“Estamos vendo um processo de destruição do capitalismo brasileiro”: entrevista especial com Denis Maracci Gimenez

Denis Maracci Gimenez. Fotografia: Enamat

por Igor Natusch

Um austericídio. É assim que o economista Denis Maracci Gimenez, diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) do Instituto de Economia da Unicamp, descreve as políticas de ajuste fiscal capitaneadas pelo atual governo federal, em especial as que envolvem a Reforma da Previdência. Na visão de Gimenez, a Reforma da Previdência não só não vai entregar os números extravagantes e as promessas de retomada de desenvolvimento alardeadas pelo ministro Paulo Guedes, como representará o rompimento do pacto de proteção social concretizado na Constituição de 1988. 

Propostas como a adoção de um regime de capitalização, semelhante ao do sistema previdenciário do Chile, trariam em si um recado claro: que cada um cuide de sua vida, pois o governo não cuidará mais da vida de ninguém. Perspectiva terrível para a massa trabalhadora de um país marcado pela desigualdade, pobreza e por altos graus de informalidade e rotatividade de emprego. A alternativa razoável, afirma o economista do Cesit, está em propor mudanças que levem em conta o espírito do texto constitucional e as transformações no mundo do trabalho, financiadas a partir da mudança na estrutura tributária brasileira.

Gimenez conversou com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT em agosto, enquanto cumpria agenda em Porto Alegre (RS). Em sua leitura, o Brasil avança de forma acelerada em um processo regressivo, que coloca em risco não apenas a velhice de trabalhadores e trabalhadoras, mas a capacidade de desenvolvimento do país e seu mercado interno como um todo. É preciso, diz o professor da Unicamp, definir se a sociedade brasileira é capaz de suportar uma desorganização dessas proporções – discussão que estaria sendo interditada pelos mais recentes governos do país, em nome de uma agenda liberal que ele define como fundamentalista. “Estão enganando o povo brasileiro. Nada do que está sendo feito aponta para lugar algum, a não ser para a deterioração do quadro já bastante ruim em que nós vivemos”, defende. 

DMT – A chamada Reforma da Previdência está avançando no Congresso Nacional. Qual a sua leitura a respeito das consequências que uma eventual concretização da reforma trará ao Brasil?

Denis Maracci Gimenez – Na minha leitura, trata-se do rompimento do pacto firmado pela sociedade brasileira na Constituição de 1988. Naquele ambiente de redemocratização do país, a sociedade brasileira decidiu criar um sistema de seguridade social que fosse capaz de proteger o cidadão brasileiro de riscos característicos de uma sociedade urbana industrial. Ali consolidou, por exemplo, o programa de seguro desemprego (que foi criado um pouco antes, já no governo Sarney), consolidou a assistência social, a previdência social, políticas de saúde, benefícios de prestação continuada. Tudo isso procurando dar conta, em um espectro mais amplo, da construção de um sistema de proteção social no Brasil, que tinha sido bastante negligenciado pelo regime militar. Não que os militares não tenham feito nada em termos de política social, mas seguramente, pelas condições de crescimento da economia, de expansão material no país nas décadas de 1960 e 1970, as possibilidades eram muito maiores do que aquilo que foi feito. Então, esse ambiente da década de 1980 trouxe exatamente essa discussão sobre esse resgate da dívida social, a ponto de nós criarmos não apenas as políticas, mas uma estrutura da seguridade social, montada em cima de um orçamento próprio. Isso está lá dentro do Orçamento Geral da União, o orçamento da seguridade social.

As reformas agora propostas atacam, ou pelo menos transformam, os pilares e pressupostos fundamentais que eu acabei de mencionar. Princípios como a integralidade do atendimento e a irredutibilidade dos benefícios são alvos dessa ruptura. E uma pauta que eu acho decisiva, que chama a atenção realmente, é você romper com o regime de repartição e propor à sociedade brasileira uma transição a um modelo de capitalização. Algo que, a meu juízo, talvez expresse na essência o que está sendo proposto neste momento: que cada cidadão cuide de si mesmo. Ou seja, algo completamente ao contrário do espírito da Constituição de 1988, que é mesmo espírito que constituiu os Estados de bem-estar social da Europa: a ideia de cidadania, de que ninguém está sozinho, que você está integrado à sociedade e, portanto, todos os cidadãos são responsabilidade de todos os cidadãos. A capitalização, na verdade, expressa uma outra dimensão, de que cada um deve cuidar de sua vida. E isso, na minha opinião, é uma regressão histórica de grandes proporções. Nenhum outro país, neste momento, experimenta algo parecido.

