Em 1 de julho de 2020, o primeiro grande “Breque dos Apps” chocou o país. Neste dia histórico, milhares de entregadores de aplicativos, em 13 estados do país e no Distrito Federal, paralisaram suas atividades por melhores condições de trabalho.
Entre as reivindicações, os trabalhadores e trabalhadoras pediam às empresas de tecnologia, que controlam o setor de delivery, um aumento no valor pago por entrega e a garantia de medidas de proteção contra a covid-19.
Oito dias após o “Breque dos Apps” a página Não Breca Meu Trampo foi criada no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, revelou uma das pessoas que acompanhou o processo.
A atuação de agências de publicidade contratadas pelo iFood para desarticular o movimento dos entregadores e motofrentistas foi revelada em reportagem exclusiva divulgada pela Agência Pública.
A revelação gerou grande repercussão nas redes sociais, e levou indignação para os motofretistas que estão na linha de frente das mobilizações.
Um dos casos mais emblemáticos aconteceu no dia 16 de abril de 2021, em um ato em frente ao estádio do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo. No local, um suposto manifestante exibia adesivos que pediam “vacina pros entregadores de aplicativo já”.
O homem, segundo as provas obtidas pela reportagem, era funcionário de uma das agências e tinha o objetivo de usar a pauta da vacinação prioritária para confundir os manifestantes, esvaziando o movimento de greve.
Em meio a este cenário, o Brasil de Fato conversou com Altemicio do Nascimento, que há 30 anos percorre as ruas da cidade de São Paulo. Liderança ativa das últimas paralisações, o motofrentista era um dos presentes no ato em frente ao Pacaembu.
“Ele era um ator contratado pelo iFood. Brincando com a gente, com a sensibilidade das pessoas”, lamenta Nascimento.
“Nós perdemos muitos amigos, perdemos parentes, amigos motoboys e o cara lá reivindicando uma coisa, sendo que ele era da plataforma”, completa.
Atualmente, o aumento da remuneração das corridas e rechaço à alta no preço dos combustíveis são as reivindicações que unem a categoria em mobilizações ao redor do país.
Em rotinas de nove a 12 horas diárias de trabalho, em geral com apenas um dia de descanso na semana, os entregadores e motofretistas têm uma renda média de R$ 1.172,63 mensais, segundo pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
“O motoboy foi o soldado na guerra. Na pandemia, muitas pessoas aplaudiam a gente. Mas só que hoje nós estamos sozinhos, e precisando de apoio”, reivindica a liderança.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Altemício, você ficou surpreso com a reportagem divulgada pela Agência Pública, que revelou como agências de publicidade atuavam em favor do iFood para desarticular as mobilizações da categoria?
Altemicio do Nascimento: Nós ficamos muito frustrados. O cara estava no Pacaembu no meio de todos os manifestantes pedindo vacina. Isso aí é uma falta de ética muito grande no iFood, isso é uma falta de sensibilidade muito grande com nós, porque nós perdemos muitos amigos, perdemos parentes, amigos motoboys e o cara lá reivindicando uma coisa, sendo que ele era da plataforma. Ele era um ator, contratado pelo iFood, pô. Brincando com a gente, com a sensibilidade das pessoas. Nós não recebemos a vacina por parte do iFood, entendeu? E o cara lá protestando junto com a gente, com faixas, pedindo vacina, a gente apoiando o cara, e quando foi ver a publicidade era do próprio iFood.
Em meio à pandemia, conseguir se alimentar corretamente foi – e ainda é – um desafio diário na vida dos entregadores e motofretistas. Como você vê esse cenário no dia a dia?
No começo da pandemia foi bom, nos primeiros três, quatro meses. Mas aí, o iFood começou a fazer promoções, liberar muitas contas. Quem fazia dez, doze, treze entregas, passou a fazer quatro, cinco no dia. Aí ficou muito difícil para gente se sustentar nos últimos meses da pandemia, financeiramente, na rua para a alimentação, gasolina, tudo. Inclusive a gasolina foi aumentando, entendeu? Ficou muito difícil. Porque o iFood encheu a plataforma de entregadores. Cada esquina que você passava você via vinte, trinta caras.
Mas o trabalhador tem que buscar o sustento da família dele, né? Quem tem o seu pequeno, se ele chorou por um leite, ou se precisar comprar um pão ou uma mistura, o cara vai. Mesmo que ele faça cem reais das 8h às 10h da noite. Mas ele vai. Porque ele tem necessidade disso, né? Não vai deixar a família dele com fome. E praticamente só tinha os aplicativos, né? Porque as empresas fecharam tudo, escritório, tudo, não tinha circulação de mercado, só entregar comida mesmo. Aí ficou muito difícil.
As coisas aumentaram muito. E para você fazer R$ 150, R$ 200 reais (diários), você tem que trabalhar das 10h da manhã até onze, meia-noite. Para você almoçar, tomar um refrigerante, ou uma água, alguma coisa, você vai gastar na média de R$ 30 por dia. Aí vem o combustível, que está muito caro. Você não tem como bancar isso. Se você colocar tudo na ponta do lápis, o custo fica muito alto.
Tudo é seu: internet, telefone, manutenção de moto, combustível, óleo. Então, você tem que cortar algumas despesas. Tenho amigos que ficam com fome, porque não tem dinheiro para comprar alimento na rua. Às vezes a gente ajuda. A gente está ali no meio de todo mundo e pergunta: ‘ó, você almoçou? Não, não almocei’. Aí, a gente faz uma vaquinha e paga o almoço do cara. Está muito caro comer na rua.
