O establishment financeiro só admite que a mão visível do Estado atue para proteger os seus interesses.
André Moreira Cunha e Andrés Ferrari
Fonte: Sul 21, com FCE-UFRGS
Data original da publicação: 15/10/2021
“O poder econômico sempre existiu, o poder político sempre esteve ligado a ele, sempre existiu um concubinato entre esses dois poderes. Mas os cidadãos estão aqui embaixo. E como eles poderiam expressar suas angústias, dúvidas e necessidades junto a este poder econômico? Em princípio, seria através do mesmo governo que serve de correia de transmissão. Mas não podemos ter qualquer esperança de que esses governos digam ao poder econômico … que as condições que vocês nos impõem são terríveis. Nós vivemos numa plutocracia, um governo dos ricos, e são eles que governam.”
José Saramago, 2004
O fantasma da inflação
Em seu último “Panorama da Economia Mundial“, o Fundo Monetário Internacional (FMI) atualizou suas estimativas para o crescimento global: -4,5% (2020) e +5,2% (2021). Para 2021, houve uma revisão em -0,1 p.p. com respeito às projeções de abril e julho. O Fundo considera que a divergência no ritmo de recuperação se acentuou nas principais economias. Na média, os países de alta renda deverão crescer -0,4 p.p. a menos do que o projetado previamente. As economias asiáticas (-0,3 p.p.), inclusive China e Índia, e outros emergentes como Brasil e México, ambos com revisão em -0,1 p.p., pioraram seus respectivos desempenhos. No mercado de trabalho, as taxas de desemprego e de utilização do trabalho seguem piores com respeito ao período que antecedeu a pandemia. Ainda assim, verifica-se uma aceleração inflacionária.
Em muitos países, o crescimento da renda não será suficiente para recuperar o que foi perdido em 2020 ou para recolocar a trajetória prévia de expansão. Isso também vale para o mercado de trabalho. No caso dos preços, observa-se uma alta intensa nas commodities, o que está contaminando as medidas de inflação em suas bases anuais. O índice de preços do FMI que avalia o comportamento das commodities apresentou variação acumulada de +50% nos últimos doze meses. Já os preços finais ao consumidor oscilam entre 3% a.a. e 6% a.a. nas economias de alta renda, acima das metas dos seus respectivos Bancos Centrais (cerca de 2% a.a.). Nos países emergentes e em desenvolvimento, as médias estão neste patamar, porém com maior dispersão.
Para o FMI, o surto inflacionário tem características temporárias e não deveria gerar reações mais contundentes das Autoridades Monetárias, pelo menos em um horizonte próximo. Até porque, as expectativas inflacionárias seguem sob controle. O importante seria evitar a inação em uma futura espiral altista. Os principais Bancos Centrais e seus líderes, particularmente Christine Lagarde (BCE) e Jerome Powell (FED), concordam que é momento de ter cautela. Uma reação tempestiva diante de fenômenos potencialmente transitórios poderia detonar um cenário de ajuste descoordenado nos mercados financeiros. Ou seja, o problema da dominância financeira é tão importante quanto o das pressões inflacionárias de curto prazo.
Na contramão do FMI e da visão dos banqueiros centrais, economistas influentes ressaltam o risco da estagflação ou a perspectiva de uma nova crise financeira, como nos casos de Lawrence Summers, Kenneth Rogoff, Nouriel Roubini, Mohamed El-Erian, John H. Cochrane, para citar alguns. Este temor também está no radar dos investidores. Se há um consenso entre os analistas é o de que a economia global não está plenamente recuperada. Outrossim, assumir que a inflação em alta, mesmo que de forma temporária, é o principal problema macroeconômico atual pode produzir um retorno precipitado aos princípios da ortodoxia econômica. O medo do descontrole inflacionário já foi utilizado no passado como justificativa para a adoção de políticas que limitaram o potencial de desenvolvimento socioeconômico.
Estagflação: quando os modelos não funcionam, os economistas inventam novas palavras
O neologismo estagflação tornou-se popular nos anos 1970 para designar a ocorrência de dois fenômenos que usualmente não acontecem de forma simultânea: estagnação e inflação. Em geral, quando há baixo dinamismo econômico, a taxa de desemprego se eleva e o nível absoluto de preços tende a se estabilizar ou mesmo a cair, configurando uma deflação. Já os períodos de aceleração inflacionária ocorrem quando as economias crescem de forma intensa e, por decorrência, as taxas de desemprego são baixas. Com os dois choques do petróleo (1973 e 1979), as economias de alta renda se viram com um dilema de ter de usar os instrumentos “convencionais” da política keynesiana para lidar com um fenômeno novo.
