O horizonte de uma plataforma transnacional, diversa, intercooperativa e solidária.
Denise Kasparian
Fonte: Digilabour
Data original da publicação: 12/05/2022
Durante a última década, as plataformas digitais de trabalho cresceram cinco vezes. Apesar desse aumento exponencial, a maioria dessas empresas está distribuída em poucas localidades. Na Argentina, as plataformas digitais são relativamente recentes. No início de 2016, operavam apenas cinco plataformas, todas de origem nacional: MercadoLibre (marketplace de produtos novos e usados, e uma das cinco empresas de tecnologia mais importantes da América Latina), Zolvers (serviços de limpeza e cuidados), IguanaFix (serviços de manutenção e reparação para empresas), Nubelo (crowdworking) e Workana (crowdworking). No final de 2015, a desregulamentação dos movimentos de capitais criou condições favoráveis à entrada de plataformas estrangeiras: entre 2016 e 2018 surgiram ou chegaram pelo menos sete novas plataformas e subsidiárias de empresas estrangeiras. De acordo com os últimos dados disponíveis (2018), 22 plataformas digitais operam no país.
A chegada de plataformas de trabalho no país gerou polêmica. Como em outras partes do mundo, nas maiores cidades da Argentina, os entregadores fizeram protestos e se organizaram coletivamente para reivindicar seus direitos, enquanto os taxistas resistiram sem sucesso ao avanço do Uber e Cabify. Além da ação coletiva dos trabalhadores, diversos ativistas, acadêmicos, trabalhadores e profissionais de todo o mundo encontraram no cooperativismo de plataforma uma alternativa viável.
Neste artigo, focamos na CoopCycle, uma cooperativa de plataforma criada na França em 2017 que é uma infraestrutura digital de ciclologística e uma federação formada pelas cooperativas de entrega de bicicletas que usam a plataforma. O software de código aberto é protegido por uma licença Coopyleft, que garante seu uso exclusivo por cooperativas ou grupos de trabalhadores. Atualmente, a federação tem cerca de 70 grupos de entregadores, a maioria deles na Europa Ocidental. O desenvolvimento do software foi uma iniciativa de uma associação formada por voluntários. Para garantir a democracia, a associação foi constituída como federação, o que é um passo para a constituição de uma cooperativa multissetorial. Nesse processo, os grupos de entregadores elegeram os membros do primeiro conselho de administração em 2021.
O desenvolvimento de um software para entregas disponível para cooperativas representa, sem dúvida, um marco no ecossistema do cooperativismo de plataforma. No entanto, a capacidade desta plataforma para conseguir escalar rumo a outras latitudes não é automática ou necessariamente desejável. Quais são as condições de viabilidade para a implementação da CoopCycle na Argentina? De que forma a implementação do CoopCycle em diversos territórios contribui para a plataforma cooperativa e para a federação como um todo? Como dimensionar esta experiência de empoderamento social para além das fronteiras europeias?
A questão da escala em cooperativas de plataforma
Uma cooperativa de plataforma é “uma empresa que opera principalmente por meio de plataformas digitais para interação ou troca de bens ou serviços e está estruturada de acordo com a Declaração da Aliança Cooperativa Internacional sobre Identidade Cooperativa”. Portanto, tendo em vista que a formação de cooperativas pode encontrar entraves jurídicos e políticos em várias partes do mundo, a característica central dessas empresas está em sua identidade, independentemente da figura jurídica adotada. Até mesmo o grau de incorporação da tecnologia pode variar. Há projetos que funcionam por causa da tecnologia, mas também empreendimentos que são apenas habilitados digitalmente, assim como alguns com pouca presença de tecnologia. Há cooperativas de plataforma, bem como plataformas gerenciadas por cooperativas, nas quais as plataformas são complementares às operações dos empreendimentos. Sendo um campo emergente, essa diversidade é responsável pela amplitude do conceito.
Uma das vantagens das plataformas digitais é o seu potencial de escala, ou seja, de crescer graças à capacidade de se adaptar e responder ao crescente número, tipos e localizações de instituições e pessoas interessadas e, portanto, ser funcional em diferentes contextos. Além disso, tendo em vista que as plataformas corporativas dependem dos efeitos de rede para manter seus modelos de negócios voltados à formação de monopólios, é importante refletir sobre as formas pelas quais as cooperativas de plataforma podem crescer e ser sustentáveis. A escala, a cooperação entre cooperativas e a mutualização de recursos têm potencial para aprofundar estratégias que busquem ampliar o peso das estruturas e práticas anticapitalistas, transformando as relações de poder. No entanto, do ponto de vista de certos setores e atores cooperativos, ganhar escala pode ser irrelevante e até perigoso, pois às vezes está associado à perda de identidade e à degradação da democracia participativa.
