“(In)Capacitados para o trabalho”? Trabalho, estranhamento e saúde do trabalhador no Brasil (2000 – 2010)

André Luís Vizzaccaro-Amaral

FonteAnais do IX Seminário do Trabalho: Trabalho, educação e neodesenvolvimento, Marília, São Paulo, 26-29 maio 2014.

ResumoEsta tese de doutorado em ciências sociais analisa uma nova categoria de trabalhadores que vem se constituindo a partir da década de 2000, no Brasil. Formalizada, ao sofrer um acidente de trabalho ou adoecer por razões diversas, essa categoria de trabalhadores depara-se com o indeferimento ou com a cessação precoce de benefícios previdenciários aos quais tem direito, sem poder retornar à sua ocupação habitual em razão de uma “incapacidade laboral” (temporária ou definitiva e parcial ou total), permanecendo sem qualquer rendimento, restando-lhe a via judicial que, em alguns casos, restitui-lhe o direito tardiamente ou considera sua demanda improcedente. Este estudo procurou compreender essa nova categoria de trabalhadores e analisar possíveis impactos psicossociais que essa condição lhes pode trazer. Tratou-se de uma pesquisa referenciada no método dialético e no materialismo histórico realizada com três trabalhadores que ingressaram no judiciário contra a previdência pública brasileira. Entre outros elementos, os resultados indicaram um alto grau de sofrimento nos três casos analisados e demonstraram a crise da subjetividade em todas as dimensões psicossociais avaliadas: vida pessoal, sociabilidade, autorreferência, projetiva e crítica.

SumárioIntrodução | Aspectos teórico-metodológicos da pesquisa de campo | Os sujeitos da pesquisa | Eva, 53 anos, doméstica, informalizada | Ênio, 47 anos, em litígio trabalhista | José, 47 anos, vigia, formalizado | Considerações quanto às fontes documentais de pesquisa | Apresentação e análise dos resultados | Considerações finais | Referências bibliográficas

Introdução

Este trabalho constitui o resultado final de uma tese de doutoramento apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília-SP, Campus da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (PGCS-FFC-UNESP), e que permeia o eixo temático trabalho-saúde. Considera uma nova categoria de trabalhadores que vem se constituindo na linha de contorno que separa os trabalhadores formalizados dos desempregados, sobretudo a partir da década de 2000, no Brasil. Formalizada e, portanto, com cobertura previdenciária, ao sofrer um acidente de trabalho ou adoecer por razões diversas, essa categoria de trabalhadores depara-se com o indeferimento ou com a cessação precoce de benefícios previdenciários aos quais tem direito, por determinações muitas vezes gerencialistas do órgão previdenciário, sem poder retornar à sua ocupação habitual em razão de uma “incapacidade laboral”, temporária ou definitiva e parcial ou total, atestada por médicos assistencialistas ou por médicos do trabalho de seus empregadores. Impelida a um “vácuo institucional”, e sem qualquer fonte de remuneração, resta a essa categoria de trabalhadores o processo judicial que, em alguns casos, restitui-lhe o direito tardiamente ou considera sua demanda improcedente.

O título do trabalho procurou articular as teses defendidas nos processos judiciais contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), incorporando as aspas e os parênteses para englobar as variantes envolvidas nas posições tanto dos trabalhadores (que alegavam incapacidade para o trabalho), quanto do INSS (que alegava que os trabalhadores possuíam capacidade para o trabalho), bem como a função dos juízes (cujo papel era o de julgar as divergências entre elas). A interrogação consistiu em exatamente colocar as teses distintas em questão ao longo do trabalho. O subtítulo, por sua vez, traçou o percurso categorial (trabalho-estranhamento-saúde do trabalhador) que procuramos desenvolver na tentativa de responder à questão original, além de demarcar a espacialidade e a temporalidade da pesquisa desenvolvida para tanto.