DMT – Então, talvez até antes do debate a respeito das medidas em si, teríamos uma questão de fundo, que é a mudança de um paradigma?

Gimenez – Exatamente. Mesmo porque é uma discussão muito, digamos assim, pobre quando você recorta o debate em torno do déficit ou da ausência de déficit da previdência social, dos gastos… Na verdade, o compromisso firmado pela sociedade brasileira 30 anos atrás é o seguinte: nós vamos proteger os nossos idosos e todos aqueles que necessitem de proteção da sociedade. E essa decisão antecede todas as demais perguntas: como financiar, como estruturar esse sistema… Quais mecanismos necessários para cumprir esse objetivo. O que está sendo rompido neste momento, na minha opinião, é este compromisso. Se for possível ter proteção, essas pessoas terão proteção; se não for possível, elas terão que padecer de todas as dores e problemas de uma sociedade urbana industrial.

DMT – Os defensores da reforma da Previdência, nos moldes atualmente propostos, batem muito na tecla de que essas medidas são o ponto de partida para o equilíbrio fiscal do Brasil. Aquela ideia de que é possível poupar R$ 1 trilhão em dez anos… Se a melhora nas finanças públicas é o grande objetivo, faz sentido começar pela Previdência?

Gimenez – Seguramente há problemas no sistema previdenciário brasileiro e no orçamento da seguridade social. Isso está fora de questão. O que eu acho é que, se você parte da ideia de que o problema fiscal está centrado aí, você cria, no fundo, um véu ideológico que esconde aquilo que é essencial à discussão sobre o problema fiscal no Brasil.

Em larga medida, a maioria dos problemas fiscais que estamos enfrentando são oriundos da estagnação da economia. Estamos há cinco anos sem crescer, com dois anos de queda do PIB, este ano novamente os indicadores apontam o Brasil entrando em recessão – aliás, penso eu que já está em recessão. Portanto, o que eu estou dizendo é o seguinte: não há a menor possibilidade de termos melhorias efetivas nas condições fiscais sem o país voltar a crescer, sem a economia voltar a gerar emprego. Porque é o desempenho econômico que, em larga medida, determina as condições fiscais, e não o contrário, condições fiscais abrindo condições para o crescimento. Não é assim. Se você dá centralidade à questão fiscal desta forma, você tenta fazer um ajuste que se transforma em um austericídio. Porque, quanto mais você corta, mais você tem que cortar. 

Nós vimos isso na prática, vimos como foi desastrosa a experiência no segundo mandato da presidente Dilma na tentativa de fazer o ajuste desta forma. A política conduzida pelo ministro Joaquim Levy produziu mais de 6 milhões de desempregados em poucos meses. Isso foi continuado pelo ministro (Henrique) Meirelles e isso vem sendo continuado, agora, pelo ministro Paulo Guedes. Portanto, essa pauta de austeridade ideológica, sem base real, só piorou as contas públicas no Brasil nos últimos tempos. Se você olhar o período de crescimento entre 2004 e 2012, com os problemas fiscais, mesmo com a expansão do gasto, na verdade, nós tivemos superávit primário permanentemente. A relação dívida-PIB caiu, todos os indicadores fiscais melhoraram por força do crescimento, e não de reformas que são feitas, em meu ponto de vista, muito mais em nome de um fundamentalismo ideológico do que propriamente pautadas em experiências concretas de execução de política econômica.

DMT – É interessante essa sua colocação, já que o argumento muitas vezes surge na direção contrária, de que as defesas de Previdência ou da CLT é que seriam fruto de ideologia. Que os que se opõem às reformas é que estariam desligados da realidade.

