“Gostaria que os aplicativos vissem a atividade do motorista de um outro ângulo”. Entrevista com Marcelo Carvalho, motorista e entregador de plataforma digital

Fotografia: Charles Deluvio/Unsplash

Seguindo a série de entrevistas com trabalhadores de aplicativos do projeto “Trabalhadores de Apps em Cena”, esta entrevista foi realizada com Marcelo Carvalho, motorista e entregador de plataforma digital em Porto Alegre- RS. 

Fotografia: Arquivo Pessoal

Confira a entrevista.

DANIELA MURADAS ANTUNES: O trabalho em plataformas vem acompanhado de narrativa do empreendedorismo. As empresas alegam que os trabalhadores atuam por conta própria e por isso assumem o custeio dos recursos para o desenvolvimento da atividade, tais como smartphones, veículos e contratos de seguro e outras despesas, inclusive as decorrentes da depreciação. Você se percebe empresário de si mesmo ou acredita que é um trabalhador e vive de sua atividade? Você conhece ou teve notícia de composição de custos para a sua atividade? Sabe qual é o ganho que o aplicativo obtém de cada operação? 

Eu acredito que eu sou um trabalhador e vivo da minha atividade, uma vez que eu não tenho como precificar os valores das corridas. Se eu conheço ou tive notícias de composição de custos? Se eu sei quanto que custa trabalhar como motorista de aplicativo? Sim, sim. Eu faço um controle dos gastos, né, pra poder saber o quanto real que eu ganho. [Ganho do aplicativo em cada operação] ela varia, né. Tem operações que ela tem um ganho de 18% do total da corrida. Tem corridas que ela fica até 40%. Então, eu tenho essa noção, porque vem no demonstrativo. Mesmo eu trabalhando só no cartão, por uma questão de segurança, eu tenho esse controle, eu faço esse controle. Por isso que eu sei que a tarifa tá muito baixa para o motorista trabalhar na atividade de aplicativo.

GUILHERME LEITE GONÇALVES: Nas últimas décadas, temos observado um processo intenso de privatização e mercantilização de serviços, bens e espaços públicos e coletivos. Com isso, trabalhadoras e trabalhadores se veem cada vez mais dependentes do mercado para satisfazer necessidades básicas (transporte, saúde, habitação, educação etc.). Como a remuneração ao trabalho é cada vez mais insuficiente, a pressão por obtenção de crédito junto a bancos tem sido cada vez maior. Trabalhadoras e trabalhadores de apps têm vivenciado esta dinâmica de expropriação e endividamento? Ela tem contribuído para a aceitação de condições ainda mais precárias de trabalho? 

Sim, sim. O motorista, ele não tem um controle do seu… não tem a noção do que se passa a sua volta, né. Então, como ele não tem é… ele tem dificuldade de conseguir uma colocação no mercado ou tá muito é… os valores tão muito baixo, ele acaba recorrendo aos aplicativos na esperança de poder conseguir um valor que seja decente ali, que ele consiga sobreviver dos aplicativos, que eles ficam ali mostrando uma facilidade, que tu pode fazer o seu próprio horário, pode fazer a sua própria renda. E aí o motorista acaba seduzido por essa flexibilidade e aí acaba indo pros aplicativos. [Endividamento] ah, o motorista se endivida sim. Ele se endivida bastante, porque a tarifa tá muito baixa e ele tem sempre aquela esperança de conseguir poder é… através desses valores, desse endividamento, conseguir, através dos aplicativos, honrar com os seus compromissos, né. E, no fim, ele acaba caindo numa armadilha. Ele fica num ciclo vicioso, porque, muitas vezes, as dívidas, o que ele consegue na rua é só pra pagar as dívidas. Ele acaba tendo que fazer mais dívidas pra poder trabalhar.

