Marcio Pochmann: “Há um futuro que deveria estar em disputa no país e que não está sendo disputado”

Márcio Pochmann. Fotografia: Elza Fiúza/Agência Brasil

Estamos vivendo um novo tempo histórico, um período que, portanto, não deve ser analisado pelas mesmas lentes que, até aqui, haviam se mostrado adequadas. É preciso pensar algo novo, porque se trata de outra sociedade, defende o economista Marcio Pochmann, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. “O debate sobre a reforma trabalhista me parece muito pobre”, diz Marcio, que foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2007 e 2012, e da Fundação Perseu Abramo, de 2012 a 2020. “Deveríamos estar tratando não de refazer a CLT, constituída em 1943, no projeto de construção de uma sociedade urbana, salarial, mas sim de se criar uma CLT digital, porque é disso que se trata o trabalho do presente e do futuro”.

Em seu recém-lançado livro O neocolonialismo à espreita: mudanças estruturais na sociedade brasileira (Sesc, 2022), o professor busca “interpretar o Brasil” neste primeiro quarto do século XXI, reunindo aspectos econômicos e sociais que levam a entender que estamos diante de uma “mudança de época”, observada a partir do último quarto do século XX, com a “transição pelo alto” da ditadura civil militar para a democracia e o ingresso do Brasil “de forma passiva e subordinada” na globalização.

“O Brasil cancelou seu futuro”, considera Marcio, apontando “uma desistência histórica das elites dirigentes” de insistir em um projeto de industrialização nacional para o país. “Nós nos transformamos em um grande mercado de consumo”, avalia. “É uma mudança de época que exige uma contra-elite, uma nova cultura, que reconheça que o futuro existe”, propõe.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Em seu livro, O neocolonialismo à espreita, a proposta é construir uma “visão estrutural do Brasil”, “afastada das urgências do nosso tempo”, conforme define. Como esse afastamento pode nos iluminar, justamente, para fazermos frente às nossas urgências?

Quando buscamos os intérpretes do país – Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, Celso Furtado, para citar alguns – observamos que, na condição de intérpretes, eles mergulharam na história para entender o presente e foram fundamentais para reconhecermos que o esforço para o país sair do que era muito primitivo, de um passado escravista, colonial, para a modernidade capitalista influenciou decisivamente o que seria a montagem do Estado moderno no Brasil a partir da década de 1930.  Até a década de 1920, a ideia de atraso não era a de um atraso que se originava da posição do Brasil no mundo, mas um atraso temporal, decorrente do fato de o país ter sido descoberto, constituído, de forma relativamente recente, quando comparado à Europa. Havia, então, a perspectiva de que éramos um país de futuro, de sucesso. Os intérpretes daquele momento foram essenciais para mudar, do ponto de vista das ideias, a compreensão da realidade. As ideias não mudam a realidade – quem muda a realidade são as pessoas organizadas em ações coletivas. A contribuição que buscamos dar é uma tentativa de interpretar o Brasil neste primeiro quarto do século XXI. De que país estamos falando? De um país que, de certa forma, se insere na divisão internacional do trabalho de uma nova era, a Era Digital. E nessa Era Digital há dois caminhos: um diz respeito aos países que produzem e exportam bens e serviços digitais e outro, aos que consomem, importam, são dependentes, pois não produzem internamente. É nessa segunda condição que o país se encontra, a nosso ver.

Que características observamos no Brasil de hoje que evidenciam esse cenário?

O Brasil é, neste início da terceira década do século XXI, o país que ocupa a 13ª posição no ranking mundial das principais economias – já foi a sexta, mas, enfim… – é a sexta maior população do mundo, é o quinto maior país em extensão geográfica e, no entanto, é o quarto país consumidor de bens e serviços digitais. Então, nos transformamos em um grande mercado de consumo. Estamos dependendo do acesso a essa nova Era Digital pelo consumo da produção que vem de fora, com pagamento feito pela renda da exportação de bens primários – cuja produção é questionável do ponto de vista do meio ambiente.

Como isso se relaciona ao fato de o país ter vivido um “abandono do projeto de industrialização” e uma “entrada prematura” na sociedade de serviços e de bens imateriais, conforme analisa em seu livro? Existiria um momento ideal para essa transição?

