
por Felipe Prestes
Enchentes, secas, calor extremo. As mudanças climáticas afetam gravemente o trabalho no campo e na cidade. Para mitigá-las, no entanto, uma vez mais o trabalhador é afetado. A necessidade de transição energética e fim da exploração dos combustíveis fósseis deve alterar cadeias produtivas no mundo todo. Dessa forma, cada vez mais o trabalhador precisa ser incluído na pauta ambiental, assim como os sindicatos devem incluir o meio ambiente em sua agenda.
Renata Belzunces, socióloga, economista e técnica do Dieese, conta que o departamento vem tentando “ambientalizar” pautas já existentes, sensibilizando os trabalhadores de que suas demandas do dia a dia têm relação com o meio ambiente. “A gente parte de um pressuposto de que muitas das pautas já clássicas podem ser ambientalizadas, no sentido de entender que o meio ambiente já estava presente na pauta sindical. Por exemplo, as merendeiras de escolas de um município do Ceará têm uma reclamação muita antiga sobre desconforto térmico nas cozinhas e, agora, só piorou. Os trabalhadores que estão nas ruas, como os dos Correios e os agentes de endemias, já têm historicamente a pauta de protetor solar e uniformes compatíveis. Isso já estava na pauta e a gente ambientaliza”.
Em 2024, trabalhadores dos Correios no Acre realizaram a primeira “greve ambiental” do país, devido à fumaça causada pelas queimadas, por entenderem estar diante de grave e iminente risco à saúde. Eles enfatizaram que o direito de greve ambiental está previsto na Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
Belzunces conta que o tema do meio ambiente vem aparecendo com mais frequência em negociações coletivas. “Os agentes ambientais, também conhecidos como garis, de Guarulhos, conseguiram uma cláusula que estabelece que, se a casa do trabalhador for atingida por evento climático extremo, ele pode ficar cinco dias sem trabalhar, para poder colocar a casa em pé de novo”.
Iniciativas como essas mostram que não existe um conflito a priori entre meio ambiente e trabalho. “Não é possível generalizar de forma alguma. A gente sempre recorre ao exemplo do Chico Mendes, que aliou a conservação da floresta à manutenção dos empregos”, afirma a técnica do Dieese.
Transição energética gera ‘fricção’
Quando o assunto são os combustíveis fósseis, no entanto, os conflitos costumam aparecer. “Nesses temas a fricção é maior. Tem uma visão de que o meio ambiente atrapalha os trabalhadores”, afirma Renata Belzunces.
Dois casos emblemáticos no Brasil são a discussão sobre a exploração de petróleo na Margem Equatorial e a exploração de carvão em Candiota, no sul do Rio Grande do Sul. Neste último, a cidade de cerca de 10 mil habitantes depende quase que exclusivamente do combustível fóssil. “A gente vai percebendo que há resistências nos setores que são mais diretamente dependentes dos combustíveis fósseis. Mas há também muita falta de política pública e alternativas, de forma que eles ficam privados de possibilidades. Um ambientalismo que não olha para a questão classista fica sem diálogo e rompe com os trabalhadores porque ignora a necessidade de subsistir a vida. E os trabalhadores, por sua vez, pela necessidade e falta de opções também se fecham ao que os ambientalistas trazem”, afirma a socióloga e economista.
Belzunces conta que há exemplos bem-sucedidos no mundo de transições que foram dialogadas com os mineiros. “Tem o exemplo de Alberta, no Canadá, que teve um processo muito longo e abrangente. Para você ter uma ideia, até o preço dos imóveis foi levado em conta. Se eu tiro essa atividade daqui, eu desvalorizo os imóveis de todo mundo. Tem um outro exemplo também nas Astúrias, na Espanha, que envolveu fechamento de mina de carvão, com muita discussão entre trabalhadores, possibilidade de aposentadoria antecipada para um conjunto de trabalhadores que já tinham uma idade média e qualificação profissional para os mais jovens”.
No Brasil, porém, a socióloga e economista vê poucos avanços nesse sentido. “Costumo dizer que a gente não está vivendo uma transição e, sim, uma transação energética. A gente tem apenas oportunidade de negócios”, critica.
Em paralelo às mudanças climáticas, também ocorre a introdução de inteligência artificial, outra ameaça a empregos. Adalberto Cardoso, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, explica que na história do capitalismo houve sucessivas evoluções tecnológicas que produziram deslocamentos populacionais imensos. Primeiro, com a revolução agrícola, no final do século XVIII e início do século XIX; seguida pela revolução industrial, com a introdução da máquina a vapor; depois pela introdução da eletricidade. Por fim, nas décadas de 1970 e 1980, ocorreu a informatização. “Todas essas revoluções implicaram movimentos de população entre setores econômicos. No médio prazo, as economias conseguiram acomodar as pessoas que foram sendo deslocadas, sempre a custos sociais muito altos. A primeira revolução agrícola produziu um deslocamento brutal de pessoas para as cidades, na Europa, sobretudo, e gerou pauperismo, uma crise social imensa. Com o tempo, a segunda e terceira gerações desses migrantes já estavam conseguindo se colocar de maneira menos vulnerável”.