JOSÉ RICARDO RAMALHO: A solidariedade de classe é uma das características marcantes da história dos trabalhadores e dos sindicatos no capitalismo. Como a construção dessa solidariedade se coloca para os trabalhadores de aplicativos? Como se constrói uma identidade coletiva de resistência aos mecanismos de exploração exercidos pelas empresas? 

Essa mentalidade de coletivismo, a gente tem em algumas situações, né. Como tem vários motoristas que ganham diferente em regiões, então, o impacto é diferente. Então, cada motorista tem uma realidade diferente. Então, há motoristas que, na mesma cidade, tem uma promoção melhor do que os outros e outros nem promoção ganham. Então, o motorista, às vezes, com a tarifa muito baixa, trabalha pra pagar a promoção de um outro colega. Então, isso ajuda ao motorista: “Ah, eu ganho razoavelmente bem. Eu não vou nessa luta.” “Se tu não tá conseguindo fazer um valor que tu consiga sobreviver, é porque tu tá fazendo alguma coisa de errado, entendeu? Os aplicativos, eles dão incentivos, que é pra frear a desistência do motorista e incentivar que outros venham, através de alguns que ela, não sei qual é o critério, que ela dá uma promoção um pouquinho melhor e aí faz aquela sensação de que o motorista tá trabalhando, dá pra viver do aplicativo. E aí desconstrói este sentimento, né: “Oh, nós temos que se unir por uma tarifa melhor”. Sendo que, se tu ganha alguma coisa do aplicativo, tu acaba refém dele, né. Tu acaba desistindo até de uma paralisação ou de sequer conversar sobre isso, né, sobre melhorias na parte de segurança do aplicativo. Na parte não só de tarifas, né.  

MAGDA BARROS BIAVASCHI: Quem controla tuas atividades? Como prestas contas delas à plataforma e aos usuários do teu trabalho? Quem define o valor das corridas e o percentual retido à plataforma? Como é feito o controle do teu trabalho para fins de pagamento das atividades desenvolvidas? 

Quem controla as minhas atividades é o aplicativo, né. [Presto contas] à plataforma a cada corrida que eu faço. Tem também um controle de cancelamento. E, antigamente, era o desempenho, né. Hoje em dia é o controle de cancelamentos e aceitações. Ganha promoções através disso, através da nota, mas, principalmente, da aceitação e cancelamento. É o que define até o ganho da tua promoção. Promoções que ela anuncia, né, pra ajudar motoristas. Tudo isso. Ela tem esse controle, né. Os valores das corridas é decidido pela plataforma que é… ela afirma que é feita através do mercado, né, do valor do mercado. Então, como tem outras concorrentes, ela aplica a valores que ela… preço por minuto, Km e tarifa base. Agora tem outras cidades que ela tirou esse… seria um valor fixo. Então, hoje em dia, a gente depende da demanda. Se tem uma demanda boa, se tem uma demanda onde o passageiro pede bastante corrida, tu tens uns valores de corridas razoáveis. Se tiver em baixa demanda, o valor da corrida é muito baixo. É valores aí que o motorista tem prejuízo ao fazer a corrida. [Controle para fins de pagamento] é no cartão ou no dinheiro, né. Eu, como só trabalho no cartão, uma vez por semana, ela repassa esse valor pra mim. Eu tenho também a possibilidade de pedir é… eles demoram um minuto ou menos que isso pra me repassar o valor que eu ganho, quando eu faço no voucher, né, mas aí eu tenho que pagar 4,50 ou eu entro na conta da Uber Conta. Daí, eu tenho que me cadastrar. E aí é um modo de fazer a pessoa se cadastrar no banco digital da Uber, né. Ou eu vou ter que pagar 4,50 ou senão vou ter que esperar a cada uma semana esse repasse quando é no voucher.

MARIA CELESTE MARQUES: Considerando que se trata de um segmento profissional majoritariamente masculino, como você vê a possibilidade de uma maior abertura da atividade para outros gêneros? As plataformas digitais de entrega e de transporte têm fornecido alguma orientação sobre discriminação de gênero no ambiente de trabalho? 

