
Resposta ao presidente da FIEMG e à lógica empresarial que transforma a informalidade em virtude e os direitos em obstáculo.
Daniel Ferrer de Almeida
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 07/07/2025
Por um desses lampejos de generosidade retórica, o presidente da FIEMG resolveu fazer um elogio público à inteligência do povo brasileiro. Disse, em entrevista à coluna Painel S.A., da Folha de São Paulo (05/07), que o trabalhador não é idiota – e, por isso mesmo, prefere viver de bicos e programas sociais a aceitar um emprego com carteira assinada. Dado esse gesto inusitado de empatia, achamos justo devolver a gentileza: desta vez, quem vai defender a racionalidade do empresário – com o mesmo grau de liberdade interpretativa – é o trabalhador. Se já não há compromisso algum com a realidade, vamos nós também explorar esse terreno da imaginação.
Diz o representante da indústria:
“Temos aí a sensação de pleno emprego, mas as empresas não encontram pessoas para trabalhar. O trabalhador tem a opção de ficar em programa social fazendo bico. Porque ele sabe fazer conta. O brasileiro não é idiota. Ele pensa: ‘vou ganhar mil e poucos reais do governo, não vou ter vínculo [de trabalho] com ninguém e faço diárias de R$ 200’.”
Diz o trabalhador:
Temos aí a sensação de que a indústria está se recuperando, que os investimentos voltaram, que há uma agenda para reindustrialização do país. Mas os trabalhadores não encontram salários decentes – só contratos terceirizados, intermitentes, jornadas parciais e promessas de MEI. O empresário industrial, por sua vez, também sabe fazer conta: “Por que empregar, produzir, inovar? Melhor aplicar meu capital em renda fixa com juros de dois dígitos, contratar um bom tributarista, pagar um lobby em Brasília e seguir lucrando sem sair do ar-condicionado. Produção dá trabalho.”
Diz o representante da indústria:
“O idiota é quem trabalha com carteira assinada, porque ganha R$ 2 mil, paga imposto, e ainda vai se aposentar com a regra até os 65 anos. O cara que está há 20 anos no programa social se aposenta aos 45 anos. Quem trabalha 20 anos, não se aposenta. Ora, está tudo errado.”
Diz o trabalhador:
Idiota é o empresário que produz e não vive de juros, porque ganha só alguns milhões empregando, exportando e vendendo – e ainda tem que levar os filhos nas férias para a Disney. Já o sujeito que está há 20 anos na mamata do rentismo do Banco Central – operando juros altos e vendendo consultoria sobre teto de gastos – toma espumante em Veneza no casamento do Jeff Bezos. Ora, está tudo errado.
Diz o representante da indústria:
“O percentual da população desocupada é enorme e muito maior que a do restante dos países, porque o incentivo que o estado vem dando é ‘não faça nada, fique em casa’. No Bolsa Família, 40% das pessoas são perfeitamente aptas a trabalhar.”
Diz o trabalhador:
O percentual de industriais que se tornam rentistas é enorme e muito maior que a do restante dos países, porque o incentivo que o Banco Central vem dando é “não faça nada, lucre com a dívida pública”. O custo com o serviço da dívida (sem falar no estoque devedor) é, por ano, 10 vezes maior que o investimento no Bolsa Família.
Epílogo: uma verdade incômoda
O que impressiona não é apenas o tom da entrevista, mas a naturalidade com que se reproduz um discurso de fundo aristocrático – aquele mesmo de Thomas Malthus, que preferia a fome à assistência, e que hoje ganha versão empresarial na forma de desprezo pela proteção social e defesa da informalidade generalizada. Tudo muito coerente com o desejo de muitos: um retorno silencioso à servidão.
O que dizer do empresário industrial que repete, como se fosse sua, a cartilha do mercado financeiro? Que defende corte de gastos públicos, juros altos e enxugamento do Estado, mesmo sabendo que isso sufoca o consumo, encarece o crédito e destrói a demanda por sua própria produção? A elite produtiva que copia o discurso da elite rentista pode até parecer sofisticada – mas esse verniz apenas disfarça o pântano ideológico em que está atolada.
Quando um representante da indústria brasileira afirma que só um idiota trabalha com carteira assinada, ele não está apenas provocando – está revelando a lógica perversa que ajudou a consolidar: um país onde a informalidade é estimulada, o vínculo é descartável e os direitos são tratados como distorção.
Mas talvez o que mais espante não seja o desprezo pelo trabalhador, e sim o abandono da própria vocação empresarial. Porque, no fundo, não há nada mais idiota do que um industrial que desistiu da indústria.
Daniel Ferrer de Almeida é doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Escola DIEESE de Ciências do Trabalho.