Falta de acesso à justiça segue sendo um entrave para o bem-estar da população rural no Brasil.
Edevaldo de Medeiros
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 30/04/2022
O escritor Lima Barreto, cuja morte completa cem anos neste ano, interessou-se, em sua singular literatura, habilidosa e sensível, pelos temas do Brasil; seu governo, sua cultura e sua gente foram objeto de tratamento ímpar por parte do escritor. Acabou, assim, por fazer um registro histórico do Brasil do final do século XIX e do início do século XX.
Lima Barreto tratou em sua obra de um Brasil marcadamente rural, iniciando sua travessia para um país urbano, do fim do Império ao início da República.
O romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, na sua segunda parte, é dedicado a falar sobre o campo, o camponês e o desafio que é tirar o sustento da lavoura. Problemas que persistem até os nossos dias.
A crítica que a obra faz ao “ditador”, como Lima se refere a Floriano Peixoto, é também muito atual. Em uma reflexão atribuída a Policarpo, quando estava preso e perto do seu triste fim, o autor diz o seguinte:
“Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?”
Gostaria de seguir falando da literatura de Lima Barreto, que prometo retomar noutro momento, porque o ponto que necessito tratar agora é o bem estar da população rural de hoje.
Se Floriano não tratava bem da população rural de seu tempo, qual é a condição que ela tem hoje?
Tomos e mais tomos de livros poderiam ser escritos a respeito: agronegócio, reforma agrária, escravização, violência no campo etc.
Por ora, fico apenas com o direito ao acesso à justiça, que é de tudo isso o que um pouco eu entendo.
Há diversos tratados internacionais que tratam do tema do acesso à justiça, acesso que deve, a toda evidência, ser igual para trabalhadores urbanos e rurais, por força também de mandamento constitucional.
O observador mais ou menos atento, contudo, já intuiu, há muito, que embora alguns trabalhadores urbanos precisem recorrer ao judiciário para obter aposentadoria ou pensão, para o trabalhador rural essa é quase a regra.
É que o trabalhador urbano tem sua atividade quase que totalmente documentada e o rural não.
Decorre daí uma série de desvantagens para o trabalhador rural não empregado, isto é, aquele que trabalha em regime de economia familiar ou como boia fria, como a demora para obtenção dos benefícios, contratação e pagamento de honorários advocatícios, audiência etc.
No que diz respeito ao acesso à justiça, além de ter documentado seu histórico profissional e quase sempre obter aposentadoria e pensão diretamente da Autarquia Previdenciária, quando precisa recorrer à justiça, os trabalhadores urbanos das grandes cidades têm à sua disposição a Justiça Federal.
O trabalhador rural nem sempre tem a Justiça Federal perto de si, razão pela qual a Lei nº 5.010/66 permitiu, até 2019, isto é, por mais de 50 anos, que os moradores de cidades que não fossem sede de Justiça Federal, urbanos ou rurais, pudessem ajuizar suas causas na Justiça Estadual.
Essa regra era, manifestamente, uma regra de acesso à justiça, facilitadora do exercício dos direitos previdenciários pelos moradores de cidades menores.
A Lei referida se antecipou e esteve em consonância com a Declaração dos Direitos das Campesinas, Campesinos e outras pessoas que trabalham em zonas rurais, aprovada pela Resolução 73/165, da Assembleia Geral da ONU de dezembro de 2018, que prevê, em seu artigo 12 o direito ao acesso igualitário à justiça:
Art. 12. Os campesinos e outras pessoas que trabalham em zonas rurais têm direito de acesso de maneira efetiva e não discriminatória à justiça, em particular a procedimentos imparciais de solução de controvérsias e a medidas de reparação efetivas pelas vulnerabilidades de seus direitos humanos. Ao adotar-se as decisões correspondentes se tomarão devidamente em consideração seus costumes, tradições, normas e sistemas jurídicos, de conformidade com as obrigações pertinentes em virtude do direito internacional dos direitos humanos.
Surpreendentemente, contudo, foi que, no final de 2019, a Lei nº 13.876/2019, em artigo 3º, na contramão da evolução legislativa e em total desrespeito com o princípio de acesso à justiça, alterou profundamente a Lei nº 5.010/66, retirando quase toda a competência da Justiça Estadual para julgamento das demandas que, em sua maioria, dizem respeito às populações rurais.
Com essa alteração, a partir de 2020 todas as ações de cidades que fiquem até 70km de distância da sede da Justiça Federal não puderam mais ser ajuizadas na cidade em que a pessoa mora, mas somente na Justiça Federal.
Com isso, há locais em que o número de habitantes atendidos pela Justiça Federal mais do que dobrou, sem quem uma única vara nova fosse criada ou contratados juízes e servidores para o atendimento da nova demanda.
Evidentemente que esse assoberbamento implicou em maior morosidade dos processos, em prejuízo dessas populações, em sua maioria, rurais.
A saída para o problema, por ora, já que não está prevista expansão para a Justiça Federal, seria a revogação do artigo 3º da Lei nº 13.876/2019, por violação do direito ao acesso à justiça, sacramentado pelo artigo 12 da Declaração dos Direitos das Campesinas, Campesinos e outras pessoas que trabalham em zonas rurais.
Passo importante nesse sentido foi dado com o PL 3.051/2021, de autoria do Deputado Federal Vicentinho, prevendo que “quando a comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça estadual as causas em que forem partes a Previdência Social e o segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária.”.
O PL tramita pela Câmara dos Deputados e está em fase de “apreciação conclusiva pelas comissões”.
Urge, pois, corrigir o retrocesso, restabelecendo o progresso obtido na segunda metade do século passado, para que os literatos não registrem nossa geração como Lima Barreto fez passar para a história “o ditador”.
Edevaldo de Medeiros é juiz federal e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).