Superar o obstáculo do silêncio da mídia sobre o assunto foi uma grande vitória do movimento grevista.
Cristiano Paixão
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 20/02/2020
O bloqueio foi rompido. Diante dos últimos acontecimentos nos planos político e institucional, a imprensa brasileira – especialmente os grandes grupos – teve que falar sobre a greve dos petroleiros. Não foi fácil. O assunto só chegou à mídia convencional após uma sucessão de decisões judiciais, quando a categoria já estava na sua segunda greve. Em movimento anterior, no ano passado, houve divergência no TST acerca da possibilidade, ou não, de suspensão cautelar do movimento.
Em dezembro de 2019, a Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) decidiu, por maioria de votos, que o tribunal não poderia declarar, em tutela de urgência, sem uma mínima produção de provas, a abusividade do movimento e, por consequência, não poderia impor multas de natureza cautelar (TutCautAnt 1000961-35.2019.5.00.0000).
A decisão da SDC do TST está em completa consonância com a Constituição vigente. O art. 9º do texto constitucional não poderia ser mais claro, ao assegurar o direito de greve, “competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
Porém, nova greve eclodiu em 2020. A Petrobras foi então ao STF, onde obteve o que queria: a revogação liminar da decisão da SDC. O presidente da Suprema Corte deliberou que era necessário “fazer cessar a ação” dos grevistas e suspendeu os efeitos do julgamento do TST (SL 1298).
Cabe, então, propor duas observações sobre o caso e uma reflexão conclusiva.
1. A decisão do presidente do STF não é um “ponto fora da curva”. Ela é a reiteração do entendimento manifestado pelo tribunal em outros casos. De modo sintético, podemos dizer que o STF (ou ao menos uma parcela do tribunal) está determinado a redefinir, de modo radical, o alcance do direito de greve, especialmente quando se tratar do setor público. Na Reclamação nº 24.597/SP, que envolvia uma paralisação de empregados públicos, o tribunal inviabilizou o direito de greve, ao determinar o retorno de todos os trabalhadores ao serviço, sob pena de multa (já havia uma decisão ordenando a manutenção de 70% de trabalhadores, o que foi considerado insuficiente pelo STF, que estendeu a ordem à totalidade dos empregados). No Recurso Extraordinário (RE) 693.456-RJ, o tribunal decidiu que em greves no serviço público o administrador não tem apenas a faculdade, mas sim o dever de proceder ao desconto da remuneração dos grevistas, o que deve ocorrer assim que a greve se iniciar.
Por isso a decisão no caso da Petrobras não surpreende; ela reforça entendimentos anteriores, que se dirigem contra a iniciativa de deflagrar greves. A preocupação do STF é a de prevenir e evitar movimentos grevistas. Para que tais fins sejam atingidos, é permitido determinar, de modo cautelar, o retorno de todos os trabalhadores ao serviço, assim como aplicar multas elevadas, também em tutela de urgência, ao sindicato representativo da categoria profissional. Foi exatamente esse o pedido feito pela Petrobras – e que foi atendido. O STF age, portanto, como se o art. 9º da Constituição não existisse.
2. A reiteração dessa orientação do STF produzirá alguns desdobramentos. O primeiro deles é a ativação dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Como já afirmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Lagos del Campo vs. Perú, os direitos humanos (aí incluídos os econômicos, sociais e culturais) são indivisíveis e interdependentes, sem que exista hierarquia entre eles. A atuação do STF em relação ao direito de greve – e também dos órgãos da Justiça do Trabalho que a convalidem – é tão flagrantemente contrária aos direitos humanos (como o da liberdade de associação e o direito a um julgamento justo) que enseja a provocação imediata dos órgãos de proteção no plano internacional.
Uma segunda consequência é particularmente grave: a posição do STF viola o acesso à justiça. A Constituição da República estabeleceu um sistema de justiça, cujo centro é o Poder Judiciário e que conta com órgãos e instituições destinados à defesa de direitos individuais, coletivos e difusos. Como o STF permite a suspensão ou interrupção da greve de modo cautelar, com imposição de multas em valor elevadíssimo, fica inviabilizado o direito a discutir, num processo judicial equânime e justo, a greve, os motivos para sua deflagração, a postura dos atores sociais. Isso fica muito claro no caso da Petrobras. A decisão do presidente do STF se baseia unicamente em informações prestadas pela própria Petrobras. Nessa visão, basta que exista uma ameaça de greve para que a máquina repressiva entre em ação.
Nada é definitivo nesta greve dos petroleiros. Mesmo a orientação do STF, tão contrária à Constituição, não é unânime. Em um dos casos aqui citados (RE 693.456-RJ), houve quatro votos vencidos. Todos que acompanham as deliberações do TST, por sua vez, sabem que o tribunal está dividido quanto à interpretação de vários temas ligados aos direitos sociais, o que se refletiu no caso da greve dos petroleiros de 2019. Num momento em que a democracia brasileira enfrenta tantos riscos e ameaças, é fundamental que atores sociais requeiram às instituições, especialmente do Judiciário, o respeito à Constituição. É essencial, portanto, que os atores sociais do mundo do trabalho, especialmente os sindicatos profissionais, permaneçam no combate interno nos órgãos do Judiciário, explorando novas possibilidades, desvelando atitudes repressivas e autoritárias. Mas isso não é tudo.
Se o Constituinte de 1987/1988 reconheceu a centralidade da greve como direito fundamental, com certeza razões históricas e sociais foram determinantes para essa escolha. O impacto das greves desencadeadas entre 1978 e 1986 nos mais diversos setores da economia, a sua importância para as lutas pela redemocratização e o protagonismo dos sindicatos são páginas conhecidas e importantes de nossa história. Categorias tão plurais como metalúrgicos, médicos, professores, operários da construção civil e várias outras chamaram a atenção da sociedade, por meio da sua ação, e contribuíram de modo decisivo para a escrita de uma Constituição democrática.
No atual movimento dos petroleiros, uma vitória já foi conquistada. Com a cobertura da imprensa, a greve volta à ordem do dia. Um primeiro cerco – o do silêncio – foi superado. Outras escaramuças estarão no caminho dos trabalhadores e sindicatos envolvidos. Agora será o momento de demonstrar que a greve é um direito, um meio idôneo de reivindicar e lutar por melhores condições de trabalho. E contra todas as estratégias de deslegitimação e persecução, caberá sempre lembrar que a greve, antes de tudo, é uma prática social que reafirma a democracia e a cidadania.
Cristiano Paixão é subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.