Uma empresa decide registrar a rotina e a vida pessoal de trabalhadores. Monta dossiês, com detalhes sobre horário de saída e volta para casa, local de destino, meio de transporte utilizado, hábitos de consumo e informações sobre cônjuges e filhos. Parece uma situação típica da ditadura civil-militar (1964-1985), mas isso ocorreu entre os anos de 1999 e 2003. E a empresa em questão é o banco inglês HSBC.
As violações em série cometidas pelo banco foram parar nos tribunais. No início de fevereiro, o HSBC foi condenado a pagar indenização de R$ 67,5 milhões por danos morais coletivos. Em entrevista ao Brasil de Fato, uma das funcionárias do HSBC espionadas pela empresa confirma que foi alvo de investigações particulares. O processo tramita em segredo de Justiça, com o objetivo de preservar os dados pessoais dos trabalhadores contidos nos autos. Por isso, a trabalhadora é aqui identificada como Ana Maria.
A bancária conta que as investigações traziam detalhes da vida pessoal e que o dossiê feito pela empresa continha fotos que confirmam que os investigadores a seguiram. “Tinha nome, tinha endereço, tinha telefone, tinha tudo. Mas eles me fotografaram no mercado”, descreve.
Através da investigação da rotina de seus trabalhadores, o banco pretendia verificar se algum empregado afastado por doença recebia benefício previdenciário indevidamente. Ou seja, se estivesse apto para o trabalho ou realizando outras atividades remuneradas.
Ana Maria relata que quando sofreu a espionagem estava afastada do trabalho no banco por ter desenvolvido a Lesão por Esforço Repetitivo (LER). “Como que se você tivesse LER não pudesse fazer mais nada na vida, fosse uma lesada, entende? Que você não tem que continuar tua vida, que você tem que ir no mercado, fazer compras. Com dor ou sem dor você tem que continuar a viver sua vida, não é verdade?”, indaga.
Documentos levantados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) comprovaram que o banco contratou a empresa Centro de Inteligência Empresarial (CIE) para realizar investigações privadas. A CIE investigou, a pedido do HSBC, 152 pessoas de diversos estados do Brasil.
Para cada funcionário, era preparado um dossiê correspondente, que além das informações básicas pessoais também incluía consultas de antecedentes criminais, restrições creditícias, ajuizamento de ações trabalhistas e participação em sociedade comercial.
O secretário de Organização da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Miguel Pereira, destaca a gravidade dessas investigações, pois viola a intimidade e a vida privada dos trabalhadores.
“Ela fiscalizava as pessoas do ponto de vista da relação conjugal, que tipo trabalho o marido ou a esposa tinha, que tipo de relação social essa pessoa continua mantendo, se ia à festa, se ia a bar, se ia à feira, o que consumia”, revela Pereira.
Pereira afirma ainda que em alguns casos o investigador particular se passou por outra pessoa e entrou nas residências dos trabalhadores. “Inclusive se passando, esses espiões, por entrevistadores de empresas de cosméticos, entrevistadores de empresa de telefonia para ter acesso ao ambiente familiar dessas pessoas”, detalha.
Além da condenação por danos morais coletivos, o HSBC também foi orientado a não mais realizar investigações particulares ou qualquer outro ato que viole o lar, a intimidade ou a vida privada de seus empregados ou trabalhadores terceirizados O não cumprimento das determinações implica em multa de R$1 milhão por empregado investigado.
Pereira relata detalhes ainda mais absurdos dos agentes de espionagem, que “vasculharam lixo dessas residências para ver se consumia bebida alcoólica, que tipo de medicação tomava. Então, tem várias fotos e várias descrições nesses dossiês relatando a rotina de vida, pessoal, desses trabalhadores”.
Na apuração do caso, o MPT ouviu o HSBC, que confirmou a contratação da CIE para investigar a vida e a rotina dos empregados que se encontravam afastados em razão de doença ocupacional. De acordo com a instituição financeira, caso a situação de fraude fosse verificada, o banco encaminharia as informações ao INSS.
