Desde que o governo introduziu na agenda política a reforma da Previdência Social, no fim do ano passado, centrais sindicais e demais representantes dos trabalhadores têm se manifestado contra a ideia. Sob pressão das forças de mercado, que desejam cada vez mais ver o contingenciamento dos gastos sociais no país, o governo argumenta que a reforma é necessária para dar conta do aumento da expectativa de vida dos brasileiros, o que permitirá garantir a sustentabilidade financeira do sistema para as futuras gerações.
O tema foi mal recebido pelos representantes dos trabalhadores na segunda reunião do Fórum de Debates sobre Políticas de Trabalho, Emprego, Renda e Previdência Social, no mês passado, na qual a expectativa era discutir projetos para a retomada do crescimento, da renda e do emprego. Ao fim da reunião, o presidente da CUT, Vagner Freitas, afirmou refutar no mínimo dois itens citados como tema de debate: a equiparação da idade para aposentadoria entre homem e mulher e a instituição de uma idade mínima, que seria prejudicial aos brasileiros que começam a trabalhar cedo.
“Em primeiro lugar, é uma injustiça com as mulheres e um retrocesso a direitos já conquistados por elas e pelos trabalhadores de um modo geral, pois todos sabemos que a mulher tem uma jornada tripla, reunindo tarefas de casa e trabalho. Em segundo lugar, qualquer alteração que atrapalhe os que começaram a trabalhar mais cedo vai ser vista por nós como uma distorção”, disse Freitas, que defende um debate global sobre todo o sistema de seguridade social e suas formas de funcionamento e financiamento – e sem atropelos.
Dias antes, na reunião de retomada do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), os trabalhadores já haviam refutado o tema. “O problema que estamos vivendo hoje não é a Previdência, é a economia, a ausência de crescimento, o desemprego que vem como consequência disso. Essa que tem de ser a agenda a ser combatida. A Previdência tem um fórum e todas as questões precisam ser tratadas nesse outro fórum, e debatidas profundamente com a sociedade, garantindo todos os direitos. Então essa, a nosso ver, não tem de ser uma prioridade porque não vai resolver o problema do Brasil agora”, afirmou presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvandia Moreira, também integrante do chamado conselhão.
Apesar da má repercussão entre os trabalhadores, o governo segue no propósito de debater a reforma previdenciária, a única de caráter estrutural entre as ações que o Executivo trabalha para este ano. O Planalto quer até o mês de abril as propostas a serem discutidas, que levam em conta sete itens: demografia e idade média das aposentadorias; financiamento da Previdência Social: receitas, renúncias e recuperação de créditos; diferença de regras entre homens e mulheres; pensões por morte; previdência rural (com financiamento e regras de acesso); regimes próprios de previdência; e convergência dos sistemas previdenciários.
Com tranquilidade
O tema tem sido recorrente nas entrevistas da presidenta Dilma Rousseff. No final de fevereiro, ao falar com jornalistas durante visita ao Chile, ela partiu da necessidade de ajuste fiscal para atrair os investimentos necessários à retomada do crescimento. Ao mesmo tempo, tentou tranquilizar os trabalhadores: “Nós podemos fazer uma reforma com tranquilidade, com um período longo de transição, em que você absorva todas as expectativas de direito, mas que reconheça uma realidade, que é o fato muito bom, que a nossa expectativa de vida aumentou”, observou. “Aqueles que trabalham vão ter de progressivamente sustentar a parte maior da população, que é a que não trabalha, quais sejam, os que se aposentam, e as crianças e os jovens.” Uma semana depois, Dilma passou a admitir a possibilidade de transferir a discussão para o segundo semestre.
Mas se os resultados da desejada reforma vão surgir somente a longo prazo, por que afinal o governo insiste em discutir o tema agora – no contexto do ajuste fiscal e de uma crise política que exige o apoio de sua base social, e não o contrário? “Os efeitos vão ser sentidos lá no futuro, daqui a 10, 20 anos. Mas promover a reforma agora já tem um impacto positivo imediato para a economia brasileira. Possibilita estabilizar o câmbio e reduzir as taxas de juros de longo prazo. É um sinal positivo de sustentabilidade da Previdência Social e da dívida pública”, disse o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, durante o anúncio da programação orçamentária para 2016, confirmando a análise dos críticos da desejada reforma, que veem em seu cerne um novo ataque neoliberal ao sistema de proteção social no país, um dos mais avançados do mundo e referência entre os países da América Latina.
Uma das críticas à reforma recai justamente sobre o seu ponto central, que é a adoção de uma idade mínima para o direito à aposentadoria. A economista Rosa Maria Marques, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, confronta essa ideia com as realidades tão diferentes existentes no país para destacar que não se pode criar uma idade mínima de referência em um país tão desigual. “Seria consagrar a desigualdade”, diz.
Impactos
Além disso, o impacto da adoção de uma idade mínima não seria expressivo, conforme dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip). Segundo o presidente da entidade, Vilson Antonio Romero, a Previdência paga atualmente 32 milhões de benefícios por mês, como aposentadorias por idade, invalidez, por tempo de contribuição, pensão por morte e auxílio-reclusão, entre outros. Desse total, apenas 5 milhões, ou 16%, são por tempo de contribuição e representam o alvo do governo com a ideia da redução da idade mínima.
