afazeres domésticos e de cuidados” que engloba atividades tão distintas como pagar as contas da casa e cozinhar ou levar as crianças ao parque e ajudar familiares doentes a tomarem banho, por exemplo. Assim, uma primeira pergunta que devemos responder é: afinal, a que trabalho doméstico homens e mulheres se referem quando respondem essas questões ao IBGE? Os dados da PNAD Contínua permitiram, pela primeira vez, ter esta resposta.
Enquanto as mulheres dedicam-se a atividades mais rotineiras, exaustivas, demandantes de tempo e que têm de ser feitas todos os dias – tais como lavar roupas e vasilhas, passar roupas, limpar a casa, cuidar dos filhos, cozinhar –, os homens direcionam seus esforços a atividades mais ocasionais e flexíveis que, em certa medida, também têm sido percebidas como mais prazerosas que as demais, como, por exemplo, a realização de pequenos reparos nas residências, os cuidados com o jardim e os carros, o pagamento de contas ou o lazer com os filhos.
Segundo, porque mais importante do que saber se uma pessoa realiza ou não algum tipo de trabalho doméstico é saber quanto tempo ela dedica a essas atividades. É essa a informação que nos permite falar na sobrecarga de trabalho das mulheres ou na ideia de uma dupla jornada. Em 2017, as mulheres ainda despendiam o dobro de horas que os homens em trabalho de cuidados e em afazeres domésticos: as jornadas semanais para elas nessas atividades eram de 21 horas, enquanto para eles eram de pouco menos de 11 horas. Se as desigualdades aqui são impressionantes, elas impressionam ainda mais pelo seu comportamento ao longo dos anos.
Se voltarmos a 2001, quando o IBGE começou a captar essas informações, podemos perceber que há, de fato, uma redução nas desigualdades de gênero no tempo gasto nessas atividades: se naquele ano as mulheres despendiam 20 horas a mais do que os homens nas atividades domésticas, em 2017 essa diferença cai para 10 horas por semana. Ainda que existam diferenças metodológicas entre as pesquisas de 2001 e 2017, as tendências gerais do comportamento desses indicadores permanece válida.
No entanto, salta aos olhos o fato de que os homens, ao longo desses 17 anos, mantêm-se alocando as mesmas 11 horas semanais em trabalho doméstico. Ou seja, a redução nessas desigualdades é resultado exclusivamente da mudança no comportamento das mulheres, que reduziram de forma expressiva o tempo dedicado a essas atividades. Em 2001, suas jornadas semanais eram de 31 horas, 47% a mais do que o captado em 2017.
A progressiva ampliação das jornadas femininas no mercado de trabalho, a redução no número de filhos, o barateamento e a difusão de equipamentos domésticos, em especial da chamada linha branca, e serviços de infraestrutura que poupam tempo (como acesso a luz e saneamento básico), além da ampliação do acesso à educação infantil (creches e pré-escolas), certamente contribuíram para que as mulheres reduzissem suas jornadas reprodutivas. No entanto, nada foi capaz de alterar de forma expressiva o comportamento masculino nesse campo. É incômodo perceber que, como já dizia Elis Regina, “apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos [quase] como nossos pais”. Ao menos em relação à divisão sexual do trabalho doméstico.
Luana Pinheiro é técnica de planejamento e pesquisa da Coordenação de Gênero, Raça e Gerações do Ipea.