Mudanças climáticas, a luta pelos comuns e impactos sobre as mulheres rurais

Ilustração: Matizes Dumont

Cristina Pereira Vieceli

Esse tempo que rege a importância
De um estado repleto do fazer
Gerar fruto, plantar, dar de comer
Tudo dentro da sua concordância
Vê a lógica no fardo e no trabalho
Se encanta contando mais um galho
Dessa árvore dona desse chão
Enraíza o poder da criação
Semeando e somando cada orvalho

Jessica Caitano
Poetisa e cantora do Alto Sertão do Pajeú
In: MELO, MORAIS, 2020, “A arte de tecer o tempo”

Essa poesia marca o início de um livro que trata sobre o uso do tempo sob o olhar feminista, elaborado pelas professoras Hildete Pereira de Melo e Lorena Lima de Moraes. É um livro acadêmico que traz um compilado de artigos e estudos. Me chamou a atenção o cuidado das organizadoras com a subjetividade da capa e da poesia, além dos excelentes artigos. 

A poesia enfatiza a passagem do tempo e o nascimento, a plantação e o tempo de crescer como fatores que regem a vida das pessoas que vivem da terra. O livro traz também na capa um bordado em que uma mulher e uma criança aparecem sentadas na grama ao lado de um rio cheio de peixes dourados. As duas estão tecendo um longo pano feito de retalhos, que escorre ao lado do rio, compondo sinergicamente com a paisagem, passando uma sensação de leveza, cuidado, paciência.

Essa imagem contrasta com a vida de boa parte das pessoas nas zonas urbanas, cuja intensificação do tempo ultrapassa os limites do espaço, dentro de uma lógica de produção e contração de fronteiras em que as atividades se sobrepõem umas às outras. Por um lado, a sociedade industrial trouxe diversos avanços tecnológicos, na forma de comunicação, transporte, facilidades domésticas e descobertas científicas. Por outro, o tempo da produção industrial se contrapõe com o tempo da regeneração da terra e dos organismos, dos cuidados e da reprodução da vida. Esse descompasso, somado a falta de regulamentação, fiscalização e punição, decorre na degradação do meio ambiente sem precedentes, ocasionando mudanças climáticas com fortes impactos sociais e ambientais.

Inicio 2022 com um texto falando sobre meio ambiente, já que 2021 foi mais um ano marcado pela pandemia da Covid-19, que possivelmente decorreu da ação antrópica. Além disso, iniciamos o ano com diversos desastres ambientais no Brasil, entre as quais a enchente que atingiu 141 municípios na Bahia em que registraram 24 pessoas mortas. 

Mas, o que tem a ver a degradação do meio ambiente, com economia, gênero e mercado de trabalho, tema desta coluna? É importante ressalvar antes de tudo, que a economia não está separada da sociedade e que a humanidade não vive em um planeta com recursos inesgotáveis. Ainda que alguns manuais de economia insistam em fazer essas abstrações (um dos primeiros termos que graduandos de economia aprendem é coeteris paribus, na tradução do latim – “tudo o mais constante”).

Na realidade, a ação humana tem efeitos devastadores no planeta, tanto que denominamos a era atual de Antropoceno, ou seja, a Época dos Humanos. Além disso, os efeitos da degradação ambiental repercutem de forma desigual os diversos grupos populacionais. Por isso, a ciência econômica dentro de uma perspectiva crítica, e a economia feminista, de forma particular, tem entre seus interesses de estudo, os impactos da degradação ambiental sobre as mulheres, a partir de uma análise interseccional, ou seja, considerando as diferenças de classe e raça que se entrecruzam.

Uma das principais consequências da degradação do meio ambiente são as mudanças climáticas. A forma como os diferentes grupos populacionais são por elas impactados está relacionado com fatores estruturais, no caso das diferenças entre os sexos a estrutura hierárquica patriarcal. Nesta, a divisão sexual do trabalho e as normas de gênero definem os diferentes papeis que os sexos irão desempenhar na sociedade. Em geral, às mulheres são destinadas atividades relacionadas à reprodução da vida. Isto ocorre tanto nas zonas urbanas quanto nas zonas rurais, de diferentes formas. Em relação a esta última, a divisão do trabalho pode ser percebida tanto na separação de atividades desempenhadas por homens e mulheres, como também no acesso desigual à propriedade da terra, a recursos como água e lenha, na participação em espaços de decisão políticos e recursos financeiros como crédito[1].

A população que vive nas zonas rurais, tanto homens como mulheres, estão mais vulneráveis à pobreza, sofrendo de escassez de diversos recursos, como infraestrutura e serviços públicos e baixo acesso à saneamento básico. Faltam recursos tanto voltados às atividades produtivas (agricultura, pesca, criação de animais) como às reprodutivas (cuidados com filhos, idosos, saúde, alimentação, higiene). A exemplo disso, em 2018, dentre os domicílios alocados nas zonas rurais, 59,9% apresentaram ausência de coleta direta ou indireta de lixo, contrapondo com 1,2 % dos domicílios urbanos (Gráfico 1). A ausência de abastecimento de água era sentida por 65,6% dos domicílios rurais e 6,6% dos urbanos. Já a ausência de esgotamento sanitário por rede coletora, pluvial ou fossa ligada à rede foi constatada em 92,9% dos domicílios alocados nas zonas rurais, contrapondo com 26,1% das zonas urbanas.

