Ideologia, Economia de Francisco e Clara e a disputa eleitoral brasileira

Fotografia: Vaticano

Cristina Pereira Vieceli

O primeiro turno das eleições de 2022 aponta para uma tendência de continuidade da agenda econômica neoliberal e conservadora, haja vista o avanço da bancada de direita e extrema direita no poder[1]. Houve, por outro lado, a renovação de candidaturas de esquerda, com a eleição de mulheres, trans, bancada negra e de nomes importantes na luta dos direitos de cidadania, como Eduardo Suplicy, – histórico na luta pela renda básica da cidadania, – Guilherme Boulos, liderança na luta pela moradia, e Sonia Guajajara, primeira mulher indígena eleita para a Câmara, defensora dos direitos ambientais e dos povos indígenas.

Há, portanto, um embate entre, por um lado, forças conservadoras nos costumes e associadas majoritariamente as pautas econômicas neoliberais[2], e, por outro, progressistas, que reivindicam a maior participação do Estado, das políticas públicas, geração de emprego, direitos trabalhistas, além das pautas nos costumes, ligadas à população negra, mulheres, LGBTQI+, ambientalistas, indígenas entre outros.

Esse embate ocorre também em outros países do mundo, assumindo diferentes formatos, e é característico do momento político e econômico que vivemos. Percebe-se que a direita conservadora procura propagar que a causa da crise econômica está relacionada com a crise nos costumes. Daí destacam a questão da preservação da família e das normas de gênero. Além disso, o pacote econômico neoliberal é vendido conjuntamente com a ideia de que há um perigo de se implantar um sistema socialista no Brasil, e que este está relacionado com liberdades sexuais e desconstrução da família tradicional.

Ou seja, o medo da perda das identidades conservadoras: família, patriotismo, ordem, serve atualmente como justificativa inclusive para implantar uma agenda econômica que, historicamente, é causa de sua própria desintegração. O neoliberalismo inviabiliza a manutenção da reprodução da vida humana, em qualquer formato, mesmo das famílias conservadoras.

A preocupação com os rumos que o sistema econômico vem assumindo no mundo e a luta por alternativas em que a humanidade, a solidariedade e a preservação do meio ambiente sejam centrais é também agenda de parcela do cristianismo. A exemplo disso, entre os dias 22 a 24 de setembro em Assis, na Itália, ocorreu o encontro internacional “Economia de Francisco”. A ideia do encontro iniciou em 2019, a partir de um chamado do Papa Francisco para jovens engajados(as) em movimentos sociais, sindicais, pesquisadores(as) e empreendedores(as) para discutirem soluções para um novo mundo.

O encontro presencial foi inviabilizado em 2020 e 2021, ainda assim, neste período foi ensejado esforços de construção de pautas conjuntas. Destaco a criação da Academia de Francisco, em que foram financiadas pesquisas em diversas áreas ligadas ao meio ambiente, igualdade de gênero, direitos humanos, entre outros. Palestras com importantes economistas como a economista feminista Nancy Folbre, e o Nobel de economia Joseph Stiglitz. Também foi lançado um dicionário, revisando termos econômicos[3].

Em 2022, finalmente, no encontro presencial, reuniram-se pessoas de diferentes crenças, de diversas partes do mundo: católicos, evangélicos, agnósticos, ateus, inspirados na ideia do cuidado com a “casa comum”. O local, Assis, foi escolhido devido à história de Francisco e Clara, que inspiraram na luta pela preservação do meio ambiente e pelo auxílio aos pobres. A pauta unificadora, portanto, é contrária ao sistema neoliberal.

A segunda maior delegação a participar do encontro, foi a brasileira, em que se reuniram principalmente grupos ligados aos diversos movimentos sociais, como pastorais da terra, grito dos excluídos, lideranças indígenas, mas também pesquisadores(as) independentes. A pluralidade de pessoas demonstra o esforço na democratização do debate, e principalmente, o ensejo de ouvir a juventude em sua diversidade.

Voltando para as eleições brasileiras, e seguindo a lógica da crítica ao neoliberalismo, é importante destacar que a agenda do governo Bolsonaro inviabiliza inclusive os principais pilares do conservadorismo: a família tradicional e os valores patrióticos. Por isso a preocupação de parte do cristianismo à agenda econômica de direita vendida em um pacote que visa à “preservação da vida e dos valores cristãos”.

Em relação às famílias conservadoras, o neoliberalismo, a partir da ideia de redução do papel do Estado, das políticas públicas, da flexibilização das normas trabalhistas, decorre em redução da renda total das famílias, do aumento da informalidade e das formas precárias de emprego (com baixos salários, baixa proteção social), com impacto, por consequência, na instituição que os conservadores mais querem preservar: a família nos moldes tradicionais – homem provedor, mulher cuidadora.

