Gênero, quarentena e Covid-19: por uma crítica ao trabalho doméstico

Fotografia: Licia Rubinstein/Agência IBGE Notícias

A quarentena mudou nos últimos tempos o mundo do trabalho formal, informal, ilícito e autônomo, mas não alterou em nada, absolutamente nada, o trabalho doméstico, com apenas uma ressalva: ele agora é triplo dentro e fora de casa. Nosso trabalho nunca foi tão visível no sistema capitalista.

Joana das Flores Duarte

Fonte: Clacso
Data original da publicação: 17/04/2020

A quarentena tem sido, entre outras coisas, o lugar de reaparecimento (também forçado) do papel tradicional do gênero/sexo feminino. É fato que para muitas de nós – mulheres – o trabalho doméstico não é um episódio da quarentena, mas ela – a quarentena – nos dá elementos suficientes para pensarmos esse trabalho indispensável e invisível, no que se refere às relações de mercado. De fato, nós, mulheres, estamos (como usem habilidades) vivenciando o trabalho doméstico sem intermitência.

Muitas mulheres que já exerciam exclusivamente esse trabalho não remunerado, narram que estão mais exaustas, preocupadas e com a sensação de que são responsáveis pela não entrada do vírus na casa. Condição que se funda a partir da mistificação entre trabalho e cuidado no âmbito do lar, em que ambos são postos como indivisíveis e de caráter exclusivamente feminino. Em tempos de pandemia, esse trabalho torna-se redobrado, pois além das já existentes atividades de arrumar, limpar, estar disponível emocionalmente para o núcleo familiar, o vírus impõe uma nova sobrecarga, na medida em que demanda desse lugar de cuidado e trabalho, a sua eliminação. Nesse aspecto, acabar com um vírus invisível é análogo ao trabalho doméstico, porque ambos parecem não ter fim. Para se ter uma ideia, o processo de higienização dos alimentos e da casa, toma em média quatro horas diárias; para mulheres com filhos, esse trabalho é ainda mais desgastante.

Nota-se que a pandemia imprimiu um novo ritmo de trabalho às mulheres que estão realizando o confinamento forçado e as que estão saindo para trabalhar (área da saúde, serviços essenciais e trabalho doméstico remunerado). Sobre esse aspecto, importa destacar que, muitas dessas mulheres estão trabalhando na função de empregadas domésticas, em que saem de suas casas, para desempenharem o trabalho de forma remunerada na casa de suas empregadoras.

Falando um pouco sobre a realidade da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, essas mulheres se deslocam (média de 2h30 cada deslocamento) das áreas periféricas e pobres da cidade, em que há falta de moradia digna (casas com média de 20 a 40 metros quadrados por família com média de 5 membros) saneamento básico; entre eles, água potável e devidamente encanada, rede de esgoto e coleta de resíduos domésticos. Boa parte delas são chefes de família, com filhos, negras e vivem em habitações que o Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) denomina de aglomerados subnormais. Portanto, são espacialidades cuja característica é marcada pela falta de intervenção do Estado brasileiro no tocante à garantia ao direito humano à proteção social. Essas mulheres descolocam-se dessas comunidades para trabalharem nas áreas mais nobres da cidade.

Sobre essa realidade, a morte no último dia 17 de março de 2020, da empregada doméstica de 62 anos, na cidade do Rio de Janeiro (primeiro caso confirmando de óbito por covid-19 na cidade), é o retrato dessa trágica realidade social. A senhora, que trabalhava de segunda à sexta (inclusive, dormia no trabalho) com folgas no final de semana, era residente do Bairro Miguel Pereira (100km de distância da capital) e trabalhava no bairro do Leblon – cujo valor do metro quadrado de um apartamento custa em média 30 mil reais (USD 5.636,97, aproximadamente). Idosa, hipertensa e diabética, portanto, pertencente ao grupo de risco, a idosa passou mal no trabalho e alegou ao chegar ao hospital que estava cuidando da patroa que regressara da Itália com o vírus. A senhora de 62 anos morreu sem que fosse dada a ela, na condição de empregada, direitos ao trabalho assegurado. Isso implica pensar como as relações de cuidado e trabalho são apropriadas pelo capital, bem como a desigualdade de classe está intrinsecamente vinculada à de raça e gênero, a partir da relação entre empregada e empregadora. Quanto ao regime de trabalho da senhora morta por Covid-19, não se teve acesso por meio das informações divulgadas, mas seguindo as estatísticas, não se refuta a possibilidade de vínculo informal.

