Novas tecnologias estão afetando o mundo do trabalho, reforçando em particular a gigantesca subutilização da força de trabalho no Brasil.
Ladislau Dowbor
Fonte: Blog do Dowbor
Data original da publicação: 20/08/2022
Prefácio a Indústria 4.0 – Impactos Sociais e Profissionais.
O presente trabalho aborda um assunto de importância central para todos nós: como nos organizarmos para ganhar o pão nosso de cada dia, e de preferência com tarefas que não constituam rotinas anestesiantes e que sejam socialmente úteis. E razoavelmente remuneradas, evidentemente. Não é um sonho, é uma questão de organização política e social. A Finlândia nos anos 1970 decidiu investir na elevação científico tecnológica do país, em todos os setores de atividade. Era exportadora de madeira, hoje está no topo de linha da produção criativa. A China já há tempos aponta este caminho. Estamos em plena revolução digital, vivendo um processo de transformação do qual Indústria 4.0 é apenas uma etapa. No meu entender, a revolução digital é tão profunda, em termos de impacto, como foi a revolução industrial há dois séculos e pouco atrás. Está surgindo um novo modo de produção, uma forma diferente de organização das prioridades.
A cifra que está no centro do noticiário, e que com razão nos gera angustia, é a taxa de desemprego. Estava na faixa de 12% da população ativa em 2002, baixou para 6% na fase Lula-Dilma, e subiu para 14% na era da “austeridade” atual. Mas além da taxa de desemprego, temos de considerar subutilização estrutural da força de trabalho. O Brasil, com 214 milhões habitantes, tem cerca de 150 milhões em idade de trabalho (16-64 anos), mas apenas 33 milhões de empregos formais privados. Acrescentando os 11 milhões de emprego público, são 44 milhões de pessoas formalmente empregadas. Frente a essa esfera razoavelmente organizada de uso da nossa força de trabalho, temos 40 milhões de pessoas no setor informal, pessoas que “se viram”, e que ganham, segundo o IBGE, a metade do que se ganha no setor formal. A essa dramática subutilização da força de trabalho temos de acrescentar os 15 milhões de desempregados, e os 6 milhões de desalentados, o que significa que estamos falando em cerca de 60 milhões de pessoas cuja capacidade de contribuição produtiva é nula ou radicalmente subutilizada. Neste sentido, a nossa economia é estruturalmente disfuncional.
O Brasil não é um país pobre. O PIB de 2020, 7,5 trilhões de reais, representa uma produção equivalente a 11mil reais por mês por família de 4 pessoas. O que produzimos é atualmente amplamente suficiente para assegurar a todos uma vida digna e confortável, bastando para isso uma moderada redução da desigualdade. O nosso problema não é propriamente econômico, no sentido de falta de recursos, mas de organização política e social. Apenas dois setores são dinâmicos no Brasil atual: a exportação de bens primários e a intermediação financeira. Ambos geram grandes fortunas, mas pouco progresso para o país, e pouca inclusão produtiva. Constituem essencialmente drenos.
A reprimarização do país está diretamente ligada à desvalorização da moeda. Um dólar de exportação rendia, há dez anos atrás, 2,5 reais para o exportador. Hoje rende quase 6 reais. Para os traders que controlam as commodities, vale mais a pena exportar do que abastecer o mercado interno. E a Lei Kandir, de 1996, que isentou de impostos a produção para exportação – “exportar é o que importa” era o slogan da época – reforça a tendência. Gerou-se o ambiente institucional para a reprimarização do país, em nível tecnológico muito mais elevado do que antigamente, gerando poucos empregos, pouquíssimo retorno econômico para o país, e desastres ambientais. Tem sido chamado de tecno-feudalismo.
Um impacto indireto, mas central, é que se tornou muito mais interessante plantar soja do que arroz, exportar carne do que abastecer o mercado interno. O resultado é fome e inflação. E poucos empregos, relativamente bem qualificados. Tecnologia moderna a serviço de dinâmicas neocoloniais. No comando, uma aliança de grupos nacionais com os grandes traders mundiais – BlackRock, Glencore etc. – que têm como objetivo a maximização do rendimento financeiro por meio de dividendos. O emprego e o equilíbrio alimentar do país não fazem parte dos critérios de maximização de resultados. Em 2022, o Brasil tem 19 milhões pessoas passando fome, dos quais 5 milhões de crianças, e 116 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, ora têm ora não têm comida. Isso funciona para as corporações, não funciona para o país nem para a população.
