Andrés del Río
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 17/09/2018
A pós-verdade não é o mesmo que a mentira. A pós-verdade não se baseia em fatos, mas em emoções subjetivas que em geral estão assentadas em frustrações. Uma distorção da realidade. Assim, políticos que falem diretamente ao coração do eleitor, hoje em dia, mesmo na era da informação, mobilizam grandes quantidades de pessoas. Não é preciso dados nem argumentos rebuscados. Frustração, mídia inflamada e dizer o que o outro quer ouvir, culpando alguém, é a receita do sucesso nesta era.
Mauricio Macri é um produto da era da pós-verdade, como Trump. No último debate presidencial televisado em 2015, os dois candidatos à presidência, Mauricio Macri e Daniel Scioli, falaram de tudo. Para contextualizar, existia uma grande frustração de setores reacionários, das classes médias-altas, que enxergavam o kirchnerismo como um produto grotesco de uma classe que só sabia roubar e dar dinheiro aos menos favorecidos. Um nítido ódio de classe. Macri, assessorado por consultores que sabiam do processo contemporâneo, orientou com a pós-verdade. Além, claro, da mentira descarada. Maurício foi direto ao multiplicar esse sentimento de frustração, enaltecido pela mídia hegemônica local e internacional.
Vou deixar desde do início uma coisa clara: o kirchnerismo nunca saiu do capitalismo nem pretendeu fazer isso. Nos seus governos, existiram políticas inclusivas, acertos e erros. Mas tornar o kirchnerismo um movimento político de extrema esquerda é não compreender o processo. Macri, como em outros países, coloriu o kirchnerismo como se fosse um processo semelhante ao da Venezuela de Chaves. Algo sem sentido, mas que maximizou um medo regional.
Macri no debate negou tudo, o passado, o presente e o futuro. Mentira e pós-verdade no liquidificador. Hoje está caindo a máscara. Um governo de improvisados, onde a maior receita parece ser uma história pessoal. Como filho de pai milionário, Macri acha que a Argentina é ele na adolescência. Quando fica sem dinheiro pede para o pai, negando assim os motivos que o levaram a ficar sem dinheiro. Como na sua vida ele não compreende o público. Ele foi educado no sistema privado, sem consciência política nem cidadania, como ensinava Paulo Freire. Existem seus colegas, de classe. É só olhar os dirigentes por ele indicados, CEOs de empresas, colegas de classe. E seu governo é uma representação de uma trajetória pessoal: negar a realidade, pensar que tudo foi mérito pessoal, e não compreender a lutas históricas sociais. Nada disso foi parte de sua trajetória. O mais perto que esteve do popular foi sua jogada estratégica ao ser presidente de Boca Juniors. Mas, claro, sempre do seu camarote. Popular sim, mas de longe.
Assim, com a frustração de setores da população inflamados pela mídia nacional, Macri alcançou o poder executivo nacional. Na sua posse, na varanda da Casa Rosada, onde estiveram figuras históricas da Argentina, ele saiu a saudar a população dançando. Sem compreender o simbolismo da situação, como hoje. Ele achou que alcançou a presidência de alguma empresa multinacional, e, como em festa da empresa, dançou triturando a história.
Hoje a Casa Rosada está cheia de barras de proteção. Nada mais simbólico: da mesma forma que num condomínio de classe alta na província de Buenos Aires, a Rosada se tornou num espaço para poucos.
No início do 2018 um dólar custava 16 pesos argentinos. Em agosto, um dólar alcançou a bizarra cifra de 40 pesos, e os juros dispararam a 60%, único caso no mundo. Um tsunami contra os salários e uma multiplicação da inflação. Essa trágica desvalorização existiu mesmo com um acordo anterior feito com FMI. Uns meses antes, o Fundo Monetário Internacional veio em socorro da Argentina. A diretoria do órgão, com o apoio de Christine Lagarde, aprovou um empréstimo de 50 bilhões de dólares, equivalente a quase 10% do PIB da Argentina, para sustentar a economia do país.