A princípio, a CoopCycle representa uma estratégia federada com o propósito de escalar. Obviamente, isso não significa que ela consiga automaticamente desenvolver articulações alternativas à globalização e sua premissa de homogeneidade. Nossa análise se beneficia da perspectiva transnacional ligada aos estudos subalternos e à teoria pós-colonial. A sugestão de Dipesh Chakrabarty de provincializar a Europa aponta para duas ideias centrais. Primeiro, uma vez que as ideias europeias ditas “universais” têm origens históricas e espaciais muito específicas, elas não podem reivindicar validade universal. Portanto, apesar de essenciais para pensar as práticas em outras latitudes, elas são insuficientes. Segundo, o historicismo e sua noção de etapas geram a premissa de que as experiências de vida fora da Europa são “atrasadas” ou, na melhor das hipóteses, “variações locais” e “exceções particulares” de uma ideia ou prática geral originada em um centro – e depois irradiado para o resto do globo.
A perspectiva transnacional propõe uma forma diferente de olhar as interações em escala global: processos e transformações não são unidirecionais. Ao contrário, eles são capturados por meio da análise de trocas, colaborações e influências recíprocas sob padrões de circulação ao invés de difusão/disseminação. Isso implica que ideias e práticas são reformuladas de um contexto para outro, que a origem de uma determinada prática é menos relevante do que seu contexto de circulação, implementação e apropriação. Portanto, não estamos interessados em traçar a maneira particular pela qual a instância local do CoopCycle aplica um determinado modelo, medindo o grau de variação ou adequação. Ao contrário, nossa análise busca reterritorializar os processos de adaptação tecnológica. Nesse sentido, investigo a escalabilidade da experiência para além da Europa, prestando atenção aos diversos contextos, influências recíprocas e assimetrias globais.
CoopCycle na Argentina
Em 2020, a Federação Argentina de Cooperativas de Trabalhadores em Tecnologia, Inovação e Conhecimento (FACTTIC) iniciou a implementação local da plataforma. Naquele ano, a federação obteve a primeira subvenção estadual para desenvolver as adaptações de software necessárias para localização (por exemplo, alterar o gateway de pagamento e configurar impostos locais). Ainda nesse mesmo ano, obteve um segundo subsídio estatal para acompanhar e fortalecer os primeiros grupos de entregadores e cooperativas que utilizariam a plataforma. A FACTTIC vê o projeto como parte de uma estratégia mais ampla de promoção do cooperativismo de plataforma. Além disso, essa federação de cooperativas de trabalhadores de tecnologia desempenhou um papel importante na criação da CoopCycle América Latina, um espaço que inclui experiências da Argentina, Chile, México e Uruguai.
À medida que o projeto avançava nacionalmente, a equipe da FACTTIC entrou em contato com o grupo fundador europeu, que forneceu apoio e orientação. No entanto, a entrada formal do projeto argentino na rede CoopCycle não ocorreu até meados de 2021. Assim como outros países da América Latina, muitos trabalhadores do setor de entregas na Argentina usam motocicletas, enquanto a CoopCycle na Europa aposta na entrega de bicicletas como forma de contribuir para a redução da poluição e sustentabilidade ambiental. Para superar essa potencial colisão de valores, que poderia ter causado a bifurcação de projetos regionais, a FACTTIC desenvolveu uma proposta de transição de transporte em três anos para cooperativas de trabalhadores argentinos, que foi aprovada pela federação CoopCycle após a circulação de minutas, comentários, trocas, debates e votação.
Atualmente, a adaptação sociotécnica da plataforma está avançada. Isso inclui o software juntamente com a adaptação dos documentos legais e acordos que regem o uso da plataforma. Tanto o México quanto a Argentina vêm colaborando no desenvolvimento de novas funcionalidades de acordo com as realidades locais. Dentre essas funcionalidades, destaca-se a inclusão do pagamento à vista. À primeira vista, isso pode parecer uma melhoria apenas para as sociedades latino-americanas, onde a inclusão financeira ainda tem um longo caminho a percorrer. No entanto, em 2017, 1,7 bilhão de adultos em todo o mundo ainda não tinham conta bancária. Mesmo com o crescimento das titularidades de contas bancárias, a diferença de gênero (7%) e entre os mais ricos e os mais pobres (13%) persistiu, tanto nos países ditos “desenvolvidos” quanto nos não desenvolvidos, nos países “em desenvolvimento”. A posse de contas também foi menor entre os jovens adultos, os menos instruídos e aqueles fora da força de trabalho.