Os números são bastante alarmantes, e demonstram o descaso do Estado com a parcela da população que alimenta as cidades. Além disso, a pobreza estrutural no campo é muito superior à urbana. Em 2016, do total da população que vivia nas zonas rurais, 11,1% estavam abaixo da linha de extrema pobreza, esse percentual passou a 11,5% em 2017. No caso da população das zonas urbanas, o percentual de extremamente pobres era de 1,5% em 2016, passando a 1,8% em 2017 (Gráfico 2).

Quanto à população que se encontra abaixo da linha de pobreza, totalizavam 30,7% da população que vivia no campo em 2016, passando a 31,7% em 2017. No caso das zonas urbanas, este percentual era de 9,8% em 2016, passando para 10,2% em 2017. Ou seja, as desigualdades entre campo e cidade além de serem latentes, pioraram na segunda década dos anos 2000, resultado da falta de políticas públicas específicas para o campo. Considerando que os dados apresentados são pré-pandemia da Covid-19, prevemos que esta situação piorou nos últimos dois anos.

A falta de políticas públicas, somada às mudanças climáticas deterioram a situação da parcela da sociedade que vive no campo. Os efeitos ocorrem principalmente sobre as mulheres e meninas, que já vivem restrições monetárias e sofrem com aumento do tempo destinado a coleta da água, lenha, além do cuidado com pessoas que adoecem por problemas relacionados à falta de higiene e à poluição[2]. Além disso, a destruição do meio de vida das pessoas resultante das mudanças climáticas, leva a migrações de refugiados, aumento da violência sexual, prostituição e da pobreza feminina[3]. Nesse sentido, há uma perpetuação cíclica da pobreza rural. As mudanças climáticas, potencializam as desigualdades sociais, de gênero, raça e entre países, considerando a disparidade na emissão de gases poluentes entre países[4]. 

É importante notar também que as atividades desempenhadas pelas mulheres no campo possuem um forte impacto para a melhoria de vida das suas famílias e comunidades. Apesar da sua baixa participação em postos de liderança eletivos, as mulheres que vivem em zonas rurais são importantes lideranças em suas comunidades e famílias estendidas[5]. Portanto, investir no acesso das mulheres à tecnologia, recursos financeiros e ativos tem um impacto positivo sobre as crianças e a comunidade. Para além disso, se impõe uma ação conjunta internacional para a redução das emissões, bem como investimentos nos países que tem suas economias mais impactadas pelos efeitos das mudanças climáticas.

A luta pelos comuns está entre as principais bandeiras a serem defendidas na era do Antropoceno, considerando que é necessário mudanças profundas na forma como produzimos e como nos relacionamos com a natureza para garantir a sobrevivência humana e de todos os seres no planeta. Para fechar, deixo a letra de uma música que traz esperanças para acreditar que a rebeldia, a indignação e o respeito à todas as formas de vida podem nos levar à caminhos melhores.

Canção da terra 

Tudo aconteceu num certo dia
Hora de Ave Maria, o universo vi gerar
No princípio o verbo se fez fogo
Nem atlas tinha o globo
Mas tinha nome e o lugar

Era Terra, Terra
Terra, Terra

E fez o criador a natureza
Fez os campos e florestas
Fez os bichos, fez o mar

Fez por fim, então, a rebeldia
Que nos dá a garantia
Que nos leva a lutar

Pela Terra, Terra
Terra, Terra

Madre terra nossa esperança
Onde a vida dá seus frutos
O teu filho vem cantar

Ser e ter o sonho por inteiro
Ser sem-terra, ser guerreiro
Com a missão de semear
À Terra, Terra
Terra, Terra

Mas apesar de tudo isso
O latifúndio é feito um inço
Que precisa acabar

Romper as cercas da ignorância
Que produz a intolerância
Terra é de quem plantar
À Terra, Terra
Terra, Terra

Terra, Terra
Terra, Terra
Terra, Terra…

Compositores: Pedro Munhoz Barbosa Filho

Notas

[1]  Argwal, Bina. Environmental Resources and Gender inequlity. Use, degradation and conservation. In: Berik, Kungar. The Routledge Handbook of Feminist Economics, Routledge, 2021.

[2]  Ver vídeo. Gender Inclusive Research: Why and how, produzido por Alliance of Biodiversity and CIAT. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ony2GHjYEro&list=PLM2nmulYUUvmWMjGEOLMU4OvPtcf1kz5g&t=4s, e texto REVELO, Lorena. ECLAC, Gender Affairs 159. Gender equality in the midst of climate change. What can region’s machineries for the advancement of women do? Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/47358/1/S2100451_en.pdf.

[3]  https://www.climate-refugees.org/spotlight/2020/7/8-womenandgirls

[4] Do total de Gases Efeito Estufa emitidos no mundo, 23,9% foram emitidos pela China, 11,8% pelos Estados Unidos, 6,8 pela Índia. https://www.climatewatchdata.org/data-explorer/historical-emissions?historical-emissions-data-sources=cait&historical-emissions-end_year=2018&historical-emissions-gases=all-ghg&historical-emissions-regions=All%20Selected&historical-emissions-sectors=total-including-lucf%2Ctotal-including-lucf&historical-emissions-start_year=1990&page=1&sort_col=2018&sort_dir=DESC

[5] Ver estudo de PINTO, PONTES e SILVA, 2020. Rotinas de Mulheres Ribeirinhas da Região Amazônica: Atividades e Papeis na Família, no Trabalho e na Comunidade.

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .

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