Eu acredito que o aplicativo, ele incentiva mulheres, principalmente, a fazer parte do aplicativo. Até alguns deficientes, né, que possa ter a possibilidade de conseguir um carro, dirigir um carro adaptado. Ela tem essas propagandas, né. Tem o Uber mulheres. Tem outros aplicativos que também tentam trazer não só homens pra atividade, mas também mulheres pra trabalhar. Eu acredito que, como a segurança no aplicativo, ele é muito falho, diminui o interesse de mulheres de participar, de fazer atividade de motorista de aplicativo, principalmente, que, à noite, ela é mais lucrativa. Então, à noite, o motorista sofre muito mais risco de acontecer alguma coisa, algum sinistro, algum assalto. Então, a mulher, ela se sente… fora a questão do assédio. Mas ela tenta trazer mais motoristas, né. Não só homens, mas mulheres. Até por uma questão dela poder ter mais motoristas na plataforma. E a outra pergunta era? (…) Sim, sim. Ela tem podcasts, vídeos. Todas elas, né. Tanto a Uber quanto a 99Pop, mostrando como o motorista deve agir, independente de quem seja o passageiro. Então, ele tá sempre orientando o motorista pra… nessas situações, né. E, caso o motorista sofra alguma dessas discriminação, seja discriminado ou desrespeitado na sua atividade, o aplicativo dá total apoio e informação, caso a polícia precise. Então, dessa parte aí, a gente vê que tem o movimento do aplicativo, tanto do passageiro quanto do motorista, pra não haver desrespeito, discriminação dentro da plataforma.

NOA PIATÃ: Quantas vezes por dia você olha o celular em movimento, no trânsito, conduzindo o carro, a motocicleta ou bicicleta? 

É a todo momento. A gente tá  sempre  olhando no trânsito, né. O motorista, ele tem que se adaptar. Olhar o trânsito, olhar o celular e olhar também… conversar com o passageiro. A todo momento, tem que olhar o telefone, porque vem informações, não só … o teu navegador, às vezes, chama corridas. Claro que tu pode pausar o aplicativo. Tem essa ferramenta. O motorista tem a ferramenta de poder pausar a corrida, mas a gente sabe e ela mesma diz que, quanto mais tempo online tu ficar, mas tu ganha corridas, mas tem a possibilidade de ter corridas. Então, o motorista só em uma questão, assim, de segurança, ele dá uma pausa no aplicativo, senão ele tá, a todo momento, olhando sim, porque acessa essas informações que entra no aplicativo.

PHILIPPE OLIVEIRA DE ALMEIDA: Algumas pesquisas têm indicado que o faturamento diário de entregadores de aplicativos negros (pretos e pardos) é menor que o dos entregadores brancos. Isso se deveria a alguns fatores, como, por exemplo, obstáculos enfrentados no momento de entrar em prédios e condomínios fechados – exigência de apresentar documentos de identificação etc. –, o que “atrasaria” a entrega, e reduziria o número de “corridas”. Você já se sentiu discriminado, devido à sua cor de pele, em seu trabalho? Se sim, como aconteceu? O aplicativo te deu algum suporte, nessa situação? 

