Greve Geral na Argentina: quando a Pátria está em perigo, sua defesa é um imperativo popular

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Fotografia: kantemir/Free Images

As centrais sindicais argentinas traçaram um Plano de Combate lançando uma primeira Greve Geral com Mobilização para o dia 24 de janeiro.

Álvaro D. Ruiz

100 dias de uma doença

Normalmente é proposto um período de carência a cada novo governo, com o objetivo de que implemente as linhas orientadoras do plano político no seu primeiro trimestre e assim se possa antever o rumo e o significado que projeta para a Nação. 

É claro que esta tradição republicana está assentada em certos pressupostos, sendo o principal deles o respeito à Constituição e às instituições democráticas. Também está firmada em valores e bens que admitam este período de espera sem implicar em benefício exclusivo para as minorias e em detrimento do interesse geral.

A Argentina vive um período de exceção inconcebível, depois de completar quatro décadas de institucionalidade democrática. Essa é uma ação disruptiva deliberada, com o único propósito de subjugar os direitos humanos fundamentais, desestruturar os sistemas de representação dos cidadãos e levara à renúncia a soberania nacional.

Duas semanas após a posse do governo de Javier Milei, as medidas adotadas já revelavam o desrespeito às regras básicas da divisão de Poderes, arrogando competências exclusivas do Poder Legislativo e expressamente vedadas ao Executivo. Promovendo uma brutal transferência de renda em favor dos setores econômicos com maior concentração de riqueza, o governo lança também um programa de apropriação estrangeira da riqueza nacional.

Diante de tão ostensivo ataque, seria uma ingenuidade imperdoável deixar-se cair na armadilha de uma suposta e aparente conduta “politicamente correta”, quando, no fundo, o que a política exige é a defesa da Democracia e da Pátria. Pela natureza vertiginosa das operações implementadas, em um período tão curto de tempo, não reagir implicaria consumar um atraso de mais de 100 anos, levando o país a uma fase pré-democrática e a uma submissão oligárquico-colonial sem precedentes.

O contexto da resistência popular 

Em 20 de dezembro de 2023, poucos dias depois de ordenar uma desvalorização de 118% do peso e estabelecer uma série de medidas desregulamentadoras que aumentaram o empobrecimento da população, o presidente Milei emitiu um Decreto de Necessidade Emergencial (DNU 70/2023) que reforma e revoga mais de 300 leis, incluindo modificações em dois Códigos (o Código Civil e Comercial da Nação e o Código Aeronáutico).

A Constituição Nacional proíbe expressamente o Presidente da República de editar leis, por se tratar de competência exclusiva do Congresso e seguir os procedimentos regulamentados para a sua sanção com a intervenção das Câmaras dos Deputados e Senadores.

A possibilidade de utilização de Decretos de Necessidade e Urgência (DNU) está prevista “somente quando circunstâncias excepcionais impossibilitarem o cumprimento dos procedimentos ordinários previstos nesta Constituição para a sanção de leis…” (art.99 parágrafo 3° CN), sendo a sua interpretação rigorosa e restritiva de acordo com a jurisprudência uniforme da Suprema Corte de Justiça da Nação.

Essa premissa não se justifica, principalmente levando em consideração que o período de sessões ordinárias do Parlamento estende-se de 1 de março a 9 de dezembro de cada ano. Prova disso é que o Poder Executivo convocou Sessões Extraordinárias durante o mês de janeiro de 2024, incorporando uma “ mega lei” ou “lei omnibus” de mais de 600 artigos, através da qual se pretende validar o DNU 70/2023.

Por outro lado, a legislação em vigor impõe um procedimento especial para a validação de um DNU, que deve primeiro obter parecer de uma Comissão Bicameral – a qual não foi constituída – para depois ser submetido a cada uma das Câmaras do Parlamento.

A eventual excepcionalidade só pode derivar de uma situação conjuntural e limitada, que está longe de permitir reformas estruturais em matérias tão diversas  como comércio externo, reforma do Estado e privatização de empresas públicas, desregulamentação econômica, Justiça, mineração, sistema de relações laborais – contrato de trabalho, regime sindical, acordos coletivos, greve, saúde, educação, comunicação, desporto, turismo. Isso por si só já revela a absoluta inconstitucionalidade e anticonvencionalidade (baseada nos Tratados e Acordos Internacionais assinados pelo Estado Argentino) do DNU.

O movimento dos trabalhadores

Como em tantas outras ocasiões da história argentina, o movimento dos trabalhadores assumiu o protagonismo, reafirmando sua luta pela conquista, defesa e ampliação dos direitos sociais, e em defesa da Democracia.

Diante do atual cenário, a Confederação Geral do Trabalho (CGT) recorreu à Justiça, em 28 de dezembro de 2023, exigindo a anulação do DNU e solicitando a emissão de uma medida cautelar que suspenderia o Título IV – Trabalhista. Com esse propósito, evitaria a aplicação de uma reforma trabalhista regressiva nos direitos individuais e coletivos no início de 2024. Sem dúvida, o principal objetivo do governo ao tentar enfraquecer os sindicatos sempre foi retirar direitos trabalhistas e segurança social.

No entanto, este primeiro e urgente meio de autoproteção está longe de ser o fim da luta.  Estamos conscientes de que os perigos que pairam sobre a Argentina hoje excedem em muito as relações laborais e se manifestam no conjunto de normas contidas naquela DNU e na “lei ônibus”.  

Assim, a CGT, juntamente com as outras Centrais (CTA-T e CTA-A), traçaram um Plano de Combate lançando uma primeira Greve Geral com Mobilização para este dia 24 de janeiro.

Uma jornada histórica 

A ação decisiva das Centrais atraiu o apoio de diversas organizações sociais, políticas e da sociedade civil, tendo como epicentro a cidade de Buenos Aires. Na capital argentina, uma grande marcha foi realizada rumo ao Congresso Nacional, replicada também nas praças emblemáticas de diferentes cidades das províncias argentinas.

Os anúncios repressivos e as ameaças do governo nacional invocando um Protocolo de Segurança, ridículo e claramente inconstitucional, mesmo representando um desafio, não coibiram os direitos de protesto, reunião e expressão. Também mostra o desprezo do partido no poder pela democracia, pelas instituições da República e pelos Direitos Humanos.

A temperança e a prudência das Organizações que convocaram a paralisação não devem ser confundidas com docilidade a ser domesticada por quem tenta se apropriar da Argentina.

Sem renunciar aos canais institucionais, é na rua que se resolverá finalmente a encruzilhada política que hoje enfrentamos. Esse é o lugar onde a classe trabalhadora, juntamente com as suas organizações sindicais, poderá dar conta de sua firme vontade de lutar por uma Pátria Justa, Livre e Soberana

Álvaro Ruiz é advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos.

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