Lawfare contra o Direito do Trabalho

Necessitamos, na atual quadra, enfrentar a metodologia judicial tendente a liquidar o Direito do Trabalho.

Grijalbo Fernandes Coutinho

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 03/12/2020

Depois da leitura dos ensaios publicados na série “Trabalho Além da Barbárie”  com assento semanal no irrequieto eletrônico Justificando, fiquei a refletir sobre qual seria a novidade a ser apresentada, considerando o fato de ter a vanguarda juslaboralista descortinado os movimentos empreendidos pelo capital para solapar as diminutas mas relevantes conquistas sociais alcançadas pela classe trabalhadora, no plano jurídico-normativo sob o espectro da democracia formal burguesa.

Tentarei contribuir com o debate revelando que na cotidiana luta de vida e morte do Direito do Trabalho, cumprindo o seu papel histórico classista, o Judiciário agarra-se sem cerimônias à morte do juslaboralismo em nome da condensação dos interesses materiais da burguesia[1]. 

E assim me conduzirei sob a perspectiva da existência de uma guerra jurídica no Brasil contra o Direito Constitucional do Trabalho, lente crítica objeto de pesquisa minha em curso perante à Faculdade de Direito da UFMG. 

Não é novidade que o Judiciário, como regra geral do modo peculiar de atuação nos momentos de embates econômico-políticos mais significativos entre o capital e o trabalho, assume inegável protagonismo no desmantelamento impiedoso da essência de normas trabalhistas aptas a impedir mortes e mutilações obreiras.

Isso acontece desde a atuação dos juízes de paz ingleses, no  auge da II Revolução Industrial, até chegar aos dias atuais no Brasil de lawfare contra o Direito do Trabalho.

Aliás, aqui, diga-se de passagem, o Judiciário sempre teve enorme dificuldades para fazer cumprir garantias e direitos assegurados aos segmentos mais frágeis, diante do contínuo esvaziamento interpretativo das normas jurídicas.

A teoria crítica da história sociológica chega a descrever o direito oficial, quase sempre boicotado, e o direito não-oficial, o direito das elites respeitado pelos órgãos da Justiça, a exemplo da manutenção do tráfico negreiro durante décadas, no século XIX, após a sua proibição legal, bem como a tortura, o açoite e outras formas de violência praticadas contra seres humanos, por via de regra, contando com o mais absoluto silêncio quando não o respaldo da Justiça[2]. 

Não se ignora o fato de que Justiça Política e Lawfare estejam associados originariamente ao uso de procedimentos legais para fins políticos, na aplicação desvirtuada ou manipulada do direito e do processo penal[3].

A justiça política é configurada a partir de uma série de procedimentos judiciais supostamente amparados no ordenamento jurídico para, ao fim e ao cabo, derrotar os inimigos incômodos do sistema ou de governos, com a violação de direitos e garantias fundamentais. 

Essa compreensão lato sensu mostra-se apropriada para apontar peculiar forma de justiça política assim caracterizada por intermédio de sucessivos e sincronizados atos de qualquer Suprema Corte voltados para, no exercício judicante da interpretação constitucional e em atendimento aos anseios burgueses, inverter, de maneira sistemática e organizada[4], a aplicação do Direito do Trabalho.

Nesse sentido, é razoável cogitar que todo e  qualquer movimento jurisprudencial tendente a inverter o juslaboralismo para, na prática, negá-lo vigência, fundado em iguais ou semelhantes premissas materiais e procedimentais àquelas adotadas no âmbito penal configuradoras do Lawfare, traz ao cenário brasileiro a justiça política do capital contra o trabalho e o Direito do Trabalho. 

Lembremos que o STF, entre 2007 e 2020, proferiu mais de três dezenas  de decisões aniquiladoras dos fundamentos do Direito do Trabalho, revisando substancialmente a sua jurisprudência moderada construída após a vigência da Constituição(1988 a 2006).