Trabalho com a hipótese de que houve uma desistência histórica das elites dirigentes de insistir num projeto de industrialização nacional [ver também o livro A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial (Ideias e Letras, 2022)], basicamente, em função de como o Brasil transitou do período autoritário para a democracia. Depois de 21 anos de ditadura, não alcançamos a possibilidade de transição para a democracia por eleições diretas, como ocorreu em vários países que também vieram de períodos autoritários. A saída foi a negociação, a transição pelo alto, que se fez dentro do colégio eleitoral, que era a base pela qual o regime militar definia seus dirigentes. Isso implicou o ciclo político da Nova República como sendo um período em que nenhuma profunda reforma do capitalismo brasileiro foi realizada. O que tivemos foi a Constituição de 1988, uma Constituição excelente, mas dirigente, que dependeu de que sua regulamentação fosse feita por leis nos parlamentos subsequentes. Grande parte do que foi regulamentado se deu por governos com visões diferentes daquelas do acordo de 1988. Uma parte não foi regulamentada até hoje, como a tributação sobre ricos. Houve uma desistência histórica.

E o processo de industrialização não se completou…

Sim. A desistência se verifica quando o Brasil ingressa, a partir de 1990, na globalização, de forma passiva e subordinada. A questão não é o ingresso, mas a forma como ingressou e que vai levar ao fim do modelo econômico de substituição de importação por produção nacional, e ao deslocamento do país para se tornar uma plataforma global de financeirização da riqueza velha, combinada com o retorno à reprimarização exportadora. Isso faz do Brasil, hoje, um dos principais produtores de bens primários, um país que tinha a sexta maior indústria do mundo e que, agora, é a décima-sexta. A indústria de transformação no Brasil, hoje, gera uma receita que equivale a apenas 72% das receitas de uma empresa como a Toyota, quando, há quarenta anos, essa indústria gerava um valor quatro vezes maior que o das receitas da Toyota. Essa regressão industrial produtiva teve impactos inegáveis na sociedade que temos hoje.

Como a transição da sociedade industrial para a sociedade de serviços poderia ter se dado?

A forma subordinada e passiva pela qual o Brasil escolheu ingressar na globalização mostra que perseguimos um caminho diferente do de outros países. Ao final da década de 1970, Brasil e Coreia do Sul eram os países vitrines do capitalismo mundial, na medida em que tinham constituído uma base industrial complexa, diversificada e integrada, e eram países de passado colonial. A partir da década de 1980, a Coreia do Sul se fortalece ainda mais e o Brasil se enfraquece. Ambos entraram na globalização, mas os resultados foram distintos e se devem às suas opções internas. Esse ingresso passivo e subordinado leva a hoje reconhecermos que o Brasil, a partir de então, cancelou o seu futuro. Somos, hoje, um país que não trata do futuro. Eu era estudante de Economia no início dos anos 80, e discutia-se o que iria ser o Brasil no ano 2000. Havia livros, autores, seminários, trabalhos – de Roberto Campos, à direita, de Celso Furtado, à esquerda, entre outros. Era um país em busca do seu futuro. Decorridos quarenta anos, as expectativas da população são decrescentes em relação ao futuro, apresentado como pior do que o presente: as novas tecnologias vão substituir empregos; com a mudança climática, haverá muitas pandemias; enfim, será pior do que hoje. Obviamente, o Brasil tem futuro, mas estamos submetidos a um diagnóstico comum de que vivemos um colapso – o colapso da modernidade. O Brasil vive a experiência da desmodernização, um país cada vez menos moderno, repetidor do passado.

É nesse sentido que utiliza o termo “neocolonialismo” no título de seu livro?