Para o sociólogo, a crise atual pode ter maiores impactos, por aliar as novas tecnologias com a crise climática. “A revolução atual está afetando todos os setores ao mesmo tempo. Antes, a indústria acomodou os migrantes do campo, e, após a terceira revolução tecnológica, as pessoas se realocaram nos serviços. Agora tudo está sendo afetado, indústria, agricultura, serviços, comércio. Todos os segmentos estão destruindo empregos, então isso talvez resulte num custo social muito elevado em um prazo muito curto de tempo, afetando uma proporção muito grande da população. Isso no mundo inteiro, mas certamente vai ser mais duro no Sul global”.
Adalberto Cardoso aponta que a crise climática pode trazer mais pessoas do campo para a cidade. “Você tem ainda uma população importante que depende de certa estabilidade dos ciclos climáticos e essas pessoas vão vir para a cidade, vão continuar pressionando o mercado de trabalho. A perda da possibilidade de inserção no campo vai aprofundar o processo de vulnerabilização das pessoas”. Além disso, desastres naturais podem gerar graves crises ambientais, como o rompimento de barragens, que tiram o sustento de muitos trabalhadores. “Isso pode acontecer de maneira repetida por causa de grandes chuvas, vendavais, furacões”.
Do capitalismo verde a ideias dos povos originários
Adalberto Cardoso aponta que novas ocupações aparecem com a necessidade de mitigação das mudanças climáticas. “Vão surgindo segmentos verdes, sendo gerados para reduzir emissões. Você tem um aumento grande da economia circular, da reciclagem em vários segmentos. A Toyota mostrou, recentemente, em um salão em Tóquio, um carro cuja carroceria é feita de plástico reciclado. Essa economia circular gera empregos novos”.
Contudo, mesmo que a indústria se adapte, há perda de empregos em casos emblemáticos, como o do carro elétrico. “O carro elétrico é muito mais simples que um automóvel a combustão, que tem 3 mil partes. O automóvel elétrico tem menos da metade disso e envolve menos gente. Boa parte dos carros elétricos feitos na China é feita por robô, você quase não tem força de trabalho humana. Então, os desafios são muitos nesse ponto de vista”, pontua o professor da UERJ.
Cardoso destaca que existem teóricos otimistas quanto à capacidade do capitalismo de amenizar os efeitos da questão climática. “O José Maurício Domingues (doutor em Sociologia pela London School of Economics and Political Science e professor da UERJ) é otimista, diz que o capitalismo vai resolver esse problema. Foram iniciativas capitalistas que deram origem ao carro elétrico, à energia eólica, isso é fruto de investimento capitalista – obviamente com financiamento público em muitos casos, mas voltado para lucro. Ele acha que o capitalismo, na busca do lucro, vai agir para viabilizar a vida no planeta”.
Em paralelo a isto, cada vez mais se olha também para iniciativas que pouca ou nenhuma relação têm com o capitalismo. “Você tem também um certo segmento que está olhando para experiências locais de manejo da natureza. A tentativa de recuperação dos saberes dos povos originários sobre manejo sustentável das florestas. O modo comunitário de exploração e distribuição de maneira mais solidária. A ideia de bem viver, que nasceu entre os povos andinos”, explica Cardoso. O professor da UERJ afirma que essas experiências podem levar a se pensar não na lógica do emprego, mas da obtenção de meios de vida.
Diálogos seguros e fraternos
Seja dentro do capitalismo ou buscando soluções às margens dele, como aproximar trabalhadores e ambientalistas? Renata Belzunces aponta que o movimento sindical brasileiro e o movimento ambientalista têm origens distintas. “A gente tem o movimento ambientalista muito mais de classe média que das classes populares. Esse encontro não é sem fricção. E, no fim das contas, o que prevalece é sempre a lógica de classe”.
Apesar disto, existem exemplos de aproximações exitosas entre trabalhadores e ambientalistas. “O MST, ao colocar a agroecologia na pauta, juntou a reivindicação histórica pela terra, o sustento dos trabalhadores do campo, e aliou com a classe média, e as demais classes, a questão do alimento sem agrotóxicos. Esse é um bom exemplo a ser percorrido pelos trabalhadores”.
A técnica do Dieese diz que é importante que organizações sindicais criem instâncias ambientais que tenham certa autonomia em relação ao cotidiano do sindicato. “A agenda sindical é muito atropelada pela negociação coletiva, pelo reajuste salarial, e essa é uma pauta que se sobrepõe às demais”.
Uma iniciativa neste sentido foi criada pelo Sindicato Químicos Unificados, de Campinas, em parceria com o MST e com a comunidade local. Após um caso de contaminação em uma refinaria da Petrobras em Paulínia se formou o Livres – Rede de Produtos do Bem, que tem lojas e feiras de produtos agroecológicos. “Tem sustentação financeira, e usa sedes do sindicato, mas com alguma autonomia em relação à dinâmica sindical cotidiana e isso ajudou muito a prosperar”, conta Renata Belzunces.
Para a socióloga, é preciso estabelecer diálogos “seguros e fraternos”: “Quando esses espaços se criam, a gente tem bons resultados”.