Gimenez – Eu não estou dizendo que o marco regulatório do trabalho no Brasil seja perfeito, longe disso. O mundo do trabalho tem mudado, há transformações importantes e eu acho que nós temos que ter sempre esse espírito crítico, aberto a possibilidades de adequação. Mas partindo sempre do pressuposto de que a discussão tem que ser baseada no tipo de sociedade que você quer criar.

E esse fundo ideológico é tão forte que, por exemplo… Mesmo a ideia de déficit da Previdência. No meu juízo, tecnicamente, isso está errado. Porque a Previdência no Brasil foi pensada, a partir da Constituição de 1988, de forma integrada a um sistema de seguridade social, com orçamento próprio e fontes de receita variadas. Temos receita própria do INSS, renda de loterias, contribuições sociais. Uma base de financiamento com diversas fontes, para enfrentar riscos diversos relativos à seguridade social. Então, do ponto de vista dos gastos, estão lá os benefícios previdenciários, urbanos e rurais – porque o pacto que a sociedade brasileira estabeleceu na Constituição de 1988 também decidiu proteger os trabalhadores rurais. Isso era uma dívida histórica de larga proporção. E se criou um mecanismo de financiamento para fazer frente aos benefícios rurais, como, por exemplo, os benefícios de prestação continuada. São receitas diversas enfrentando riscos diversos de uma sociedade marcada por nossas especificidades: muita desigualdade, muita pobreza, uma herança rural bastante significativa, um mercado de trabalho muito heterogêneo… Nós não estamos na Suécia, não estamos na Inglaterra, então, é um sistema muito pensado a partir das nossas especificidades.

Isso é importante que seja dito: nós montamos um sistema de Previdência Social para tentar proteger nossos idosos, que têm, em regra, uma vida laboral muito instável em um mercado de trabalho fundado em baixos salários. Então, se você olhar hoje, se você pegar os dados da PNAD 2017, por exemplo, metade dos trabalhadores brasileiros ocupados ganhava até R$ 1.300,00. Não passa pela cabeça de ninguém com algum juízo, e que não tenha um fundo ideológico descolado da realidade, que seja possível você oferecer proteção social a essas pessoas por um regime de capitalização. Não é possível.

DMT – Quando se fala em economizar com a Previdência, o que está se dizendo de fato, na sua leitura?

Gimenez – Olha, o custo de transição de um regime previdenciário é muito difícil de dimensionar, tanto no Brasil quanto em qualquer parte do mundo, particularmente saindo de um regime de repartição para um regime de capitalização. Essa tese de economia de R$ 1 trilhão é baseada em números absolutamente duvidosos, questionáveis. Porque você faz uma projeção de dez anos, e você não sabe o que vai acontecer na economia em dez anos. Na minha opinião, isso tem um caráter muito pouco técnico. E mesmo uma experiência bastante alardeada pelo ministro Paulo Guedes, que foi a experiência chilena, na verdade mostrou-se desastrosa, tanto em termos de transição de regime como depois, na sustentação. O que nós assistimos hoje no Chile é uma parte dos chilenos sem aposentadoria, e aqueles que estão recebendo acabam sendo, em larga medida, amparados por recursos públicos. A reforma da previdência chilena custou muito na transição do regime e agora está custando muito para sustentar um regime que não funciona.

Nenhum dos países que vêm discutindo seriamente os problemas previdenciários, hoje, parte dessas premissas. Há questões importantes que poderíamos discutir, sem dúvida nenhuma, que poderiam apontar para uma reforma de espírito democrático, no sentido da proteção integral do cidadão.

DMT – Quais seriam essas questões?