O título é sugestivo a se refletir. Não seria uma condição colonial propriamente, porque isso supõe a metrópole, uma dominação externa dentro do país. No capitalismo, a dominação é mais sofisticada, se dá pela presença do capital estrangeiro, ou por instituições estrangeiras que operam no âmbito das decisões nacionais. É uma perspectiva nova – neocolonial nesse sentido. As elites que temos hoje reproduzem a visão do chamado realismo periférico: o Brasil é um país periférico, sem condições de disputar indústria, não tem tecnologia, precisando, portanto, se associar a alguma outra potência. Essa é a ideia da desistência histórica: é melhor comprarmos fora do que produzirmos internamente. Nas mais de treze décadas em que estamos submetidos ao sistema capitalista, dominante a partir da abolição da escravatura, temos o período de menor dinamismo econômico dos anos 1980 para cá: um país que, em 1980, representava 3,2% do PIB mundial, agora, representa 1,6%. Essa desistência histórica leva a uma forma de atuação em torno do que denomino gestão da catástrofe, em um país que cresce pouco e gera uma massa sobrante de força de trabalho. A expansão de programas sociais de transferência de renda, que ajudam a proteger a população dessa sociedade com dinamismo econômico frágil, foi fundamental, mas esse braço social está contribuindo para [apenas] gerir essa massa sobrante, no sentido de evitar a catástrofe. Em 1985, 2,7% da população dependiam do orçamento público; em 2019, chegamos a 27%; em 2000, a 40%. Pessoas sem renda gerada pelo emprego, pela atividade econômica, para viver.

Ao apenas “gerir a catástrofe”, não se abre uma possibilidade de enfrentamento e reversão do cenário…

Claro que é melhor que haja os programas sociais. Longe de mim dizer o contrário. Mas o que se faz é postergar: há um futuro que deveria estar em disputa, mas que não está sendo disputado, porque interessa à elite dirigente que isso não seja feito. Esse braço social do Estado convive com outro que é o braço policial. Uma parte da população sobrante passou a estar aprisionada. Em 1990, tínhamos 90 mil presos no Brasil. Atualmente estamos com mais de 800 mil. É a terceira maior população carcerária do mundo, em um país que tem a sexta maior população. Há, aí, um descompasso. Sem falar no processo de genocídio pela ação da violência – entre 40 mil e 50 mil assassinatos por ano, em dados subestimados, segundo alguns estudiosos. Ou seja, de um lado, liquida-se uma parte da massa sobrante e, de outro, faz-se a gestão do colapso. Sendo que, da metade da década para cá, estamos vendo a aceleração do colapso, a destruição daquilo que minoraria a situação nacional, na expectativa de que a destruir pode gerar algo melhor.

Conforme observa em seu livro, estamos diante de uma mudança de época histórica. O que representa, em linhas gerais, esse conceito que orienta toda a sua reflexão?

Há um diagnóstico dominante, hoje, no Brasil de que vivemos um mesmo período histórico. Isso tem levado a defender o passado como sendo o futuro. Políticas deram certo no passado? Vamos continuar a exercê-las. Mas nós não estamos no mesmo tempo histórico, pelo contrário, este é um período que não pode ser analisado com as mesmas lentes que foram adequadas ao passado. É preciso pensar algo novo, porque se trata de outra sociedade. Estamos diante de uma mudança de época histórica, e toda mudança de época resulta de uma luta interna, uma correlação de forças, assim como nas duas outras mudanças de época que marcaram o Brasil e que ajudam a entender o que temos hoje. A primeira mudança transcorre na década de 1880, com o fim de mais de três séculos de escravidão e o ingresso no capitalismo, na luta de classes, no trabalho livre, no assalariamento. A década termina com a abolição da escravatura, o movimento social mais importante do século XIX. Uma segunda mudança de época se deu na década de 1930, com a Revolução de 30, a contrarrevolução [Revolução Constitucionalista] de 32, a Intentona de 35 [Comunista] e 38 [Integralista], o Estado Novo, uma sociedade em movimento, com avanços e retrocessos.

Como podemos caracterizar esta terceira mudança de época, na qual nos encontramos, e qual o papel das novas tecnologias nesse cenário?

