Devido à vitória do projeto rentista ao qual a elite econômica aderiu majoritariamente, os direitos sociais e do trabalho correm perigo.
Rubens Goyatá Campante
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 16/05/2016
A Justiça do Trabalho completou 75 anos, no último dia 01 de maio, em meio a uma das piores agruras de sua história. O orçamento federal de 2016 cortou verbas do Senado, da Câmara Federal, do TCU, do Judiciário Federal, etc. Mas o corte na Justiça do Trabalho foi o mais profundo: redução de 29% das dotações de custeio e 90% das de investimento – nos outros ramos do Judiciário Federal (Justiça Federal, Eleitoral, Ministério Público) a redução foi de 15% no custeio e 40% no investimento.
Os efeitos logo se fizeram sentir. Somente no Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais foram dispensados centenas de trabalhadores terceirizados, entre motoristas, faxineiros, copeiros e seguranças, além de estagiários e dos deficientes auditivos que prestavam serviços para o TRT/MG por meio de parceria com a FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos). O público também foi atingido: para diminuir a conta de energia elétrica o TRT mineiro encerrará seu expediente às 16 horas, a partir do dia 16 de maio. Isto num momento em que, devido à explosão do desemprego e da crise econômica o número de demandas trabalhistas já cresceu, neste ano, 50% em relação ao ano passado, segundo o presidente do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra Martins Filho. Se não houver uma reversão,, ao menos parcial, dos cortes, “fecharemos as portas a partir de agosto”, afirma ele.
A quem interessaria a Justiça do Trabalho fechar suas portas? Qual a justificativa para que esta tenha sofrido restrições mais severas? O relatório do Orçamento da União afirma que as regras trabalhistas atuais estimulam a judicialização dos conflitos, na medida em que seriam extremamente condescendentes com o trabalhador, e sublinha a necessidade de diminuir a demanda de litígios trabalhistas, afirmando que o cancelamento das dotações seria uma “forma de estimular uma reflexão sobre a necessidade e urgência de tais mudanças”.
Mas as regras trabalhistas, quem as faz é o Legislativo, não o Judiciário Trabalhista, e o aumento de demandas laborais tem causas econômicas e sociais muito mais complexas que uma suposta atuação estatal “protecionista”. Asfixiar financeiramente a Justiça do Trabalho para que ela abandone tal “protecionismo” é uma grosseira e escandalosa chantagem institucional, afirmou a Associação Nacional de Magistrados Trabalhistas (ANAMATRA), que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra os cortes orçamentários.
Essa chantagem institucional não é acidental ou conjuntural. Faz parte de um movimento maior, que põe a Justiça do Trabalho na mira, mas cujo verdadeiro alvo são os direitos sociais e do trabalho. As propostas de expandir ao máximo as possibilidades legais da terceirização e de fazer prevalecer o negociado sobre o legislado são algumas das expressões principais deste alvo. A terceirização é, sabidamente, vetor de precarização do trabalho, e a negociação entre empregador e empregado é importante, mas a partir de um patamar legal mínimo, sem o qual, especialmente em situações de crise econômica e desemprego, a parte mais fraca, os trabalhadores, tende a abrir mão de garantias básicas de dignidade pessoal.
Perigam os direitos sociais e do trabalho devido à vitória do projeto rentista ao qual a elite econômica aderiu majoritariamente, derrotando o projeto desenvolvimentista-produtivista ensaiado pelo primeiro governo de Dilma Rousseff.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi marcado pelas políticas sociais que, indubitavelmente, melhoraram a vida dos brasileiros carentes, mas também pela tendência pragmática à conciliação com várias estruturas de poder construídas ao longo da história brasileira – de fundamental importância, dentre outras, o funcionamento viciado do sistema político-eleitoral e o predomínio do setor financeiro sobre a economia produtiva.
Dilma Rousseff, no início de seu primeiro mandato, teve a audácia de tentar desafiar esta última estrutura, propondo um pacto produtivista e desenvolvimentista que contou, em seu início, com o apoio, ao menos formal, de representações patronais e obreiras. A ideia era estimular a reindustrialização do país, o crescimento da economia, do mercado interno e da geração de empregos através de várias iniciativas: apoio a empresas nacionais por via de empréstimos generosos do BNDES; desonerações fiscais; barateamento da energia elétrica e investimento em infra-estrutura; desvalorização da moeda e proteção ao produto nacional. Tal agenda implicava “domesticar” o rentismo exacerbado, por meio de medidas fundamentais, que diminuiriam os lucros absurdos do sistema financeiro: redução dos juros e do spread bancário e controle de capitais.