Um segundo eixo dinâmico da economia na era da austeridade é o setor financeiro. Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização se tornou essencial. Os trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor e de tantos outros permitiram uma reviravolta depois de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a produção de bens e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao ano. Os rendimentos de aplicações financeiras em volumes elevados rendem entre 7% e 9%. Entre juros e dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se divorciou em grande parte dos processos produtivos. O capital vai para onde rende mais. O mecanismo básico de apropriação do excedente social se deslocou: para explorar um assalariado, o empresário precisa pelo menos gerar um posto de trabalho. Hoje o endividamento das famílias é generalizado, as tarifas absurdas nos cartões atingem a todos (1). E os dividendos elevados nas empresas produtivas tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de “confiança” ou de discurso ideológico, precisa de famílias com capacidade de compra, para ter para quem vender, e de juros baratos para poder financiar a produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra. Após tantos anos de Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas no Brasil estão trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era capital, portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje é essencialmente patrimônio. Em plena pandemia, nos 4 meses entre março e julho de 2020, o grupo restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas fortunas em 180 bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família, para 42 pessoas, em 4 meses (2). Lembrando ainda que desde 1995 esse tipo de ganhos é isento de impostos. Há dois anos atrás tínhamos 206 bilionários (em reais), em 2021 são 315. Essencialmente banqueiros, donos de ações, de holdings. Se chamam de ‘investidores”, mas o que fazem são aplicações financeiras.
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. A mudança é sísmica. Adotamos aqui a visão expressa no New Scientist: “A tecnologia tem um potencial tão grande que a expectativa geral é que o seu impacto seja tão profundo quanto o da revolução industrial.”(3) Não é só o dinheiro que se tornou simples sinal magnético nos computadores, é o conjunto da economia que desloca as suas formas de organização para o que André Gorz chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e semelhantes que dominam o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das tecnologias, o GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) nos Estados Unidos, o BAT (Baidu, Alibaba, Tencent) na China, os SIFIs (Systemically Important Financial Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão as plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação (4). Lembrando que três grupos privados de gestão de ativos, BlackRock, Vanguard e State Street, manejam hoje 19 trilhões de dólares, quando o orçamento dos Estados Unidos está na faixa de 6 trilhões.
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos Estados Unidos no caso da tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades de pesquisa da Petrobrás, o fechamento do programa de formação de cientistas no exterior, o travamento das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal abortada da Embraer, a transformação do país em mero comprador de patentes: o recuo nesta área terá impactos avassaladores sobre o futuro do país. Temos mais de um terço da população sem acesso à internet, numa era em que ficar fora do sistema digital significa isolamento social. Ainda temos universidades em que os alunos tiram xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os disponibiliza na plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE (China Open Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online de apoio tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura familiar. A Finlândia assegura programas educacionais públicos, gratuitos e de acesso universal. No Brasil ainda se discute a privatização e distribuição de vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se travar as oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou adequadamente de A elite do atraso. Na era da indústria 4.0, estamos nos desindustrializando.
Os que hoje puxam as cordas do sistema são acionistas de diversos tipos, traders, intermediários do dinheiro, da informação, da comunicação. Os resultados são desastrosos em termos econômicos, sociais e ambientais, simplesmente porque as prioridades são deformadas. Mas quem maneja efetivamente o sistema são profissionais da administração, economistas, engenheiros, advogados, informáticos e outros donos de grande capacidade técnica, mas que são em grande parte impotentes relativamente aos objetivos que as suas capacidades servem. Os meios de comunicação apresentam inúmeras declarações corporativas de responsabilidade ambiental, todos se declaram adeptos do ESG, a moda é o stakeholder e não mais apenas o shareholder. Mas a realidade é que estamos atolados, presos entre as novas tecnologias que abrem imensos potenciais, e regras do jogo e formas de definição das prioridades herdadas do século passado. São altas tecnologias a serviço do atraso. Estamos enfrentando um desafio sistêmico, uma crise civilizatória.
Notas
1. Ver ANEFAC, pesquisa mensal de juros
2. Dados da Forbes: https://dowbor.org/2020/02/18676.html/ Dados da Oxfam aqui.
3. “The technology has such potential that its impact on society is widely expected to be as profound as the industrial revolution.” – New Scientist, April 23, 2018
4. Detalhamos essas transformações, e a gestação de um novo modo de produção informacional, em O Capitalismo se Desloca: novas arquiteturas sociais, SESC, São Paulo, 2020