Entre tantas outras sentenças demolidoras de direitos do trabalho, o Tribunal de maior expressão no Brasil emitiu os seguintes pronunciamentos, entre 2007 e 2020: 1)autorizou a terceirização generalizada; 2)respaldou a prevalência do negociado sobre o legislado para liquidar direitos obreiros; 3)suspendeu o texto constitucional em tempos de pandemia do coronavírus para admitir a renúncia de direitos pelos empregados, sem nenhuma assistência sindical, incluindo a redução salarial e a suspensão do contrato de trabalho; 4)autorizou a jornada extravagante de 12 horas por dia; 5) liquidou praticamente todas as fontes de sustentação material dos entes sindicais obreiros; 6)limitou o alcance da substituição processual pelos sindicatos; 7)mitigou os direitos dos empregados e ex-empregados das empresas em regime de recuperação judicial ou falência; 8)reduziu parte substancial da expressão monetária do adicional de insalubridade; 9)interferiu decisivamente, durante vários anos, em política governamental de combate ao trabalho escravo, em atendimento à  pretensão de entidade empresarial, quanto à ausência de formação e  divulgação da “lista suja”; 10) exaltou a terceirização na atividade fim como mecanismo de redução dos custos com o trabalho, inviabilizando inclusive qualquer isonomia entre empregados de atribuições iguais; 11)suprimiu em até 25 anos o direito obreiro ao FGTS não recolhido pelas empresas; 12)podou praticamente o exercício do direito fundamental de greve por servidores públicos; 13)criou a jurisprudência dos direitos fundamentais do capital contra os direitos laborais que “atrapalham o desenvolvimento do país”, com o expresso reconhecimento do mecanismo da terceirização generalizada como direito fundamental constitucional da burguesia, sendo a ADPF instrumento constitucional de natureza processual adequado para se voltar contra decisões limitadoras da terceirização, assim como a ADPF serve para proteger o direito de empresas estatais contra os seus empregados, quanto ao pagamento das dívidas trabalhistas por precatório, além de admitir a ADPF patronal para discutir a política governamental de combate ao trabalho escravo; 14)fez do julgamento da via estreita processual de embargos declaratórios a porta aberta para a terceirização generalizada e para reduzir as garantias de empregados públicos contra as dispensas imotivadas; 15) consagrou a espoliação da competência da Justiça do Trabalho como fator consequencialista de inefetividade dos fundamentos do juslaboralismo; 16) anunciou que deve transformar em pó os créditos trabalhistas objeto de debate judicial, com o fim dos juros de mora, embora esta última matéria sequer integre o objeto de julgamento no âmbito das ações respectivas, bem como apontou para a consagração da redução  drástica da correção monetária; 17) indicou o extermínio da ultratividade das normas coletivas e 18) e apontou que  seguirá adiante em sua contrarreforma trabalhista, quando examinará outras ações judiciais em curso capazes de exponenciar o grau de extermínio do direito do trabalho e de seu processo, incluindo a negação de acesso à Justiça do Trabalho pela classe trabalhadora e o aval ao selvagem contrato intermitente. 

Tais decisões judiciais, se não bastasse o caráter destrutivo do Direito do Trabalho contido em cada pronunciamento, influenciaram na ação do Executivo e do  Legislativo para aprofundar os níveis de desregulação das relações de trabalho, a partir das Leis13.429/2017,13.467/2017,13.874/2019 14.020/2020 e de medidas provisórias. 

Essa guerra jurídica contra o Direito do Trabalho, aprofundada entre 2016 e 2020, contudo, viola a Constituição da República  e toda a ordem jurídica. 

Sob o olhar crítico dos Direitos Humanos, referidas decisões judiciais realizam o distrato do pacto celebrado no processo constituinte de 1986-1988 quanto aos direitos  do trabalho e aos seus princípios, sem a existência de quadro jurídico apto a autorizar a inegável façanha. 

Não se sugere que seja algo completamente inesperado ver o Judiciário flexibilizar conquistas civilizatórias da classe trabalhadora, salvo se acreditássemos no idealismo da teoria do “direito a ter direitos” como fato consumado do processo de acúmulo jurídico.

Ao contrário, os direitos do trabalho como direitos humanos de caráter econômico, social e cultural, inegavelmente, são construídos, mantidos, destruídos ou ampliados como produtos culturais resultantes de lutas políticas classistas[5].

Para além da revelação dos sintomas de uma grave crise de deficit da democracia constitucional, a jurisprudência do STF em matéria trabalhista expõe a necessidade de recorrer urgentemente à Constituição para corrigir os equívocos, quanto à interpretação de seu texto e, por conseguinte, dar máxima efetividade aos direitos fundamentais da classe trabalhadora contra o ideário neoliberal.

Sabemos como se desenvolvem as lutas permanentes entre o capital e o trabalho, no histórico confronto entre maximização de lucros e dignidade laboral. Necessitamos, na atual quadra, enfrentar a metodologia judicial tendente a liquidar o Direito do Trabalho, a guerra jurídica estruturada para o retorno das relações de trabalho no Brasil ao século XIX, agora se processando sob roupagem social adequada ao desenvolvimento das forças produtivas desses tempos de capitalismo guiado pela financeirização, pela robótica e pelo insaciável apetite por acumulação de riquezas.

Notas

[1] MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

[2]COMPARATO, F. K. O Poder Judiciário no Brasil. 16 jun. 2015. Disponível em: https://reformapolitica.org.br/2015/06/19/o-poder-judiciario-no-brasil-por-fabio-konder-comparato/. Acesso em: 4 dez. 2020.

[3] KIRCHHEIMER, Otto. Empleo del procedimento legal para fines políticos. Granada: Comares, S.L, 2001.

[4] BERCOVICCI, G.; MASSONETTO; L.F. A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica. Coimbra: Separata do Boletim de CE da Univ. Coimbra, 2006.

[5]HERRERA FLORES, J. El processo cultural – materiales para la criatividad humana -. Sevilla: Aconcagua Libros, 2005.

Grijalbo Fernandes Coutinho é desembargador do trabalho do TRT 10(DF e TO), membro da AJD.

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