Mais do que discutir idade mínima ou outra proposta que altere o andamento da seguridade social no país, governo e forças representativas da sociedade precisam se entender quanto aos números da Previdência. “Tem sido dito que a idade em que as pessoas se aposentam, em média, aos 56 anos, mais a estrutura de indexação dos benefícios ao salário mínimo, têm produzido um rombo que no ano passado foi estimado em R$ 88 bilhões e que deve projetar R$ 140 bilhões neste ano, mas isso tudo é uma falácia”, diz Romero.
O orçamento da seguridade social nos últimos 15 anos foi superavitário, observa o presidente da Anfip, citando dados do Sistema Integrado de Administração Financeira da União (Siafi). “No último número que temos do balanço da União, houve um superávit em 2014 da ordem de R$ 54 bilhões”, afirma. As receitas da seguridade no país incluem a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a contribuição previdenciária, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), mais o PIS/Pasep, além de outras receitas adicionais. As despesas incluem a Previdência, a saúde e a assistência social. Nesta última categoria estão o programa Bolsa Família e o seguro-desemprego.
O capital financeiro tem de pagar
Para a economista Rosa Maria Marques, professora da PUC-SP, discutir reforma e idade mínima no meio da crise traz o risco de consagrar desigualdades
Especialista em sistemas públicos de saúde e de previdência, a economista Rosa Maria Marques, professora da PUC-SP, considera que a sustentabilidade da seguridade social é assunto muito sério para ser tratado em meio a uma crise política e econômica. É necessária uma reforma? “Sim e não”, diz Rosa.
Ela observa que a expectativa de vida no Brasil está aumentando a ponto de, em um futuro breve, correr-se o risco de uma pessoa passar mais tempo aposentada do que na ativa, e que isso exige rediscussão do modelo de financiamento. Mas não autoriza o governo a precipitar o debate pela idade mínima. Para Rosa, o aumento da expectativa de vida é uma conquista dos brasileiros a ser celebrada. “Viver mais é uma coisa boa.”
O discurso apresentado, porém, de tratar isso como problema, adota o raciocínio do programa do PSDB e da ala conservadora do PMDB e contraria a base social do governo, avalia a economista. Para ela, o futuro do custeio da seguridade social passa por uma taxação maior do capital financeiro – setor que mais lucra e menos paga impostos na economia global. Neste momento, Rosa não vê uma correlação de forças favorável a essa discussão.
O que leva o governo a trazer para o debate a idade mínima para aposentadorias?
O porquê dessa discussão é mais político do que qualquer outra coisa. Na verdade, está presente desde os anos 1990. Desde a Constituição de 1988, antes mesmo de ser promulgada, o Sarney foi à TV dizendo que os novos direitos levariam o país à falência.
A partir dos anos 1990, ao mesmo tempo em que o Collor encaminhava ou aprovava os projetos de lei que regulamentavam os direitos da Constituição, encaminhava uma série de projetos com propostas de reforma na área previdenciária, da saúde e outras. Então, essa discussão é antiga.
Discutir a Previdência tem como pano de fundo a ideia de que ela é deficitária. Mas o déficit é responsabilidade mais da elevação dos juros do que do gasto público. O gasto da Previdência é grande, porque nós temos, provavelmente, o maior sistema previdenciário do mundo, muito embora a gente só cubra a metade da força de trabalho – o resto está na informalidade.
O peso desse gasto é grande, mas é menor que o peso dos juros. Agora, tem de se fazer alguma reforma? Sim e não. Uma coisa a gente tem de reconhecer: a população brasileira está envelhecendo, e numa velocidade muito rápida. Está se vivendo mais. Dadas as condições atuais, aquele que se aposenta hoje permanece por mais tempo no sistema e, muitas vezes, poderá até receber por mais tempo como aposentado do que o tempo da ativa.
Quando se fala em envelhecimento, tecnicamente, é aumento da expectativa de vida ao nascer?
São duas coisas. Uma é a expectativa ao nascer, outra é a expectativa de vida no momento da aposentadoria. O que acontece é que a nossa sociedade é absolutamente desigual. Então aqueles que mais morrem nos primeiros anos de vida são os mais pobres, com menos condições, menos renda. Passada essa fase, começa a se aproximar dessa expectativa de vida maior.
Se você passou o período em que a pobreza te pega e, ainda mais, se você passou pela adolescência, onde principalmente a morte de jovens homens é enorme – a ponto de a curva demográfica ter uma “barriga” –, passado isso, vingou. Em resumo, uma pessoa de 70 anos de idade, independentemente da renda, não tem diferença de sobrevida. Tem no início. Então, é uma realidade.
Estamos vivendo mais, e isso é uma coisa boa! E se é uma coisa boa, e a sociedade está mudando, isso significa que nós temos de fazer novos pactos para o financiamento da Previdência. Mas aí começam os problemas.
