Jornada de trabalho  no Brasil e na França: uma análise comparativa

Lucas Reis da Silva

Resumo: Este artigo compara a regulamentação da jornada de trabalho  vigente no Brasil e na França, destacando as raízes históricas, os principais dispositivos legais relacionados à duração do trabalho, o tratamento e  o limite das horas extras, do adicional noturno, os intervalos intrajornada  e interjornada e o repouso semanal remunerado em ambos os países. A  análise considera os impactos das reformas neoliberais recentes na duração  do trabalho, tanto na França quanto no Brasil e evidencia as diferenças e  semelhanças entre os dois sistemas, contextualizando-os no cenário político  e social de cada um deles.

A partir dos anos de 1980, a ascensão do neoliberalismo global exerceu  forte pressão sobre os modelos tradicionais de regulação do trabalho em diversos países, inclusive no Brasil e na França. A retórica neoliberal priorizou  a flexibilização das relações laborais, a redução dos custos para o capital e a  suposta modernização dos mercados de trabalho, colocando em xeque direitos historicamente conquistados, incluindo os limites à jornada de trabalho.  A lógica da reestruturação produtiva sob o neoliberalismo tornou-se sinônimo  de flexibilização, intensificação do trabalho e desregulamentação dos direitos  (Antunes, 2018). O tempo de trabalho passou a ser estendido ou fracionado com a finalidade de atender as necessidades empresariais, enquanto os  direitos conquistados ao longo de décadas de lutas coletivas passaram a ser  relativizados, quando não pura e simplesmente eliminados.
 

No Brasil, o neoliberalismo encontrou terreno fértil para promover reformas que ampliaram a possibilidade de negociações individuais e coletivas  mais flexíveis. O “negociado sobre o legislado”, previsto no artigo 611-A da  CLT, permite que certos direitos trabalhistas possam ser modificados por negociação coletiva, mesmo que em sentido menos favorável ao trabalhador.  O avanço do neoliberalismo, com a justificativa de buscar reduzir encargos  trabalhistas, acaba por provocar impactos diretos sobre a regulamentação da  duração do trabalho. A Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) introduziu diversas mudanças que impactaram negativamente a jornada dos trabalhadores brasileiros (Maior, 2017). Abriu-se a possibilidade de se instituir  banco de horas semestral por meio de acordo individual, sem a necessidade  de negociação coletiva, o que permitiu com que empregadores passassem a  ajustar as jornadas de trabalho conforme suas conveniências, aumentando a  carga horária sem compensações adequadas, do ponto de vista das necessidades dos empregados. O banco de horas expõe os trabalhadores a períodos  prolongados com jornadas superiores às normalmente aceitas, o que representa intensificação do trabalho, tanto no banco de horas semanal quanto no  banco de horas mensal.  

Por meio de negociação coletiva, a reforma trabalhista passou a prever  a possibilidade de redução do intervalo intrajornada. A diminuição do tempo mínimo de intervalo para descanso e alimentação compromete a saúde  e o bem-estar dos trabalhadores, ao provocar a intensificação do ritmo de  trabalho. Com menos tempo para repouso, alimentação ou recuperação, o  organismo tem menor oportunidade de se recompor, o que pode aumentar  a fadiga, o estresse e o desgaste físico. A redução do intervalo intrajornada  potencializa ainda mais a ocorrência de acidentes laborais e de doenças relacionadas ao trabalho (Silva, 2013). A possibilidade de contratação de empregados por meio de contrato de trabalho intermitente introduz uma forma de  vínculo empregatício em que o trabalhador é convocado conforme a demanda  do empregador, resultando em jornadas irregulares e instabilidade financeira  para o empregado. 

A referida lei acabou com o direito ao pagamento de horas in itineri,  aquelas que se referiam- ao tempo gasto pelo trabalhador no deslocamento  entre sua residência e o local de trabalho, especialmente quando este fosse  de difícil acesso ou não servido por transporte público regular. Nessas situações, se o empregador fornecesse transporte, esse período era considerado  parte da jornada de trabalho, conforme estabelecido pela Súmula 90 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Com a entrada em vigor da Reforma Trabalhista em 11 de novembro de 2017, o § 2º do artigo 58 da Consolidação  das Leis do Trabalho (CLT) foi alterado para excluir expressamente o tempo  de deslocamento da jornada de trabalho. 

Ao lado da Lei 13.467/2019, a Lei 13.429/2017, ampliou a possibilidade  de terceirização da força de trabalho. A permissão para terceirizar atividades- -fim da empresa contribui para a precarização das condições de trabalho e  criou obstáculos para o controle efetivo das jornadas laborais. 

Já na França, embora a tradição do Estado de bem-estar social e a força dos sindicatos tenham oferecido maior resistência à desregulamentação  trabalhista, houve avanços graduais no sentido da flexibilização, especialmente a partir dos anos 2000, por meio de acordos setoriais e empresariais  que permitiram maior variação na duração da jornada, além de debates  constantes sobre a “competitividade das empresas” e o “equilíbrio entre  proteção social e dinamismo econômico”. A Lei El Khomri, de 2016, e as  Ordonnances Macron, de 2017, são os exemplos mais importantes dessas  reformas que provocaram flexibilização, desregulamentação e descentralização das normas protetivas trabalhistas na França (Supiot e Le Texier,  2018), com impactos diretos sobre a jornada de trabalho. A primazia do  acordo coletivo em matéria de duração do trabalho representa uma inversão  da hierarquia das normas de proteção social.

 

 

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Lucas Reis da Silva é doutor em Direito pela Escola de Direito da Sorbonne – Université Paris 1 Panthéon  Sorbonne e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Direito pela  Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharel em Direito e em História pela  Universidade Federal de Ouro Preto. Professor de Direito do Trabalho do UNICESUSC  – Centro Universitário de Santa Catarina. Auditor-Fiscal do Trabalho do Ministério do  Trabalho e Emprego.


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