A CoopCycle na Argentina envolve duas cooperativas de entregadores na fase piloto. A equipe da FACTTIC já implantou a primeira instância e vem acompanhando esses grupos de trabalhadores não só no uso do software, mas também na gestão do cadastro da cooperativa e na melhoria de sua infraestrutura tecnológica, na organização dos processos de trabalho e acesso à formação nesta área, contratação de seguros de acidentes pessoais e contas bancárias, entre outras necessidades. Além disso, organizou várias demonstrações do software para divulgar o projeto e implantar mais instâncias. Além disso, a federação está comprometida com a criação de um ecossistema que dê sustentabilidade ao projeto e identidade local. Nesse sentido, por exemplo, a equipe vem trabalhando em conjunto com a Direção Provincial de Ação Cooperativa de Buenos Aires (DIPAC) no desenvolvimento de um modelo de negócios. Juntamente com o Instituto de Pesquisas Gino Germani (Universidade de Buenos Aires) e a Universidade de Quilmes, a FACTTIC desenvolveu e recentemente começou a executar projetos para desenvolver circuitos socioeconômicos baseados em redes de atores-chave em cada território.
Fatores Positivos, Desafíos e Limitações
Oito fatores emergem como relevantes para a implementação argentina do CoopCycle. Os recursos no ponto de partida herdados da experiência europeia foram cruciais, sendo a disponibilidade de software de código aberto o fator motriz central (1). Três condições contextuais são fundamentais: o arcabouço jurídico cooperativo, que não parece constituir uma barreira (2); o movimento cooperativo, que por sua magnitude e densidade poderia abrigar as nascentes cooperativas de plataforma (3); e um país altamente urbanizado com infraestrutura para bicicletas nas principais cidades, onde as cooperativas de entrega podem prosperar (4). No entanto, essas condições contextuais também apresentam desafios e limitações: os associados das cooperativas de trabalhadores na Argentina têm acesso a uma previdência social mais fraca do que a dos trabalhadores das cooperativas europeias, e os processos de urbanização na América Latina têm sido baseados em desigualdades estruturais que geram uma deficiência nos serviços públicos e uma dispersão da população nas periferias das principais cidades. Além disso, em certos casos, as motocicletas ainda são a melhor opção para os entregadores devido a questões culturais e de custo.
Os recursos organizacionais fornecidos pelo promotor de implementação local também são críticos (5). A CoopCycle representa um projeto estratégico dentro da FACTTIC, uma federação de cooperativas de trabalhadores de tecnologia com quase dez anos de experiência em trabalho intercooperativo e colaborativo. Além do papel fundamental da FACTTIC, o Estado tem sido um ator central no processo, pois forneceu os dois principais subsídios que financiam a implementação local até agora. (6) No entanto, os subsídios estaduais geram uma carga de trabalho significativa na busca e administração e repasse de recursos, o que representa um desafio para a equipe de localização, dadas as etapas iniciais do processo.
Participar e criar redes com outros atores da economia social e solidária fortalece o processo local (7). Por essas redes circulam recursos econômicos e políticos que oferecem possibilidades de escala, conhecimentos diversos e diferentes tipos de assistência. No entanto, falta construir maiores vínculos com outras experiências relacionadas às cooperativas de plataforma no país. Por fim, o caminho das cooperativas orientando outras cooperativas para incubar e acompanhar cooperativas de entregadores parece promover o empoderamento social, em comparação aos modelos estaduais de incubação (8). A reflexão coletiva e o aprendizado da equipe local geraram reformulações e reelaborações de estratégias. Assim, o processo de incubação de cooperativas de trabalhadores começa a se tornar um processo de incubação de circuitos socioeconômicos. Ou seja, cooperativas orientando territórios para garantir ambientes de cuidado aos grupos de entregadores.
Este conjunto de fatores não busca traçar um manual sobre como ter sucesso na implementação de uma plataforma cooperativa na Argentina. Ao contrário, busca compartilhar alguns aprendizados sobre a viabilidade e potencial de empoderamento social do cooperativismo de plataforma para trocar com outras experiências em diferentes contextos. Nesse sentido, vale destacar três pontos. Primeiro, como observamos em pesquisas anteriores, a centralidade do Estado nas estratégias intersticiais de mudança social. A experiência argentina –e também a mexicana– da CoopCycle expõe que os Estados podem ser aliados fundamentais para criar e aprofundar espaços de empoderamento social. Além disso, esse apoio pode ajudar a expandir esses espaços para além das fronteiras nacionais. O financiamento público concedido ao processo argentino ilustra isso, pois teve um impacto global na CoopCycle, ao possibilitar a incorporação de um desenvolvedor à equipe internacional.