A atual mudança de época diz respeito à Era Digital. Houve uma primeira fase da Era Digital, em que nós, indivíduos, empresas, colocamos para dentro da internet as nossas informações estratégicas, nossa lista telefônica, nossa agenda, formas de pagamento, formas de compra, vídeos, trajetórias que fazemos usando os aplicativos de mobilidade, uma massa de informações que serviu de modelo de negócio, com uso desses dados de forma sistemática, monitorados por algoritmos. Estamos entrando em uma segunda fase da Era Digital, que alguns denominam metaverso, na qual estaremos operando dentro da internet. É um caminho pelo qual o futuro está se constituindo e com o qual nós estamos lidando passivamente, não por não termos ciência e tecnologia, pesquisas, universidades, institutos – a Fiocruz é uma manifestação concreta desse país moderno, que poderia disputar esse futuro –, mas porque esse não é um projeto nacional. Esta mudança de época tem uma parte fundamental que resulta da revolução informacional – parto da hipótese de que não se trata de uma revolução industrial. A visão pessimista sobre a tecnologia relaciona-se a um entendimento [equivocado] de que estamos diante de uma revolução tecnológica do ponto de vista industrial, fundamentada no paradigma mecânico, em que há substituição de trabalho humano por processos mecanizados. Não me parece que seja isso, e sim uma revolução informacional, em que a informatização da sociedade está mudando a natureza do trabalho.

Como essa mudança na natureza do trabalho se expressa?

Dou sempre um exemplo: um setor que investe muito em tecnologia no Brasil é o financeiro. Em 1988, o ramo financeiro tinha 1 milhão de trabalhadores contratados diretamente pelos bancos e 150 mil contratados indiretamente, como terceirizados – como pessoal de segurança e de transporte de valores. Em 2014 – antes de começar a confusão que estamos vivendo –, tínhamos o ramo financeiro com 1,8 milhão de trabalhadores, 80% a mais! Só que os contratados diretamente como bancários tradicionais eram 400 mil, mas, em compensação, havia 1,4 milhão de trabalhadores sob outras formas de trabalho no sistema. É uma mudança na natureza do trabalho, e as instituições como sindicatos, associações, partidos, que foram importantes na sociedade industrial do passado, mostram-se agora com dificuldades.

Que outras características observa nesta mudança de época?

Há duas questões ainda a considerar. Uma, sobre a relação do Brasil com o mundo. O Brasil constituiu-se, assim como o continente americano, como projeto de modernidade ocidental, europeia. Até o século XV, o continente americano não existia no mapa do ocidente. A América é um projeto que se dá pelo sistema colonial europeu. São 500 anos de nossa história vinculados à Europa e depois aos Estados Unidos. Agora estamos diante do principal acontecimento dos últimos 500 anos: o dinamismo econômico, tecnológico, produtivo cada vez mais indo para o Oriente, especialmente, para a China. Se o movimento de modernidade vai para a Ásia, como o Brasil se recoloca nessa nova condição, sem experiência acumulada do passado? O país é, hoje, dependente de produtos tecnologicamente avançados que vêm na China! E há um terceiro ponto da mudança de época – além da Era Digital e do deslocamento do centro dinâmico do mundo: o novo regime climático, o Antropoceno. Os vários relatórios do IPCC apontam que já ultrapassamos o ponto de não retorno, já estamos diante de um planeta com maior temperatura. A pandemia que transcorreu de 2020 para cá não é um fato isolado, como havia sido a gripe espanhola, em 1918, e terá implicações ao longo do tempo. Como reorganizar o país diante desse novo regime climático? Não é refazendo o que fizemos, isso fica para trás. Estamos diante de um novo regime climático, uma nova era digital e um deslocamento do centro dinâmico do mundo. É uma mudança de época que exige uma contraelite, uma nova cultura que reconheça que o futuro existe.

De que elementos o Brasil dispõe para lidar com essa possibilidade de futuro?

As oportunidades que o Brasil tem são singulares, em relação à de outros países. O país tem uma situação demográfica inédita. As estimativas do IBGE feitas antes da pandemia – e, portanto, devem estar superestimadas – indicam que a população do século 21 crescerá 4%, ou seja, deve crescer em termos absolutos até a década de 2040, para depois passar a decrescer; o número de nascidos será menor que o número de mortos. Nenhum país tem uma fonte de mudança climática excepcional como a Amazônia. Poderíamos pensar o desenvolvimento do país a partir dos biomas brasileiros. O Brasil precisaria de ousadia para construir uma espécie de Petrobras da biotecnologia da Amazônia. Esse é o passaporte para ingressar no século XXI. No entanto, estão sendo tomadas decisões sem um horizonte de futuro. O Brasil tem também biomas novos sobre os quais não se discute, por conta desse cancelamento do futuro, como o bioma da chamada Amazônia azul, que se refere à soberania do país no Oceano Atlântico. A Petrobras, em esforço excepcional, conseguiu descobrir petróleo na camada do pré-sal, mas o fundo do mar não tem só petróleo, e sim uma riqueza inestimável. Outro ponto do qual não se trata é o do desenvolvimento no espaço sideral. As principais empresas do mundo ocidental, do sistema Gafam – termo formado pelas iniciais de Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – só existem porque têm satélites. O Brasil tem a principal base de satélites do mundo; se olharmos a rota de satélites que percorrem o espaço brasileiro, perceberemos inúmeros que não são do país e têm modelo de negócio próprio, sem pagar tributos. São novas fontes de riqueza que podem ser aproveitadas de formas sustentáveis, novas frentes de expansão econômica, sobre as quais o país não discute.