É… não, nunca tive, pelo menos, não presenciei. Eu nunca fui desrespeitado trabalhando no aplicativo. Eu já fiz entregas, já tive que entrar em condomínios e aí o porteiro faz ali … tem alguns condomínios que, sendo aplicativo, ele só pede o teu CPF ali e manda… te libera. Outros, tu tem que fazer o cliente vim até o motorista ou entregador, né. Mas eu nunca vi comigo acontecer. Já vi acontecer com colegas de não conseguir entrar no condomínio e o cliente, né, o que pediu a comida ou, sei lá, que fez o pedido, destratrar o entregador. Isso eu já vi. E o aplicativo poder entrar em contato com esse prestador de serviço ali, né, o entregador ou o motorista. Já aconteceu também com motorista ser desrespeitado dentro do carro. Já aconteceu e o aplicativo dar o suporte, mas é aquele suporte assim: “Ah, eu colaboro com as autoridades no que eles precisarem.” Formatação de dados, né. Agora exclusão da plataforma, no caso de comprovado, né, às vezes, o motorista mostra por filmagens ou o entregador mostra por filmagens ele ser discriminado ou desrespeitado, isso a gente não vê. A gente só vê, no outro lado, que, dentro da apuração pra ver se o motorista se excedeu ou o entregador, ele é bloqueado na hora. E não é desbloqueado depois que descobre que ele não foi o culpado. Agora, do outro lado, a gente vê que não é bloqueado, continua acessando a plataforma e desrespeitando a outros entregadores ou motoristas.

RENATA QUEIROZ DUTRA: Quando observamos os diferentes comandos que recaem sobre os entregadores e os motoristas por meio dos aplicativos, podemos perceber que consumidores podem fazer exigências e avaliações do seu trabalho. Como você se sente em relação às avaliações dos consumidores pelo seu trabalho? Na sua percepção, que consequências elas geram na sua relação com a plataforma e na sua percepção do seu trabalho? 

Olha, eu sinto que essa avaliação, ela não é honesta, por quê? Porque a avaliação que o passageiro tem que fazer é em questão do motorista: o modo como o motorista tá trabalhando, trata o passageiro, o modo que ele mantém o carro. E a gente vê que o passageiro, ele, cada vez mais, ele quer determinadas coisas que não é do serviço de transporte de aplicativo. É o passageiro querer que o motorista, muitas vezes, faça até mudança. E, quando tu diz não, quando tu diz: “Oh, isso não é. Faz parte…” Porque a gente tem uma política de conduta até do passageiro e não faz parte da plataforma, do serviço da plataforma. O passageiro é… ameaça muito o motorista a dar nota baixa. E isso que o motorista fica com essa ameaça, ele se sente… ele fica com medo de perder ali, ser bloqueado, porque o peso da reclamação de um passageiro é muito maior do que o do motorista. E, muitas vezes, ele é bloqueado, como eu falei. Sumário o bloqueio. Não tem uma conversa. Não tem um ouvir o outro lado. Então, o motorista acaba cedendo a algumas exigências dos passageiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS MARCELO CARVALHO: Ah, eu gostaria que os aplicativos vissem a atividade do motorista de um outro ângulo, de um outro modo, né. A gente vê que os aplicativos, eles têm a condição de melhorar as tarifas, porque a gente vê ele reajustar pro passageiro… e ficar com menos a porcentagem daquela corrida. Então, às vezes, numa corrida, o aplicativo fica com 40%, sendo que o motorista, que faz todo o serviço e arca com toda a despesa da atividade de motorista de aplicativo. Então, mais respeito com o motorista de aplicativo, porque ele faz um serviço essencial até pra a sociedade, porque a sociedade pôde incluir… o serviço de aplicativo incluiu mais pessoas. Pessoas até com uma condição é… de baixa renda a ter acesso a um transporte digno. Antigamente o valor de táxi era só quando a gente ia numa festa ou tava com uma emergência. Hoje tu pode ir pra casa num serviço de aplicativo. Um trabalho que é de qualidade, né, com um valor bastante acessível. Então, é um serviço que inclui a sociedade, muitas pessoas. Então, tem que ser olhado de outro ângulo. Ter um respeito também e olhares dos nossos governantes. Já que o aplicativo não tem esse senso de poder valorizar mais o motorista de aplicativo, não deixar em condições precárias, as nossas autoridades aí, nossos políticos, olhar e fazer medidas pra que esses desrespeitos ao motorista, ao trabalhador e entregadores não aconteçam.

Fonte: GGN
Texto: Daniele Barbosa
Data original da publicação: 15/04/2022

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