A realidade é que cada vez mais a renda e o trabalho remunerado das mulheres são demandados e mais importantes para as famílias. Além disso, a redução das políticas públicas voltadas para os cuidados, como acesso a escolas de educação infantil, saúde pública, escolas em tempo integral, merenda escolar, também inviabilizam os cuidados, impactando ainda mais as mulheres. A situação é tão grave que muitas são obrigadas a migrar para outras regiões e países, deixando suas famílias de origem, um rompimento com laços de afeto.

Uma questão que também foi levantada pelo Papa Francisco no fechamento do evento foi a inviabilidade da maternidade no atual sistema, do cuidado dos filhos, da reprodução da vida humana. O sistema neoliberal enxerga como custo o cuidado dos filhos e não viabiliza a sua manutenção, seja por parte das famílias, já que boa parcela da população está em empregos informais de baixa renda em jornadas instáveis, seja por parte do Estado, pela redução das políticas públicas, e também das empresas, haja vista a flexibilização das leis trabalhistas e aumento da informalidade.

A alternativa do atual governo, de garantir à população renda por meio do auxílio emergencial, é importante, na medida em que garante que estas pessoas tenham acesso à alimentação, haja vista o aumento da fome. No entanto, não é contínua, não está garantida em seu atual montante nem na Lei Orçamentária de 2023 e não é acompanhada por políticas de geração de emprego decente, de garantia ao acesso aos cuidados, de crianças, idosos e pessoas doentes. Além disso, ocorre em um contexto de crescimento inflacionário, principalmente dos alimentos, que poderiam ser controlados pelo Estado via política de armazenamento e incentivo à agricultura familiar.

A possibilidade de garantir às pessoas acesso ao crédito consignado é mais uma alternativa de incorporação de camadas da população ao sistema financeiro, aumentando o lucro dos bancos, do que de fato a garantia de melhoria nas condições de vida. Isto porque ocorre em um contexto de redução do poder de compra e instabilidade na própria garantia de manutenção do auxílio, como foi dito.

Em relação ao segundo pilar conservador, o patriotismo e o nacionalismo, estes também vão de encontro à agenda neoliberal. Isso é evidente com a venda das empresas estatais brasileiras, inclusive as mais estratégicas como a Eletrobras, Petrobras e bancos públicos, inclusive os regionais, de extrema importância para o desenvolvimento local.

É necessário pensarmos sobre estratégias para transição a energias limpas, em como o Brasil deve se inserir nas novas tecnologias da informação, e não temos nenhum projeto para o país de inserção competitiva nas cadeias globais de valor. Ao contrário, permanecemos uma economia dependente de exportações de commodities primárias, que estão à mercê da dinâmica dos mercados financeiros globais. Ficamos à revelia do capital de empresas estrangeiras, inclusive da China, e contribuímos para a exploração predatória do meio ambiente e destruição das diferentes formas de vida.

A mensagem do Papa Francisco para os jovens está associada à construção de uma nova ética, em que se busca a simplicidade e a sustentabilidade, em que a humanidade se enxergue como parte do meio ambiente e lute contra as injustiças sociais, políticas, pelos direitos dos migrantes, dos povos originários, das mulheres. Usando as suas palavras: “O grito dos pobres e o grito da terra são os mesmos gritos”. Ele aponta que há uma insustentabilidade espiritual no capitalismo, já que é sustentado por valores individualistas, voltados para o aumento predatório do lucro que colide com a construção da solidariedade e da democracia. É necessário, portanto, mudanças, estruturais: “Não adianta pintar a casa, se a estrutura está estragada”.

Ou seja, é necessária a mudança no sistema econômico, mas, além disso, que esta seja acompanhada principalmente por transformações políticas e nos valores éticos. Para além da maior participação do Estado e das políticas públicas, que estas sejam acompanhadas pelo fortalecimento da democracia e da participação popular em sua diversidade, pelo fortalecimento das instituições, entre as quais, as representativas da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Deve-se garantir a existência, a dignidade e o respeito a todos os tipos de famílias, em seus diferentes arranjos e opções sexuais.

Aqui uma das minhas muitas discordâncias com a doutrina católica. Apesar do atual ensejo pela construção de pontes, a instituição não reconhece o papel histórico das normas de gênero e da dominação patriarcal nas desigualdades e violências contra as mulheres. Também não reconhece a diversidade sexual como legítimas.

Por fim, uma das palestrantes do evento em Assis foi a economista feminista indiana Vandana Shiva – o que também é uma demonstração do ensejo da construção de pontes, considerando que Vandana é feminista e trata sobre questões relacionadas ao meio ambiente e gênero. Ela descreve a necessidade da construção de uma ética baseada no respeito ao meio ambiente, e, nesse sentindo, a necessidade de oportunizarmos aos(às) jovens do mundo o direito de sonhar.

Notas

[1] https://www.diap.org.br/index.php/publicacoes/category/80-prognostico-sobre-a-futura-camara-dos-deputados

[2] Nem todos os conservadores de extrema direita são signatários do neoliberalismo, a exemplo de Trump que é favorável a políticas intervencionista de defesa da indústria estudunidense.

[3] https://www.cittanuova.it/libri/9788831135481/the-economy-of-francesco/

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .

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