Nunca na história do FMI se emprestou tanto a um país. Mas esse gesto não foi de graça. A enorme desvalorização, a inflação descontrolada e o empréstimo do FMI fizeram com que os argentinos lembrassem da quebra do 2001. Nestes dias, existiram uma onda de saques em supermercados pela fome extensiva[1]. Uma triste imagem já vivida. Em palavras inocentes, o ministro de Economia declarou: “O Fundo de hoje é muito diferente daquele que encontramos há 20 anos. Ele aprendeu as lições do passado e, repito, apoiou o programa gradual”[2].
De forma contrária se posicionou o Prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz. Ele salientou que as políticas de Macri levaram a “uma situação extrema” e que o ajuste proposto pelo governo “desacelerará a economia” e afetará fortemente a população[3]. A perseverança no erro, como indicava Jorge Luis Borges.
Assim, não foi o dólar que alcançou as nuvens. Foi uma ideia da política, uma visão do mundo se consolidou na sociedade argentina de forma nítida. Um governo que como política econômica tem simplesmente um jogo financeiro para uns poucos. Existe um sujeito e não uma comunidade. Existe o mérito mesmo numa sociedade que se torna dia a dia mais desigual e pobre. Segundo uma pesquisa recente, uma de cada duas crianças na Argentina é pobre[4]. O desemprego e a precarização laboral se combatem com um empreendedorismo neoliberal ilusório e sem direitos. A desproteção absoluta na desigualdade e miséria. Uma tradição da oligarquia argentina.
Macri acredita que a solução da argentina é ter o coringa do baralho. Sempre é de fora, de privilégio. Assim, ante uma Argentina que não decola, pede dinheiro fora, sem pensar nas consequências, endividando gerações futuras. Foram pedidos 50 Bilhões de dólares ao FMI. Para ter perspectiva, as reservas do Banco Central Argentino são semelhantes ao empréstimo do FMI, e o máximo histórico que emprestou o FMI foram 13 bilhões. Mesmo assim a confiança não pousou na Argentina.
Uma sociedade não é nem uma empresa nem um condomínio. Mas o presidente atual pensa e respira irrealidade e negligência. Mas não só ele. Uma das principais personalidades do governo, a deputada nacional Lilita Carrió, declarou oportunamente: “Eu me divirto porque as crises me geram adrenalina”[5]. Assim, o outro não importa. Na mesma linha, a Catedral de Buenos Aires, preocupada sempre com os pobres e com os ricos, não necessariamente nessa ordem, fez um chamado importante à sociedade: “rezar três dias seguidos para superar a crise”[6]. Assim, o neoliberalismo de autoajuda do macrismo nos empurra em direção ao abismo, violência e desigualdade.
Argentina não está só numa crise econômica. Argentina está experimentando o resultado de um governo que compreende a política como um condomínio, de visão pequena e classista. O problema do governo de Macri não é só econômico, mas principalmente político. Dos sentidos da política, dos alcances da transformação que a política pode gerar numa sociedade. Não existe política econômica, mas política de contingência.
Em 2015, no debate dos candidatos a presidente, o discurso Daniel Scioli foi claro: “Por trás do câmbio há uma grande mentira. A palavra câmbio pode para excitar, para motivar, mas quando o véu da mudança é removido, isso aparece: o livre mercado, ajuste, desvalorização, endividamento”[7]. Nada mais acertado.
Ninguém escutou, nem quis escutar. O sentimento de frustração foi maior que a razão. Hoje a Argentina está no precipício da explosão social. A incógnita é se continua este neoliberalismo retrógrado e insustentável de condomínio, e passamos a um neoliberalismo autoritário, ou a sociedade vai para as ruas estabelecer novamente o rumo do país. E pareceria que a crise da argentina é um anúncio do horizonte de muitos países da região.
Andrés del Río é Doutor em Ciências Políticas IESP-UER e professor adjunto de direitos humanos na UFF.