Gostaria de voltar ao mundo do trabalho, no que diz respeito ao papel das novas tecnologias nas mudanças que observa no universo laboral.

A revolução informacional não apenas transforma o trabalho, como abre a perspectiva de uma nova regulação do que seja trabalho. O debate sobre a reforma trabalhista me parece muito pobre. Deveríamos estar tratando não de refazer a CLT, constituída em 1943, no projeto de construção de uma sociedade urbana, salarial, mas sim de se criar uma CLT digital, porque é disso que se trata o trabalho do presente e do futuro. Até a década de 1920, o Brasil era um país voltado para o agrarismo, o trabalho na sociedade agrária se dava onde as pessoas moravam, na roça, na estrebaria. Tínhamos uma sociedade voltada à sobrevivência. As pessoas viviam pouco e já começavam a trabalhar aos cinco, seis anos, todos os dias, até morrer. Quando entramos na sociedade industrial, urbana, de 1930 em diante, há uma mudança profunda no trabalho. Não se trabalhará mais onde se reside, mas em fábricas, no comércio, nos bancos. E o trabalho reconhecido é o exercido fora de casa. Só terá direito a férias, salário mínimo, representação sindical, aposentadoria quem realizar o trabalho fora de casa – e com carteira assinada, o que não significa a totalidade dos trabalhadores. Na sociedade industrial, quem passa trinta anos lavando louça em casa – isto é, o trabalho de reprodução, diferentemente do trabalho de produção, ambos com igual importância –, não se aposentará lavando louça; se realizar a mesma atividade em um restaurante poderá ter esse direito.
 

E na Era Digital?

Na Era Digital o que temos é que a tecnologia disponível, a internet, a digitalização, possibilitam a realização do trabalho em qualquer lugar e cada vez mais dentro de casa. Isso não ocorre com todas as atividades, mas, de qualquer forma, ocorre com as mais dinâmicas, as que mais crescem. Temos que olhar para o dinamismo das tecnologias, que vão borrando a fronteira entre o trabalho de reprodução e de produção. Isso significa uma agenda nova de reivindicações para o sindicalismo. Mas temos uma elite sindical dirigente fundada no trabalho antigo. Alguém pode dizer que é muito precário o trabalho, hoje. De fato, é. A terceirização foi identificada como precarização e tem elementos precarizantes. Mas se, por um lado, representa uma regressão para quem tinha um trabalho integral e passou a ser terceirizado, isso nem sempre é um declínio para todos. Nos anos 1990, segundo o Dieese, havia no Brasil 14 milhões de terceirizados. E desses, 80% nunca tinha tido atividade anterior que garantisse algum direito. Para esse trabalhador que não tinha nada, a terceirização representou uma mobilidade, ele melhorou! – apesar de ser considerada precarizante sua atividade. A pessoa pensa: eu não tinha nada, agora, tenho um trabalho. E, se ela se dá conta de um discurso contra a terceirização, vai concluir: vocês são contra algo que eu tenho.

De que forma é preciso olhar para esse novo mundo do trabalho, então?

