O apego de Guedes ao posto se escancarou de forma desavergonhada ao aceitar colocar sua assinatura nas gambiarras para furar o teto de gastos sem assumir a coragem de dizê-lo abertamente.
Paulo Kliass
Fonte: GGN
Data original da publicação: 02/12/2021
Não é segredo para quase mais ninguém o quão criminosa tem se revelado a cada semana, casa mês, cada ano que passa, a política econômica levada cabo pelo superministro da economia Paulo Guedes. Desde antes mesmo do início do mandato do ex-capitão, o banqueiro sempre se primou por implementar, enquanto política de governo, as propostas que atendessem de forma plena e satisfatória prioritariamente aos interesses do financismo.
Esse foi o recado apresentado ainda à época da campanha em 2018, quando conseguiu edulcorar a candidatura do defensor da tortura e da pena de morte em suas conversas com a nata do sistema financeiro e das classes empresariais de forma geral. O entusiasmo com a possibilidade de evitar a tão temida “volta do PT” tomou conta das elites e seu apoio no segundo turno foi fundamental para a vitória de Bolsonaro. O “todpodroso” da economia repetia o surrado mantra pela eliminação do Estado na economia, que se combinou ao discurso ultrapassado da necessidade urgente de aprofundar o austericídio, focando de forma obcecada nas metas de obtenção de superávit primário nas contas governamentais.
As promessas de retomada do crescimento da economia se revelaram em toda sua falsidade já logo no final do primeiro ano de governo. O crescimento pífio do PIB em 2019 (1,2%) conseguiu a façanha de se revelar no mesmo patamar do que os também ridículos valores apresentados por seu desafeto, Henrique Meirelles, ainda no mandato golpista de Michel Temer. A obsessão compulsiva de Guedes com o binômio” privatização e austeridade fiscal” não poderia mesmo levar a outro resultado, com a consequente compressão da demanda interna.
Austericídio: antes, durante e depois da pandemia
Em 2020 e 2021 a incompetência criminosa do governo no combate à pandemia tampouco colaborou e o Brasil mergulhou em uma profunda recessão. O negacionismo com o diagnóstico da pandemia se articulou de maneira tragicamente perfeita ao negacionismo em matéria de política econômica. Por outro lado, da mesma forma que o governo se recusava aceitar os dados inquestionáveis de avanço do desmatamento por todo o território nacional, a equipe econômica se negava em incorporar as atualizações de avaliação da política fiscal que se faziam nos governos dos países do centro do próprio capitalismo. O encantamento com a austeridade fiscal a qualquer preço que havia sido praticado ao longo de algumas décadas, cedeu espaço para uma abordagem mais flexível a respeito da importância dos gastos públicos. A crise econômico-financeira de 2008/9 e mais recentemente a própria crise alavancada pelo covid-19 restabeleceram um novo consenso em torno da necessidade de aumento das despesas públicas para enfrentar a recessão e as consequências sociais derivadas da pandemia e do desemprego.
No entanto, por nossas praias, nenhuma dessas mudanças observadas no Hemisfério Norte era considerada relevante – nem pelos membros do governo e muito menos pela grande imprensa. À medida que se aprofundava a crise política envolvendo Bolsonaro, seus colaboradores mais próximos e sua família, os grandes órgãos de comunicação seguiam apoiando de forma obtusa a agenda econômica do antigo colaborador da sangrenta ditadura do General Pinochet no Chile. Um pouco na linha do “Bolsonaro é meio tosco mesmo, mas o Guedes é do nosso time”, reforçavam o aplauso a cada novo anúncio de reforma destruidora do Estado e que promovesse desmonte de políticas públicas. No entender dos “especialistas” de sempre, a política econômica seguia irretocável. E o elemento mais simbólico seguia sendo a manutenção do teto de gastos, tal como estabelecido na EC 95/2016.
Essa era, aliás, uma das pedras angulares da política econômica desde a duplinha Temer & Meirelles. Aprovada em dezembro de 2016, ainda no calor do impedimento de Dilma, a emenda constitucional previa em seus dispositivos o chamado “Novo Regime Fiscal”. Enfim, apenas um eufemismo para qualificar uma longa noite de 20 anos, em que o Brasil estaria impedido de promover qualquer tipo de elevação de despesas orçamentárias. E ainda com o detalhe da abordagem do conceito de “superávit primário”. Ou seja, as contas da dimensão financeira do gasto poderiam seguir crescendo livres, leves e soltas. O esforço fiscal deveria se resumir a cortes em saúde, assistência social, educação, previdência social, segurança pública, saneamento, investimentos, pessoal e similares. Já os gastos com juros da dívida pública, por exemplo, não tinham nenhum tipo de limite. Uma loucura criminosa!