Para Ana Maria, a desconfiança do banco é incabível e injustificável, já que para a concessão do beneficio previdenciário o trabalhador já passou pela perícia médica.
“Uma vez que eu tinha laudos médicos, que eu tinha exames, comprovando que eu tinha a doença, passei por cirurgia nos braços. Eu fiz quatro cirurgias. E o banco me mandava na época, inclusive, para médicos que ele conhecia, que ele direcionava. E esse médico pedia exames também, os mesmos que eu já tinha, e dava o mesmo resultado”, denuncia Ana Maria.
Problemas de saúde
O drama vivido pela bancária Ana Maria reflete uma situação comum vivenciada por trabalhadores do setor. Em 2012, segundo dados dos INSS, 21.144 bancários foram afastados do trabalho por adoecimento, dos quais 25,7% com estresse, depressão, síndrome de pânico e transtornos mentais relacionados diretamente ao trabalho. Outros 27% se afastaram em razão de lesões por esforços repetitivos (LER ou DORT).
A organização do trabalho dentro dos bancos é amplamente questionada pelos trabalhadores. A pressão por cumprimento de metas abusivas e o assédio moral são problemas frequentemente apontados pela categoria. Essa realidade explica o alto número de afastamentos, mas não foi capaz de convencer o HSBC a mudar de postura.
O secretário de Organização da Contraf- CUT, Miguel Pereira, ressalta que as ações do banco extrapolam a questão de desrespeito dos direitos trabalhistas.
Ele afirma que o caso de espionagem dos trabalhadores coloca uma série de outras discussões que precisam ser feitas não somente no meio bancário, mas nas diversas instâncias políticas.
“Não é possível que no Brasil se admita ou que se tenha possibilidade das empresas atuarem dessa forma. Ainda bem que o judiciário compreendeu, mesmo ainda que em primeira instância, e aplicou uma multa relativamente significativa. Porque R$ 60 milhões para um banco é praticamente nada. É muito pouco pelo tamanho da violência que gerou. A gente precisa se apropriar desse caso do HSBC, da multa que foi aplicada, e construir um processo pedagógico, legal, legislativo, para impedir que isso se repita”, pontua Pereira.
Na sentença, o juiz Felipe Calvet considerou “indiscutível que a empresa demandada extrapolou os limites do seu poder diretivo”. No documento, o juiz ainda declara que “houve inequívoca violação à intimidade, vida privada, honra, imagem e domicílio dos empregados investigados, e principalmente houve flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana”. O magistrado conclui que “o banco reclamado infringiu normas Constitucionais pétreas, garantidoras dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.”
Reincidente
Em 2001, o HSBC foi acusado de ter realizado grampos nos telefones de dirigentes sindicais entre os anos de 1997 e 2000. Para a execução das escutas telefônicas e levantamento de dados confidencias desses trabalhadores, o banco contratou a mesma empresa responsável pelas investigações dos funcionários com afastamento por licença-médica.
Pereira lembra que esse modo de agir foi uma espécie de cartão de visita. As violações de direitos já começaram a ser praticadas pelo banco logo no início de sua chegada ao país, em 1997.
“Então, também existe uma outra ação que tramita no Ministério Público Federal de grampo, provando que o banco também grampeava os dirigentes sindicais. Essa é uma prática nefasta de uma multinacional, de um grande banco, um dos maiores do mundo, que chega no Brasil, e acha que pode fazer tudo, abusar e abusar”, conclui.
A sentença de condenação do HSBC decorre de ação civil pública ajuizada a pedido de entidades representativas dos trabalhadores do setor. No primeiro semestre de 2013, o banco inglês lucrou 153 milhões de dólares no Brasil.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Daniele Silveira
Data original da publicação: 25/02/2014