Quais?
Primeiro problema: a existência do déficit previdenciário está situada na reforma de 1998. A reforma previdenciária de 1998 se soma à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que passa a entender a Previdência nela mesma, e não vinculada à seguridade social.
Quando os constituintes introduziram a seguridade social – previdência, saúde, assistência social, seguro-desemprego –, colocaram uma série de recursos, que são as contribuições sociais, e pensaram esse conjunto de contribuições para a seguridade social.
A partir de 1998, e antes, com a LRF, examinou-se a Previdência nela mesma – quanto entrou de contribuição e quanto saiu. “Ah, tá faltando, então preciso usar a contribuição da Cofins, disso e daquilo. Logo, tenho o déficit.” Agora, se somar todos os recursos da seguridade e, do outro lado, todas as despesas da seguridade, ela é superavitária.
A segunda questão é que não é verdade que o critério de idade não seja reconhecido. O fator previdenciário já leva em consideração a sobrevida do indivíduo. Ou seja, se está considerando a idade da pessoa no momento da aposentadoria e a sobrevida. Dependendo de como isso se forma, ele tem um redutor. E passou a valer, desde o ano passado, a fórmula 85/95, que é a combinação do tempo de contribuição com a idade. Então, a exigência de idade já é contemplada. Mas eles querem colocar a idade mínima.
Quem são “eles”?
É a classe dominante, de maneira genérica. Se tu pegas o programa do PMDB – “Ponte para o Futuro” –, ou o que escrevem nos jornais os economistas ligados ao PSDB, isso é colocado claramente. Mas é um problema introduzir idade mínima única em um país absolutamente desigual. Porque os setores que começam a trabalhar muito cedo, os mais pobres, que começam aos 15, vão ter maior tempo de contribuição, combinado à idade, do que o cara da classe média alta, que começou a trabalhar aos 25. Isso contempla desigualdades.
Esse é, de certa forma, o pacto negociado na Constituição de 1988, no princípio das obrigações do Estado em relação à seguridade. Mas não se pactuaram novas formas de financiamento.
Por que não alterar as fórmulas de financiamento? Por que não se ter uma contribuição sobre o capital financeiro? Não estou falando da CPMF, que é sobre a transação financeira. Estou falando do capital, propriamente dito, que é aquele que comanda a realidade capitalista contemporânea.
Quando se olha o sistema tributário, ele é sobre salário, sobre faturamento, sobre fatos geradores de renda. O que estou dizendo é: tem de taxar o capital financeiro, porque ele não cria nem renda, nem emprego, só lucro para quem o detém. Essa discussão devia ser introduzida. Claro que isso só pode ser discutido e concretizado se houver uma alteração da correlação de forças, o que não é fácil, ainda mais num mundo como o de hoje.
Existe uma terceira discussão: quando se examina as contas da Previdência, se tem o setor rural financiado pelo urbano?
Foi um grande avanço da Constituição de 1988 estender os benefícios aos rurais. Acontece que os rurais não têm capacidade de arrecadação, então são financiados pelas contribuições urbanas, de trabalhador e empregador. Isso não é novidade. É assim no mundo inteiro. Quando é um trabalhador assalariado é fácil, porque ele contribui diretamente na folha e o empregador com os outros 20%. Mas para o resto dos trabalhadores, em geral, como se vai arrecadar? Como isso é resolvido em outros países? Há um aporte do Estado.
E aí se liga à primeira discussão: precisa sobrar dinheiro para o superávit primário, que serve à dívida. Fizeram a escolha: em primeiro lugar, honrar os contratos e pagar o serviço da dívida. Para isso, só tem um jeito: tem que sobrar recursos. Agora, tem um problema: no Brasil o público (com os gastos sociais) ainda financia o privado (com as injustiças tributárias).
Quando você faz a declaração do Imposto de Renda, coloca lá a previdência privada, os gastos com médicos e planos de saúde, e isso é deduzido do seu imposto a pagar. Você pode aplicar 22% da sua renda anual numa modalidade de previdência privada! No caso da saúde também, é simplesmente deduzir do seu imposto. A escola também. O Estado está renunciando àquela arrecadação. O volume de renúncia é enorme, principalmente, quando a gente soma o que a Dilma fez (as desonerações em folhas de pagamento), que foi uma loucura. Na esperança de que se ia aumentar a competitividade dos nossos produtos no mercado internacional, detonou as contribuições com as desonerações. A leitura disso é o público financiando o privado.
Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Helder Lima e Paulo Donizetti de Souza
Data original de publicação: 13/03/2016
[…] Governo Dilma começa a discutir formalmente a reforma da Previdência, com a intenção de ouvir as sugestões das centrais sindicais e dos representantes dos empresários, gerando críticas quanto à real necessidade de se fazer uma reforma:Governo, centrais e empresários começam a discutir reforma da PrevidênciaReforma da previdência começará a ser debatida, mas proposta não agrada sindicalistasPrevidência e catastrofismoReforma da Previdência: urgência para que(m)?Mais um alvo errado do ajuste […]