Não deu certo. O empresariado industrial, parte fundamental desse pacto neodesenvolvimentista, abandonou o barco. Porque o fez, já que seria (e foi, durante certo tempo) beneficiado pelo projeto, é pergunta obrigatória, mas não cabe desenvolvê-la aqui. O fato é que, em uma economia oligopolizada, os preços começaram a subir e, como “remédio” para o repique da inflação, os juros também – abalando irremediavelmente um fundamento basilar da empreitada. Isso ocorreu em 2013, mesmo ano em que as gigantescas e amorfas manifestações de protesto, com sua aversão generalizada à política e às instituições, e sua instrumentalização anti-governamental pela grande mídia, ajudaram a minar o apoio à Presidente.
Duas conseqüências da vitória do pacto rentista/financeiro: 1) o governo Dilma ficou desnorteado. Perdeu seu grande projeto e não tinha um “plano B”. E nem considerou apoiar-se nos trabalhadores, nos movimentos sociais, na militância de seu partido, nos aliados e correligionários do Congresso, na sociedade civil. Desde então, é um governo sem consistência ou coerência. 2) no mesmo momento em que essa vitória se desenhou, em meados de 2013, a pauta da precarização dos direitos trabalhistas foi recolocada. Em 2013, quando da campanha pela aprovação do PL 4330, que escancarava a terceirização, um ministro do Tribunal Superior do Trabalho dizia não entender o porquê dessa demanda empresarial, já que a economia não estava em crise e que as perspectivas de um desenvolvimento econômico inclusivo eram plausíveis. Não eram. Ao abraçarem a proposta da terceirização, os líderes empresariais já sabiam que, boicotado o produtivismo, a perspectiva era a do “desenvolvimento” dependente-associado, sob o abrigo da ordem rentista internacional, na qual o setor produtivo e nacional da economia brasileira entram como “sócios menores” no esquema global, e por isso só se viabilizam pela exploração feroz, desenfreada, dos recursos humanos e naturais do país.
Raymond Aron dizia que as opções políticas não se davam entre o Bem ou o Mal absolutos, mas entre o preferível e o detestável. Para 99% dos brasileiros, é preferível a escolha pela economia real, da produção e do comércio, potencialmente inclusiva. E detestável a opção pela economia predatória da especulação financeira.
Mesmo preferível, o neodesenvolvimentismo tem, contudo, um problema – comum, aliás, à opção rentista/financeira -, o economicismo. Como predomínio da esfera econômica sobre a política, a sociedade e a cultura, o economicismo, conquanto reconheça, eventualmente, a importância da pauta dos direitos sociais e da dignidade humana, condiciona e hipoteca essa pauta inclusiva a uma expansão prévia da disponibilidade de bens e serviços numa sociedade. Distribuir, sim, mas imprescindível, antes, expandir e organizar.
Mas não seria certo que, antes de distribuir, organize-se o que distribuir ?A questão é que essa distribuição não é só de riqueza, mas de direitos, tem a ver com o fim de barreiras de privilégios, não só materiais, mas simbólicos e culturais. Expandir a economia e a riqueza é fundamental, mas expandir a cidadania é tanto quanto, e uma expansão não pode ser anterior e condicionadora da outra. A Europa Ocidental construiu seus estados de bem estar social quando se encontrava em situação de penúria econômica extrema, no pós-guerra. Cuidou disso ao mesmo tempo em que cuidava de se recuperar economicamente. E o estabelecimento de parâmetros sociais inegociáveis, abaixo dos quais a dignidade humana e a cidadania são impossíveis, não impede o desenvolvimento econômico mas faz com que ele se paute pela produtividade e capacidade de inovação, e não pela espoliação bruta e tosca do trabalho e da natureza.
Tem exatamente a ver com isso a Justiça e os direitos do trabalho. Sua presença e sua eficácia (que não é plena, mas também não é nula, e pode aumentar) estabelecem tais parâmetros mínimos de dignidade humana e cidadania. Parâmetros que não são, absolutamente, contra o capital e a economia, mas uma barreira ao economicismo, o que é diferente. São uma barreira à exploração desumana do trabalho, corolário, particularmente no Brasil, da hegemonia do sistema rentista/financeiro e do neoliberalismo.
Por isso estão na mira.
Rubens Goyatá Campante é doutor em Sociologia Política, membro do CERBRAS (Centro de Estudos Republicanos Brasileiros), do PRUNART/UFMG (Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho) e pesquisador da Escola Judicial do TRT-3ª Região.