Austeridade para todos, com exceção do financismo.
O quadro econômico mais recente escancara o equívoco na opção austericida. Com a queda nos índices de popularidade e as dificuldades em aprovar as pautas de Guedes no Congresso Nacional, Bolsonaro cometeu mais um estelionato eleitoral e jogou-se nos braços do Centrão. Fez campanha aberta pela vitória de Rodrigo Pacheco (PSD/MG) e Arthur Lira (PP/AL) para a presidência, respectivamente, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Além disso, para selar aliança definitiva com o fisiologismo, ele nomeou Ciro Nogueira (PP/PI) para o cargo mais importante do governo – Ministro da Casa Civil.
O apego de Guedes ao posto se escancarou de forma desavergonhada ao aceitar colocar sua assinatura nas gambiarras para furar o teto de gastos sem assumir a coragem de dizê-lo abertamente. A chamada PEC dos Precatórios faz exatamente isso, com o agravante de incorporar de forma explícita o não pagamento de direitos líquidos e certos, além de acomodar as dezenas de bilhões de reais no segredo das famigeradas Emendas do Relator. Tudo isso se combina de forma trágica à retomada da inflação e à subida da taxa de juros. Assim, não chega a ser uma surpresa que Bolsonaro venha encontrando dificuldades para melhorar os índices de (des)aprovação de seu governo e as intenções de voto em eventual busca pela reeleição em outubro do ano que vem.
As estatísticas oficiais das contas fiscais do governo podem ser encontradas nas páginas do Banco Central. Em geral, o boletim é divulgado nos últimos dias de cada mês. E a edição mais recente consolida os dados até o final de outubro. As informações revelam de forma nua e crua a opção pelo financismo. Como pode bem ser observado pelo gráfico abaixo, entre janeiro e outubro do presente ano, o governo dispendeu o equivalente a R$ 352 bilhões sob a forma de pagamento de juros da dívida pública. Ora, essa é a mesma contabilidade em que se baseia Guedes para nos informar sistematicamente que não pode cumprir os programas sociais de urgência e relevância, com o argumento mentiroso do “não temos recursos”. Além disso, esse valor é 23% maior do que o total dispendido a esse mesmo título em igual período de 2020 – R$ 286 bi.
A situação se torna ainda mais significativa se considerarmos apenas o período mais recente, quando as contas federais passaram a ser mais negativamente impactadas pela elevação da Selic. Lembremos que a taxa oficial de juros estava no patamar de 2% ainda no primeiro trimestre deste ano e subiu de forma sistemática a cada nova reunião do Copom – quase quatro vezes – até atingir os atuais 7,75%. Assim, caso comparemos apenas os valores das despesas com juros para os meses de julho a outubro entre os dois exercícios, percebermos que a diferença é ainda mais expressiva, sinalizando uma piora para os próximos dois meses. Em 2020 esse total foi de R$ 113 bi e subiu para R$ 207 bi em 2021, uma diferença de 83%.
Finalmente, vale comparar os valores presentes no Orçamento da União entre os mesmos anos para as despesas finalísticas, ou seja, aquelas destinadas a educação, saúde, previdência e demais rubricas não-financeiras. Nesse caso, o movimento observado é exatamente o oposto. Em 2020 esse total era de aproximadamente R$1,8 tri, enquanto no ano presente esse valor cai para pouco mais de R$ 1,4 tri. Isso significa uma queda de 15% na comparação de um ano para o outro.
Assim, o que se pode inferir é que o arrocho praticado pela política monetária se combina de forma perversa com o arrocho implementado por meio da política fiscal. Cada vez mais o orçamento público opera para transferir recursos da grande maioria da população para o topo de nossa pirâmide da desigualdade. Ao reduzir os valores a serem atribuídos a bens e serviços públicos ou investimentos governamentais e aumentar os recursos direcionados ao pagamento de juros da dívida pública, a execução do Orçamento da União escancara a tragédia da desigualdade socioeconômica e da fenomenal concentração de renda e patrimônio ainda existente em nosso País.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.