Gimenez – Há mudanças profundas em andamento no mundo do trabalho e no mercado de trabalho. Todos os sistemas previdenciários no mundo foram pensados tomando como premissa o trabalhador experimentando uma carreira estável, em um modelo que vem da Segunda Revolução Industrial, quando houve a organização das relações industriais com o Estado e a construção de mercados de trabalho mais organizados. As mudanças dos últimos 30 ou 40 anos, de fato, colocaram em xeque esse padrão. Então, todas as discussões mais avançadas neste momento sobre a questão da velhice apontam, na verdade, para dissociar renda do trabalho, com a oferta de uma renda universal. Porque você dificilmente vai ter um trabalhador francês ou inglês que tenha 40 anos seguidos de contribuição, com estabilidade. É uma discussão que na Europa, por exemplo, está sendo travada de maneira muito séria. A economia mudou, e, particularmente nas mudanças mais recentes da indústria 4.0. e da manufatura avançada, isso vai acarretar mudanças severas no mercado de trabalho que vão radicalizar o que a gente chama de redundância do trabalho. No fundo, o que se está dizendo é que talvez não tenha emprego para todo mundo, mesmo. Então, a partir disso, que tipo de previdência social é possível pensar? Seguramente não vai ser a previdência dos anos 1950 e 1960.

Cada vez teremos menos de certas condições no mercado de trabalho que permitam ao sujeito participar ativamente como contribuinte, e isso se aplica também aos patrões. O sistema tripartite, na minha visão, está em xeque. Toda a discussão caminha na direção da crescente participação dos governos na sustentação de regimes previdenciários e de proteção social. E essa participação sustentada numa estrutura tributária também moderna, amparada, por exemplo, em outra reforma, que eu acho que seria fundamental: uma reforma tributária, que pudesse incorporar também esses pressupostos. No caso do Brasil, é gritante isso. Você tem uma estrutura fortemente baseada em impostos indiretos, que penaliza a produção – e os empresários reclamam que o sistema tributário penaliza eles, e eles têm razão. Você teria que fazer uma transição, uma reforma tributária que reduzisse o peso de impostos indiretos e aumentasse o peso de impostos diretos, sobre a renda e sobre o patrimônio. O imposto indireto é um imposto que você cobra, na verdade, em meio ao processo da atividade econômica, e não sobre o resultado. O lucro, a renda, o patrimônio acumulado expressam o resultado de uma atividade econômica bem sucedida.

DMT – Acho que parte dessas inconsistências ficaram visíveis na chamada Reforma Trabalhista, não? Foi reproduzida sistematicamente a ideia de que era necessária para combater o desemprego e atrair investimentos, e o que se verifica atualmente, como resultado, é praticamente o oposto.

Gimenez – De fato, o caso da Reforma Trabalhista também toma uma forma pouco aderente à realidade. A gente sabe, e a boa teoria econômica nos ensina, que os determinantes da geração de emprego não estão no mercado de trabalho, mas nas condições gerais de funcionamento da economia. O empresário não define o seu investimento a partir da relação que tem com o seu trabalhador: ele define o seu investimento – e essa é uma decisão sempre difícil – olhando as condições gerais de funcionamento da economia. Se pouco direito trabalhista fosse sinônimo de desenvolvimento econômico, a África, por exemplo, seria o paraíso terreno. E não é assim. O que estou dizendo é que, na verdade, a reforma trabalhista foi vendida à consciência nacional, à opinião pública brasileira também como uma solução para todos os problemas do país. Em certo momento, foi dito que a reforma trabalhista feita em 2017 geraria seis milhões de empregos. São dessas coisas, dessas saídas simples que a gente sempre tem que duvidar.

DMT – Esses números que surgem…

Gimenez – Esses números que surgem: vou economizar R$ 1 trilhão, vou gerar seis milhões de empregos. Quando a gente olha concretamente, a economia brasileira está prostrada há cinco anos. Temos um nível de desemprego altíssimo, quase 30 milhões de trabalhadores subutilizados, segundo o IBGE, pela PNAD Contínua. E, de 2017 para cá, a única coisa que aconteceu relativa à reforma trabalhista – e que nem foi ela exatamente que produziu, é um fruto da crise – foi o avanço na desorganização do mercado de trabalho brasileiro. Ela certamente teve alguns efeitos? Sim. Mas o mercado de trabalho brasileiro sempre foi extremamente desorganizado. Peguemos como exemplo a proposta de contrato de trabalho com duração determinada. Sempre houve muito questionamento sobre por que isso não pegou no Brasil; mesmo agora os empresários, em sua maioria, não estão usando. Porque já na CLT você tem o tempo de experiência de 90 dias. Dois terços do estoque de emprego formal no Brasil muda de emprego todo ano, e um terço (desses) a cada três meses. A rotatividade no mercado de trabalho brasileiro é tão alta, contratar e despedir é tão corriqueiro, que o contrato por duração determinada nem tem muito sentido.