Um dos elementos envolvidos na gênese da situação considerada neste estudo é um instrumento gerencial, por parte do órgão público previdenciário brasileiro, comumente denominado de “alta programada”. Antes denominada “Cobertura Previdenciária Estimada” (COPES), foi redenominada para “Data de Cessação do Benefício” (DCB) por meio da Orientação Interna 130/2005-INSS/DIRBEN (Diretoria de Benefícios), de 13 de outubro de 2005, que estabelecia o prazo máximo de 180 dias de benefícios, dependendo da gravidade do problema. Contudo, foi revogada pela Orientação Interna 138/2006-INSS/DIRBEN, de 11 de maio de 2006, mantendo a DCB como um dos três tipos de decisão médico-pericial: “Tipo 1: Contrária”; “Tipo 2: Data de Cessação do Benefício (DCB)”; e “Tipo 3: Data da Comprovação da Incapacidade (DCI)”. A Orientação Interna 138/2006-INSS/DIRBEN possibilitou a Concessão do Benefício por até dois anos, dependendo da gravidade do problema. Em seguida, o Decreto nº 5.844/2006, da Presidência da República, de 13 de julho de 2006, acresceu parágrafos ao Artigo 78 do Regulamento da Previdência Social (outrora aprovado pelo Decreto nº 3.048/1999, de 06 de maio de 1999), dando liberdade para o INSS estabelecer prazos que entender suficientes para a Concessão de Benefícios.

Embora o INSS tenha a “liberdade” de estabelecer prazos que entender necessários para a Concessão de Benefícios, os casos cada vez mais frequentes dos que aqui vêm sendo designados como “(in)capacitados para o trabalho”, e o termo popularizado como “alta programada”, sugerem a disseminação de antigas práticas, como as orientadas pela COPES, sobretudo em função do constante déficit orçamentário vivenciado pela instituição. Em dados divulgados pelo próprio Ministério da Previdência Social (MPS) brasileiro, totalizando o ano de 2010, a arrecadação previdenciária brasileira foi de 5,63% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, enquanto que as despesas foram de 6,76%.

Como consequência desse cenário, de 2006 até fevereiro de 2011, havia 31 ações coletivas contra a “Alta Programada” do INSS, movidas, em grande parte, por Sindicatos, pela Defensoria da União e pela Procuradoria Geral da República. Outras 180 mil ações foram movidas individualmente apenas no Estado de São Paulo. Até março de 2011, o INSS era réu em 5,8 milhões de processos, dentre os quais, estimava-se que algo em torno de 50% a 70% fossem relativos aos auxílios, entre eles o auxílio-doença.

O argumento, por parte do INSS, é claramente amparado por um discurso gerencialista e que, por esta razão, se constitui de modo racional, distanciado e generalista, corroborando as decisões de suas perícias, em prol da manutenção das práticas, tal como destaca a mesma reportagem em questão, ao entrevistar o então presidente do órgão, o Sr. Mauro Luciano Hauschild:

Logo no início da implantação do modelo, nós tínhamos 1,666 milhão de pessoas com benefício do auxílio-doença, previdenciário ou acidentário. Hoje nós temos 1,385 milhão de pessoas. Considero o sistema eficiente. Quando eu tenho 60% de satisfação dos beneficiários do auxílio-doença sem pedido de prorrogação, me parece e me deixa bastante satisfeito, à primeira vista, que a Previdência presta, sim, um bom serviço na área de perícia médica. […] Obviamente que o nosso papel é aperfeiçoar, nosso papel é melhorar. Mas a situação atual, ela é bastante positiva, sempre, claro, passível de pontualmente a gente ter um problema que, às vezes, está associado a pessoas e não é próprio à instituição e que a gente precisa, sendo notificado, buscar, identificar qual o problema e construir soluções.

O resultado para os trabalhadores nessas condições é drástico, pois, “desprotegidos”, sujeitam-se à cronificação de seus problemas de saúde, à sensação de “desproteção” perante o Estado e ao desalento, afetando suas vidas e a de seus familiares e amigos. A situação se agrava com a realidade aviltante do mundo do trabalho.

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André Luís Vizzaccaro-Amaral faz parte do Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Estadual de Londrina.

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