Mesmo com a Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, a falta de regularização e garantia de direitos está longe de ser superada, mais de 70% das que desempenham nessa atividade estão na informalidade é o que aponta os dados do IBGE sobre o perfil das trabalhadoras domésticas divulgados em 2018. Ainda segundo o Instituto, desde outubro de 2015, quando passou a ser obrigatório o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as domésticas sem carteira assinada passaram de 4,2 milhões para 4,4 milhões (BRASIL, 2018).

Silvia Federici (2019), em estudo sobre trabalho doméstico, convida-nos a pensar esse processo, não de forma isolada, como algo “natural” realizado pela mulher, e sim como estratégia de acumulação e reprodução do capital no curso da história e o seu caráter geracional:

Não existe nada de natural em ser dona de casa, tanto que são necessários pelo menos vinte anos de socialização e treinamentos diários, realizados por uma mãe não remunerada, para preparar a filha para este papel, para convencê-la de que crianças e marido são o melhor que ela pode esperar da vida (Federici, 2019, p. 43).

Não por acaso, do modelo retrógrado casa grande e senzala romantizada por Gilberto Freyre às casas contemporâneas, o trabalho doméstico feminino reproduz-se em larga escala. Nele é possível ver mulheres trabalhando para outras mulheres, o que nos permite afirmar que a divisão sexual de classe, raça e gênero está em todos os lugares. Para que eu possa “abrir mão do trabalho doméstico”, há que existir nesse modelo de compra e venda da força de trabalho uma outra que ocupe o meu lugar. São as laivas desse sistema que, ao mesmo tempo em que dá um suspiro de emancipação para algumas, aprisiona e super explora tantas outras.

Quero dizer que a quarentena mudou nos últimos tempos o mundo do trabalho formal, informal, ilícito e autônomo, mas não alterou em nada, absolutamente nada, o trabalho doméstico, com apenas uma ressalva: ele agora é triplo dentro e fora de casa. Nosso trabalho nunca foi tão visível no sistema capitalista. Precisamos como nos disse Virginia Woolf matar o Anjo do Lar, porque ele é um dos responsáveis pela mistificação entre cuidado/afeto e trabalho. Não se pode negar, a partir desses elementos, que o deterioramento do trabalho doméstico é produto de uma perspectiva neoliberal que produz a partir das relações desiguais entre sexo/gênero, o discurso, a sociabilidade, e a estética do cuidado como expressão exclusiva da mulher, dotada de feminilidade, e a partir disso busca determinar o lugar e os sujeitos nas relações sociais de forma hierarquizada.

Por fim, não há possibilidade de pensar a emancipação política e humana das mulheres sem rever a dimensão de classe e raça no trabalho doméstico remunerado e não remunerado. Nas relações sociais capitalistas há quem interprete como mundo do trabalho precário, e que entre uma mulher negra trabalhar como doméstica e/ou não trabalhar, a primeira opção é “menos pior”, mas se sabe que “menos” e “pior” juntos não se sustentam de um ponto de vista lógico, por isso seu uso aqui também é negado. Por certo, em termos de sobrevivência, essa é uma verdade, mas é justamente sobre essa lógica apaziguadora que se lança crítica. Sobreviver guarda relação com sobra, com o que há de residual. Por isso, desmistificar o trabalho doméstico enquanto atributo feminino implica conhecer o seu peso político e seus entraves na emancipação política e humana de todas as mulheres.

Referências

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em: abril de 2020.

DUARTE, Joana das Flores. Despossuídas do Século XXI: Mulheres no mercado de drogas no Brasil na última década (2006-2016). Programa de Pós-Graduação em serviço Social. Tese. Doutorado. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9067. Acesso em: abril de 2020.

FEDERICI, Silvia. O ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de ColetivoSycorax – São Paulo: Elefante, 2019.

Joana das Flores Duarte é integrante do Grupo de Trabalho Clacso “Feminismos, resistências e emancipação”.

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