O pico histórico de organização do nosso mercado de trabalho foi em 1980, no final do regime militar. De 1950 a 1980 o Brasil cresceu 7% ao ano, em média, e em 1980 você chegou a 60% dos ocupados com carteira de trabalho assinada. É o pico histórico. O que significa dizer que 40% da massa de trabalhadores brasileira, no melhor momento, ainda não dispunha de formalização. No final dos anos 1990, depois da abertura para o capital financeiro que nós fizemos, do processo de desindustrialização avançando do final do governo de Fernando Henrique Cardoso, isso caiu para em torno de 43% dos trabalhadores ocupados com carteira de trabalho. Com tudo que melhorou em termos de mercado de trabalho no governo do presidente Lula e no primeiro mandato da presidente Dilma, isso voltou a 53%. Ou seja, não voltou nem ao que era no final do regime militar.

Vender à opinião pública brasileira que desregulamentar o mercado de trabalho, que já é fortemente desregulamentado e desorganizado, vai trazer emprego, que vai resultar na retomada do desenvolvimento e fazer o país crescer, é enganar o povo. Isso precisa ser dito claramente: estão enganando o povo brasileiro. A reforma não gera emprego, porque o que gera emprego é o crescimento da economia, as decisões de investimento, a articulação entre governo e setor privado.

DMT – E estão enganando o povo, como o senhor diz, em nome do quê?

Gimenez – A meu juízo, e isso sempre é um pouco difuso, em nome da defesa de teses liberais que, neste momento, tomam formas ideológicas que são, inclusive, anacrônicas. Vários economistas defendem que estamos vivendo, atualmente, um processo de desglobalização, com a ascensão de políticas de proteção das economias nacionais. Estamos assistindo a situação de conflito entre norte-americanos e chineses, a posição dos russos dentro da Europa, enfim. E nós aderimos a uma agenda liberal fundamentalista, que vai na contramão os movimentos históricos que estamos assistindo. Hoje é praticamente um crime falar sobre articulações entre setor público e privado, entre Estado e mercado, em nome de uma política nacional de desenvolvimento. Isso foi quase criminalizado no Brasil. E o capitalismo contemporâneo se caracteriza, acima de tudo, por uma relação umbilical entre Estado e mercado. Isso não é um problema ideológico, é uma característica do desenvolvimento capitalista. É assim.

Então, a gente sabe, evidentemente, que uma empresa como a Hyundai é privada, mas foi criada, em larga medida, pelo Estado sul-coreano. Como as nossas empreiteiras. Se você olhar historicamente para a Odebrecht ou a Camargo Corrêa, todas elas são privadas, mas foram produzidas a partir das relações entre o Estado e o setor privado. E nós conseguimos, neste caso, produzir empresas com capacidade de competitividade internacional. Que, em nome de um pretenso combate à corrupção no país, acabaram por ser destruídas. Todo o know-how de várias décadas… Porque, antes de uma empresa dessas ser pública ou privada, ela é um patrimônio nacional. Você não poderia ter feito isto. É parte da destruição do que foi produzido pelo desenvolvimento capitalista no Brasil.

Eu acho que é importante frisar isto: que o que estamos observando é, no fundo, um processo de destruição do capitalismo brasileiro, tal como nós o conhecemos. O Brasil foi, no século XX, uma das mais bem sucedidas experiências de desenvolvimento capitalista. Nós transformamos um país que era um cafezal, na década de 1930, na oitava economia do mundo, em 1980. E o que nós estamos assistindo é um processo – mais longo certamente, desde a década de 1980, mas que agora toma uma forma radicalizada – de desorganização da economia nacional e, de forma mais profunda, a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento, com repercussões brutais sobre a organização do sistema de proteção social e do mercado de trabalho brasileiro. Nada do que está sendo feito aponta para lugar algum, a não ser para a deterioração do quadro já bastante ruim em que nós vivemos.

