O “mercado” aproveitou o fantasma da inflação para pressionar pelo aumento da taxa de juros e reforçar o coro pela continuidade do regime de austeridade fiscal.
Plínio de Arruda Sampaio Jr.
Fonte: A terra é redonda
Data original da publicação: 26/09/2021
Longe de representar qualquer preocupação efetiva com a situação econômica da classe trabalhadora, a histeria da burguesia em relação a uma suposta ameaça de descontrole inflacionário é hipócrita, mal-intencionada e totalmente descabida. Trata-se de uma iniciativa político-ideológica para manipular o debate público. O objetivo imediato é bloquear qualquer discussão objetiva sobre as verdadeiras causas da inflação e sobre as prioridades que devem reger a política econômica nas eleições de 2022.
Enquanto a elevação de preços ficou restrita às mercadorias que compõem o custo de vida, comprometendo seriamente o poder de compra das famílias, os sacerdotes da estabilidade monetária permaneceram quietos, mesmo com uma média da variação dos preços da cesta básica em doze meses sistematicamente acima do patamar de 20% desde setembro de 2020, nas principais capitais do país. No entanto, bastou a expectativa de que o IPCA – indicador estratégico de reajuste do valor da riqueza financeira – passasse do patamar de 4% para o de 8% em 2021, para que houvesse uma gritaria generalizada em defesa deum maior rigor na política monetária e fiscal.
O aumento do nível geral de preços em curso é um fenômeno temporário e não um processo de espiral de aceleração, como insinua o debate econômico na grande mídia. Em 2022, a inflação deve voltar ao patamar de 2020. Com efeito, a expectativa do “mercado” é que o IPCA do próximo ano seja de 4%, contra uma expectativa de 3,5% no início do ano – um aumento insignificante, que não justifica o alarido contra o risco de descontrole inflacionário.
Diante da pressão dos grandes detentores de riqueza, o Banco Central modificou imediatamente a política monetária. A expectativa é que a taxa de juros básica da economia – a Selic –, que há poucos meses estava projetada em torno de 4%, chegue ao final do ano acima de 8%.
O “mercado” também aproveitou o fantasma da inflação para reforçar o coro pela continuidade do regime de austeridade fiscal. A pressão da plutocracia nacional, reverberada em prosa e verso pelos fariseus que se arvoraram em guardiões da moeda, é para que o Teto de Gasto que estrangula as políticas públicas seja mantido a qualquer custo.
Entretanto, arrocho monetário e fiscal são medidas que só interessam ao grande capital e, muito particularmente, aos credores da dívida pública. Ao atuar sobre os efeitos do problema – a inibição da inflação pela contenção da demanda agregada –, o receituário ortodoxo reforça a tendência estrutural à estagnação da economia, afastando qualquer possibilidade de uma recuperação do mercado de trabalho.
A pressão inflacionária que acomete a economia brasileira decorre de condicionantes conjunturais e decisões da política econômica. Nenhum desses determinantes guarda relação com “excessos” de gastos derivados de uma política monetária e fiscal expansionista (diagnóstico implícito no receituário dos que pedem maior arrocho monetário e fiscal).
O aumento do nível geral de preços é, antes de tudo, um fenômeno mundial que ganhou ímpeto a partir do segundo semestre de 2020. Trata-se de um movimento associado basicamente à expressiva elevação na cotação das commodities no mercado internacional (que desde maio de 2021 está em franco arrefecimento) e ao aparecimento de pontos de estrangulamento nas cadeias produtivas decorrentes dos efeitos da pandemia (problema que tende a perder ímpeto com o progresso da imunização em escala global).
Os choques exógenos sobre o nível geral de preços foram amplificados pela política econômica desastrosa de Paulo Guedes (que só beneficia os especuladores). Entre os fatores internos que potencializaram as pressões inflacionárias, destacam-se: a forte desvalorização do Real frente ao dólar; a escassez da oferta interna de uma série de produtos agrícolas importantes na cesta de consumo da população (como arroz e carne); e o choque de preços administrados, sobretudo combustíveis derivados de petróleo e energia elétrica.
A potencialização das pressões inflacionárias é, portanto, resultado direto de opções de política econômica, tais como: a inépcia da política cambial, que permitiu uma forte e injustificada desvalorização especulativa do Real frente ao dólar (mesmo com uma situação do balanço de pagamentos absolutamente tranquila); a ausência de uma política de estoques reguladores para evitar escassez na oferta interna de produtos agrícolas; a subordinação da política de preços da Petrobrás aos imperativos da Bolsa de Nova Iorque; e a desastrada política de administração da crise energética, que permitiu o desabastecimento dos reservatórios das principais hidroelétricas. Curiosamente, o “mercado” não deu um pio sobre tais assuntos.
Com o PIB estagnado há sete anos, o mercado de trabalho prostrado, os salários arrochados, a desigualdade social em franca elevação, a pobreza crescendo em escalada, com mais da metade da população em situação de insegurança alimentar, e os gastos públicos estrangulados pela lei do Teto de Gasto, a burguesia aproveita um aumento conjuntural do nível geral de preços para reforçar o mantra da estabilidade monetária como valor supremo que a tudo se sobrepõe.
O silêncio da oposição consentida em relação à sacralização da estabilidade monetária e a recusa em colocar a revogação do Teto de Gasto como urgência nacional mal disfarçam sua absoluta cumplicidade com o Plano Real e suas implicações nefastas nas condições de vida do povo. Para que a situação da classe trabalhadora melhore, a agenda do debate econômico deve ser colocada de cabeça para baixo. A prioridade absoluta dos brasileiros deve ser vacina no braço, comida no prato, combate emergencial à pobreza, emprego digno para todos os trabalhadores, aumento de salários, reforço da capacidade de gasto público do Estado e conquista da soberania alimentar e econômica. Somente uma intervenção popular tem o poder de desobstruir o debate sobre os rumos da política econômica e abrir novos horizontes para a sociedade brasileira.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).