Com o auxílio emergencial, parte da população viu sua renda crescer acima do que era antes da pandemia e assumir a forma, inédita para muitos, de um fluxo constante e previsível. Aumentou a compra de bens com demanda represada, mas esse cenário não se sustenta.
Emilio Chernavsky
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 23/11/2020
Há meses o governo empurra com a barriga a decisão sobre se e como substituirá o auxílio emergencial, hoje pago a dezenas de milhões de trabalhadores no país, quando ele se encerrar no fim do ano como prevê a lei em vigor. Nesse período vários balões de ensaio com propostas foram lançados. Em todos, os benefícios alcançariam no máximo a metade do valor do auxílio emergencial original e muito menos pessoas seriam atendidas. Ainda, eles seriam custeados com recursos hoje usados para pagar outros benefícios, que acabariam, ou precatórios, que seriam adiados, ou, ainda, oriundos do Fundeb ou de um novo tributo.
Diante das reações negativas e da proximidade das eleições municipais, o governo nada anunciou e, na última segunda-feira 16, seu líder na Câmara, dep. Ricardo Barros (PP-PR), confirmou que a decisão somente será tomada após o segundo turno das eleições [1]. Em claro estelionato eleitoral para beneficiar seus apoiadores, o governo, ao manter o assunto em evidência sem, contudo, apresentar nenhuma proposta concreta, permite que a maioria dos atuais beneficiários acredite que continuará a receber um benefício e, ao mesmo tempo, evita que grupos possam se ver como prejudicados.
Este estelionato acompanha outro engodo, o da retomada iminente da economia, que o governo promete desde o início do mandato. E que é ainda um engodo a despeito dos indicadores recentes positivos, porque a retomada que eles sugerem, longe de consistente como pretende o governo, é precária, e assentada basicamente na transferência direta de volumes absolutamente inéditos de recursos financeiros, em especial por meio do auxílio emergencial.
O auxílio, recebido por uma população em sua maioria de baixa renda que consome praticamente tudo o que ganha, possui impacto quase imediato sobre o consumo, como mostra o gráfico abaixo da evolução das vendas no varejo. Nele, vemos a sensível queda das vendas em abril provocada pela queda súbita da renda provocada pelas medidas de combate à pandemia. Mas vemos também que essas vendas passaram a crescer já em maio, na esteira do pagamento do auxílio emergencial a partir da segunda quinzena do mês anterior, que alcançou dezenas de milhões de pessoas em poucas semanas.
Isso permitiu que as famílias retomassem, a despeito do forte aumento dos preços [2], parte dos gastos com alimentação, como mostram as vendas dos hiper e supermercados. Mais notável, entretanto, é que permitiu a forte expansão das vendas de material de construção e de móveis e eletrodomésticos, além de tecidos, vestuário e calçados (não mostrados no gráfico).
Com o auxílio emergencial, parte da população não só viu sua renda crescer acima do que era antes da pandemia, como assumir a forma, totalmente inédita para muitos, de um fluxo constante, previsível e concentrado no tempo. Este, em boa parte, se destinou justamente à compra desses bens cuja demanda, há anos represada, disparou.
A expansão das vendas levou ao crescimento da produção nos respectivos ramos industriais, gerando números positivos em outros indicadores de atividade e, inclusive, produzindo situações localizadas de falta de insumos, interpretadas por alguns como sinal de retomada. Na verdade, elas refletem anos de baixo investimento na indústria e o fechamento de linhas e unidades produtivas ao longo de suas cadeias. De todos os modos, tais situações, apenas concebíveis com a demanda aquecida, dificilmente se repetirão nos próximos meses.
Isto porque já em setembro as vendas no varejo pararam de crescer, o que não surpreende dado que nesse mês o valor do auxílio caiu pela metade. Até o final de ano, a manutenção do benefício, mesmo com valor menor, e a tênue recuperação no mercado de trabalho formal, devem garantir a sustentação das vendas ou, ao menos, impedir quedas maiores. No entanto, se em 2021 o auxílio não for prorrogado ou substituído por outro programa de transferências de grande alcance, dificilmente a renda das famílias e, assim, o volume de vendas registrado nos últimos meses, se manterão. Com menores vendas, a produção permanecerá estagnada ou cairá e a situação do mercado de trabalho continuará angustiante.
Sem nenhum anúncio oficial sobre o futuro do auxílio emergencial, o país se aproxima do segundo turno das eleições no dia 29. Se a maioria dos beneficiários seguir até lá acreditando que continuará a receber um benefício, o estelionato eleitoral terá alcançado o objetivo pretendido pelo governo. Já o engodo da recuperação iminente da economia, embora cada vez mais questionado, continuará a ser alimentado, dado seu papel fundamental para justificar a continuidade da agenda de reformas do governo, que promete a trilha do desenvolvimento virtuoso começando sempre depois da próxima reforma.
Notas
[1] https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/11/16/decisoes-sobre-reforma-tributaria-e-renda-cidada-ficam-para-depois-do-2o-turno-diz-lider-do-governo.ghtml [2] Em maio, a inflação (INPC) da alimentação no domicílio acumulada no ano era de 4,53%, contra um índice geral de apenas 0,06%.Emilio Chernavsky é doutor em economia pela USP.