DMT – Sabemos que o atual governo é refratário a virtualmente todos os pontos que o senhor está expondo aqui. Então, se o país seguir nesse processo, nessas reformas que não levam em conta aspectos importantes da realidade brasileira, e usando a imagem que o senhor mesmo mencionou… Estamos voltando a ser um cafezal?

Gimenez – Em vários momentos, o presidente Bolsonaro faz referência ao regime militar. Mas é muito curioso, porque ele defende o regime militar pelo pior lado, de prender as pessoas, torturar. Na verdade, nós nunca criamos tantas empresas estatais quanto no regime militar. Os militares sempre tiveram um perfil desenvolvimentista no Brasil, em nossas condições históricas particulares, foram uma força progressista, exceto em 1964 no ambiente radicalizado da guerra fria, uma força política com tendência claramente antiliberal. Eles nunca acreditaram que o livre jogo das forças de mercado poderia produzir desenvolvimento no Brasil. Isso não significa que tem que ser tudo estatal, uma defesa do estatismo, essas bobagens – mas sim reconhecer que, nas condições de desenvolvimento de um país periférico, o livre jogo das forças de mercado não produz desenvolvimento. 

Essas reformas indicam a radicalização de uma estratégia que a gente chama, em economia, de competitividade espúria. Ou seja, você tenta ser competitivo reduzindo direitos sociais e trabalhistas. Se você avança essa estratégia, dizendo que vamos ser mais competitivos, por exemplo, reduzindo o custo do trabalho, você está dizendo que você quer ser competitivo nos setores que são intensivos no uso de mão de obra. Porque nos setores com uso pouco intensivo de mão de obra, como em tecnologia, o custo do trabalho é baixo. A pergunta é: se é isso mesmo, quais setores são intensivos em força de trabalho? São justamente os mais primitivos na estrutura produtiva mundial. Estamos falando em têxteis, bebidas, calçados, porque essa estratégia só faz sentido aplicada a esses setores.

Isso tem pelo menos dois problemas evidentes. Primeiro, você vai concorrer com competidores já estabelecidos, principalmente na Ásia. Eu não estou falando só da China, estou falando de países satélites ao crescimento chinês. Então, você vai ter que ter um padrão de competitividade compatível com Bangladesh, Indonésia, Paquistão, Vietnã… Senão, não tem conversa. E eles não só têm uma estrutura social diferente da nossa, como estão articulados ao poder chinês. Então é isso: nós vamos ter que transformar o mercado de trabalho e a estrutura social brasileira com algo parecido ao que Bangladesh e Vietnã têm. O segundo ponto é que você projeta um país continental como o Brasil competindo nos setores menos dinâmicos da estrutura econômica mundial. Nesse sentido, você está apontando para um processo de reprimarização da economia. Então, você tem que radicalizar uma estratégia de competitividade espúria que teria que destruir nosso maior bem, que é um mercado interno de grandes proporções, para projetar o país em um processo regressivo. Quando você olha por dentro para o que essa estratégia significa, ela aponta para uma regressão histórica de grandes proporções, sem a garantia de nenhum resultado virtuoso.

DMT – Não me parece minimamente razoável, pelo que o senhor diz.

Gimenez – Nós precisamos fazer essa pergunta: será que a sociedade brasileira suportaria reformas que caminhem na direção de uma desorganização tão brutal? Porque nós não somos Bangladesh: nós temos, ainda que com dificuldade, uma classe média ampla, um setor público que tem problemas, mas funciona. É preciso saber se a sociedade brasileira aguenta isso. Porque, certamente, os sacrifícios não vão parar na proposta de que as pessoas descansem uma vez a cada sete domingos. Uma agenda de competitividade espúria não tem limites: enquanto tiver um último velhinho recebendo benefício previdenciário, o ajuste não terminou.

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