Em segundo lugar, embora as estratégias desde baixo possam ser mais eficazes na erosão cumulativa do capitalismo quando há ações estatais de apoio, elas são improváveis sem poder social. Em anos anteriores, a experiência argentina de incubação estatal de cooperativas mostrou que quando o poder estatal subordina o poder social, as experiências podem ser enfraquecidas. Ao contrário, o caso analisado apresenta diversos vetores de poder social que impactam positivamente a implementação local e a CoopCycle como um todo: ativismo de software livre, uma federação cooperativa e um modelo de incubação e acompanhamento onde cooperativas orientam outras cooperativas. Em suma, o poder social e o poder do Estado podem se complementar para impulsionar a mudança social.
Terceiro, as condições de viabilidade não podem ser analisadas considerando exclusivamente dimensões locais. A perspectiva transnacional prevalece quando se analisam as cooperativas de plataforma, pois no escrutínio dos fatores positivos para sua consolidação, devem ser consideradas diferentes escalas. As análises devem ser posicionadas em um ponto de vista que vincule fatores locais e nacionais, bem como variáveis que transcendem esses territórios. Por exemplo, abordar o ponto de partida do caso local exigía o uso de uma lente transnacional para capturar a relevância do software de código aberto. O mesmo aconteceu ao analisar as implicações do processo local na sustentabilidade socioeconômica da CoopCycle como um todo: levar em conta a importância do desenvolvedor local se juntar à equipe internacional exigia essa perspectiva.
O que a implementação argentina nos permite aprender sobre a CoopCycle como um todo?
O cooperativismo de plataforma é um movimento emergente que representa uma esperança renovada e a possibilidade de aprofundar o empoderamento social em nossas sociedades e economias graças aos benefícios das tecnologias da informação e da Internet. Um dos principais desafios das cooperativas de plataforma está em questões de crescimento, replicabilidade e escala. Então, eu argumento que a estratégia de federação expandida da CoopCycle para o crescimento delineia uma plataforma transnacional, diversificada, intercooperativa e solidária.
No que diz respeito ao desenvolvimento de software e ao trabalho colaborativo, embora tenha sido concebido inicialmente como um software –e uma federação– para grupos de trabalhadores na Europa, o código aberto desencadeou sua implementação na Argentina e em outros países da região. Essa disposição solidária do grupo fundador da CoopCycle gerou trocas, intercooperações e colaborações que deram forma a uma estratégia federada ampliada com o recente lançamento da CoopCycle América Latina juntando-se ao ecosistema da CoopCycle.
Além dos desafios futuros que essa circulação expandida da CoopCycle certamente representará, o trabalho colaborativo até agora teve um impacto positivo na plataforma. O desenvolvimento do pagamento em dinheiro pelo México não representa apenas a solução para um problema premente na América Latina. Essa funcionalidade, tipicamente pensada para as sociedades latino-americanas, poderia suscitar uma reflexão sobre o Sul Global, também presente na Europa. A incorporação de um desenvolvedor da FACTTIC é um grande benefício para a plataforma. Essa coletivização do trabalho de desenvolvimento de tecnologias pode levar a uma maior documentação dos processos e, portanto, a maiores possibilidades de compartilhamento de software e conhecimento. A expansão da equipe também pode permitir que a CoopCycle reflita e avance em um campo inexplorado: coleta e análise de dados.
Em termos de sustentabilidade, a aprovação do plano de transição de transporte para a localidade argentina repensa a agenda ambiental da CoopCycle como um todo, pois a sustentabilidade ambiental adota múltiplas definições e caminhos dependendo do contexto. Além disso, o plano de transição sugerido pela FACTTIC poderia permitir a implementação do CoopCycle em outras latitudes.
Essa estratégia federada ampliada de crescimento apresenta novos desafios e oportunidades de interação entre os dois hemisférios. Mais espaços para troca, aprendizagem entre pares e colaboração estão começando a ser necessários. Os modelos de governança provavelmente terão que ser reformulados para incorporar organicamente a CoopCycle América Latina. O horizonte de uma plataforma transnacional, diversa, intercooperativa e solidária certamente guiará esse caminho.
Denise Kasparian é Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas com sede de trabalho no Instituto de Pesquisas Gino Germani, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina. Research Fellow, Institute for the Cooperative Digital Economy, The New School, Estados Unidos