Hoje temos um olhar de cima para baixo. Pegando-se os trabalhadores de plataforma digital, os entregadores ou os trabalhadores da Uber, para nós, isso é precarização. E é verdade! Mas precisamos nos colocar na posição desses trabalhadores e trabalhadoras que exercem essas funções! No estado de São Paulo, de 2014 a 2020, 50 mil pessoas deficientes auditivas tiraram a carteira de motorista e passaram a trabalhar para esse sistema. Elas não tinham nada e passaram a ter algum ganho. Essa é a realidade, está dada. O fato de sermos contra isso nos desloca da posição de tentar juntar essa massa de pessoas e fazer delas um novo sujeito social para transformar. Isso se muda, do ponto de vista democrático, construindo-se uma nova maioria política. E não construo maioria política dizendo a você que sou contra o seu trabalho porque você é precarizada. Vou construir se eu reconhecer que seu trabalho é importante para sua renda e poderia ser melhor. “Junte-se a nós para que possamos melhorar”. Essa é a metodologia de algumas igrejas neopentecostais e até do crime organizado. Estamos vendo no Brasil, hoje, essas instituições ganharem força em relação às instituições tradicionais. É uma mudança de época, a maior parte da população está insatisfeita. É juntar essa insatisfação, de ordem individual, em torno de um projeto coletivo, novo, de disputa do futuro e não de defesa do passado.

A propósito da transição pelo alto da ditadura civil militar para a democracia, sem que tenha havido reformas profundas, conforme analisa, podemos entender por esse caminho o advento da Reforma Sanitária Brasileira e do SUS – que datam desse período – e também sua incompletude até os dias de hoje?

De fato, a Reforma Sanitária não foi um acontecimento pontual. Já no final dos anos 1970 havia a percepção de que o acesso à saúde dava-se tão somente pelo que Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) denominava de cidadania regulada – quem tem carteira assinada tem acesso ao atendimento de saúde, quem não tem vai pela filantropia, se for pobre, ou, se tem dinheiro, vai pelo setor privado. Essa visão de universalidade tem por base uma visão de mundo gerida por uma ação política da maior importância no Brasil. Talvez seja o fato mais importante do ciclo da Nova República. Não se completou porque a regulamentação do Sistema Único de Saúde, a partir do que a Constituição estabeleceu, se deu diante de diferentes governos subsequentes. Agora, emerge um projeto de sociedade dos cuidados. Estamos diante de uma mudança do ponto de vista demográfico etário e não temos políticas que olhem para isso do ponto de vista da saúde – e também da educação, que deverá ser permanente, não só para crianças, adolescentes e jovens. É outra perspectiva de vida. O Complexo Econômico-industrial da Saúde tem um papel fundamental nesse movimento de recomposição do Brasil para a disputa do sentido de futuro; a ideia de um complexo industrial, de produção de todos os componentes que dizem respeito ao que se entende por saúde. O setor Saúde talvez seja o que mais empregue hoje no Brasil.

Seu livro identifica a possibilidade de um “novo”, em meio às “resistências do envelhecido”, em suas palavras. Que aspectos destaca como possíveis nesse ‘novo’ e o que é preciso para alcançá-lo?

Temos uma sociedade em movimento, de muitas disputas, mas esses movimentos e disputas não se traduzem no sistema de representação de interesses. Na última eleição, mais de 250 deputados tenham sido eleitos vinculados ao agronegócio brasileiro. Nada contra o agronegócio ter sua representação, mas me parece demasiado termos quase metade dos parlamentares vinculados a um setor minoritário no país, do ponto de vista demográfico. Um país que tem mais de 50% de mulheres também não está retratado dessa forma no Parlamento, assim como temos uma população de 54%, 55% não branca, também não representada. Ou seja, há problemas de representação na política. A política, que é um fim, do ponto de vista de um projeto pelo qual a sociedade democraticamente estabelece seu horizonte, está menosprezada, subordinada à economia. A política virou um meio pelo qual a economia dá o sentido geral. E o sentido geral da economia é o que temos visto: o exemplo concreto do subdesenvolvimento, um país que não amplia riquezas e sim o número de ricos. Esse descontentamento é que precisa ser considerado no entendimento de que o país tem um futuro. Mas, no cancelamento do futuro, amanhã será pior que hoje, portanto, vivemos o curtíssimo prazo, vivemos da gestão das emergências. A visão progressista da História parte do pressuposto de que o amanhã poderá ser melhor do que o hoje.

Fonte: GGN, com CEE-Fiocruz
Texto: Eliane Bardanachvili
Data original da publicação: 04/07/2022

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