E a alta do preço do combustível, como foi sentida pelos entregadores?
A gasolina subiu quatro vezes esse ano praticamente. O último aumento que teve agora foi de 26%. E o iFood não reajusta nossas taxas, praticamente desde quando abriu a plataforma. Tem amigos meus que ficam terça, quarta e quinta em casa. Porque hoje para você encher um tanque de uma moto, igual eu enchi o meu domingo, gastei R$ 93. Você encheu o tanque duas vezes, três vezes na semana, já são quase R$ 300. Então, não compensa. Aí a gente pega firme sexta, sábado e domingo. O iFood aumentou as nossas taxas agora, para R$ 1,50 por quilômetro rodado.
Mas só que a gente teve um problema. Eles aumentaram R$ 1,50, mas a gente tinha uma taxa alta de sábado até segunda-feira três horas da tarde. Uma corrida que era R$ 9 de segunda a sábado, antes das 18h, no sábado após as 18h, já custava R$ 15 reais. Então, eles aumentaram a quilometragem para R$ 1,50, mas eles tiraram nossa taxa. O iFood deu com a mão e tirou com a outra. Você sai de casa em um domingo, você larga a sua família, você larga a esposa, larga filho, você não tem aquela coletividade de um almoço de domingo com sua família para ir trabalhar. Então os caras tem que remunerar bem, né?
Agora em relação ao Breque dos Apps, em 2020. Como eram as condições de trabalho e o que motivou a mobilização histórica?
O iFood começou a bloquear muito pai de família, né? Começou a bloquear muitas pessoas, todos meus amigos também começaram a reclamar comigo pelo bloqueio. O bloqueio acontecia assim: o cliente faz um pedido no iFood, às vezes chegava frio, o restaurante demorava, aí o iFood não ligava para o trabalhador, ele já bloqueava o cara. Aí começou essa revolução, essa revolta toda, porque os caras estavam usando a gente como descartáveis. Porque qualquer reclamação do cliente eles bloqueavam e não queriam saber. Aí foi quando começou essa guerra. A gente foi para a Paulista pedir o código de verificação.
Hoje tem o código de segurança, que são os quatro últimos números do telefone que dá mais transparência para o produto que o cliente recebeu. Se ele me deu o código, ele recebeu o produto, entendeu? Ficou um pouco mais transparente para os entregadores.
Atualmente, quais os desafios para unificar a categoria?
Não é todo mundo que adere à greve, mas eu também compreendo. Nós estamos numa fase difícil. O cara tem aluguel. Às vezes tem motoboy que tem pensão para pagar. Ou uma parcela de uma moto. O cara fala ‘ah Nascimento, eu não posso parar’. E você tem que concordar com o cara. Por quê? O cara está apertado. Porque o próprio aplicativo fez isso com a gente. Antes, a gente tinha condições de guardar um dinheirinho, de comprar uma moto. Você está entendendo? Cobrir as despesas, que eram muito altas. Então você entende o lado da pessoa também. E a gente vai conversando, conversando, pedindo apoio.
Não temos apoio financeiro nenhum. São os próprios motoboys que se reúnem. Cada um dá vinte reais, dez reais, quinze reais, vinte reais para fazer os panfletos, fazer tudo. O que eu pediria é que os artistas famosos, que apoiassem mais a gente. Porque nós fomos muito essenciais na pandemia. O pessoal ficou com medo de sair de casa e nós saímos de casa para ajudar o Brasil. O motoboy foi o soldado na guerra, como diz o velho ditado.
Na pandemia, muitas pessoas aplaudiam a gente. Mas só que hoje nós estamos sozinhos, e nós estamos precisando de apoio. Principalmente dos artistas, dos famosos, que estão apoiando a greve, que apoiem mais a gente. Pode ser financeiramente com panfleto com tudo, entendeu? Para unir os motoboys.
Como você avalia a forma de se relacionar com as empresas hoje em dia? A digitalização das relações de trabalho trouxe avanços?
Falamos com o robô. A gente até brinca: ‘é o Jhow’. O Jhow não tem coração. Eu acho que deveria ser colocado um atendimento ao público. Para você ir lá se explicar. Ter mais transparência com a gente. Quando acontece algum problema no produto, eles ligam para você rapidamente. Dois segundos o cara já te liga perguntando: ‘pô Nascimento, Paulo, Fulano, o que aconteceu?’ Então, quer dizer que eles tem como falar com a gente. Mas nós não temos como nos comunicar com eles.
Nós estamos no século 21, a gente entende que chegou a digital, chegou tudo. Está tudo moderno. Mas pô, se o cara tem uma plataforma, ele tem que ter um suporte para o trabalhador reclamar, para o trabalhador expor seu dia a dia. Não pode ficar diretamente no celular. Tem que ter uma base. E eles tem que fazer uma base para atender o funcionário. Você bloquear um pai de família, você sabe o que isso acarreta na vida de uma pessoa, o transtorno que traz para o trabalhador o iFood bloquear o cara. O cara tem família, tem filhos, às vezes tem criança especial, que ele cuida todo dia. Aquilo sobe para a mente do cara.
Então tem que ter um suporte para a gente. Eu entendo que chegou a digital. E nós estamos aí também, acompanhando tudo isso. É bom pra todos. E até para os clientes também. É mais prático, né? Mas, a empresa deveria ter uma transparência com a gente. Eu concordo com toda a modernização que está acontecendo, mas tudo ficar sobre um celular não tem como. Aí, a gente fica praticamente descartável, né?
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Pedro Stropasolas
Data original da publicação: 07/04/2022