Nos anos 1950 e 1960, o mundo avançado comemorava a rápida recuperação econômica após a devastação verificada na primeira metade do século XX. Duas grandes guerras mundiais, com cerca de 100 milhões de mortos, e uma devastadora crise econômica, que abriu caminho para a ascensão de regimes políticos autoritários, enterraram o “liberalismo”. A reconstrução se deu com forte ativismo estatal e novas prioridades sociais: garantir o pleno emprego e incorporar as massas não proprietárias no mundo econômico e político. Diferentemente do que propugnam os libertários liderados por Hayek e Friedman, a democracia dificilmente anda de mãos dadas com o “livre mercado”. A construção de bases reais para a democratização das sociedades se deu concomitantemente à perda de poder das elites, fruto das guerras e do debacle econômico.
Depois da crise do liberalismo foi possível tributar os ricos, seu patrimônio e os ganhos financeiros. As bases tributárias se alargaram e, com isso, tornou-se factível ampliar os serviços públicos e a proteção social – de menos de 1% das respectivas rendas, no início do século XX, para 15%, no, anos 1960, e 25% atualmente, na média dos países de alta renda. Além do direito ao voto, as massas passaram a ter acesso à educação formal, à saúde, à aposentadoria, à proteção do seu trabalho (salário mínimo, férias, seguro desemprego, etc.). As políticas macroeconômicas e regulatórias eram calibradas para garantir o crescimento e o pleno emprego; e as estratégias nacionais de desenvolvimento se alicerçaram nos investimentos públicos em infraestrutura, nas empresas estatais e na disseminação das novas formas de produzir e consumir herdadas das revoluções industriais do século anterior e das inovações aceleradas com as próprias guerras. Os ganhos de produtividade permitiram a elevação dos salários sem comprometer o lucro e, assim, a acumulação privada de capital. As desigualdades diminuíram e as classes operárias e os segmentos remediados do mundo rural e urbano podiam aspirar melhores condições de vida para si e, mais importante, a mobilidade social ascendente para filhos e netos.
A democracia das massas nos países centrais e as aspirações em ter o mesmo no mundo periférico, particularmente nos países que haviam obtido sua independência política no imediato pós-guerra, tornaram-se caras demais na perspectiva libertária. Como nos ensinou Kalecki, o pleno emprego gerado pelas políticas econômicas e sociais é uma ameaça às elites, tanto porque ampliam o poder de barganha dos trabalhadores organizados em sindicatos, quanto porque dependem de Estados com competências legais ampliadas. Mais direitos políticos e sociais equivalem a mais gastos e impostos.
A estagflação dos anos 1970 estraçalhou o consenso socialdemocrata e abriu espaço para a “rebelião das elites”. Economistas contrários ao ativismo estatal sentiram-se vingados e puderam argumentar que a combinação de inflação com desemprego era o resultado inevitável da engenharia social keynesiana. Para recuperar o dinamismo econômico haveria de se desregulamentar, privatizar e diminuir o gasto público e os impostos. Menos Estado para as massas e mais liberdade para os capitais, tal foi o mantra predominante nos quarenta anos subsequentes. O neoliberalismo seduziu as sociedades e produziu os resultados desejados, com as elites recuperando plenamente o controle do poder político e da riqueza.
A economia contemporânea é estruturalmente distinta daquela que testemunhou a estagflação que se seguiu aos choques do petróleo. Os países são mais abertos do ponto de vista financeiro e comercial e, assim, mais dependentes de cadeias globais de valor e sensíveis aos ciclos de crédito; os sindicatos foram fragilizados e, com isso, o poder de barganha para a reposição de perdas inflacionárias é menor. No curto prazo, as pressões altistas de preços e salários resultam dos problemas criados pela pandemia: no caso dos preços, a sustentação da demanda das famílias, particularmente de alimentos, confrontou-se com limitações na capacidade de oferta; no caso dos salários, a alta não tem a ver com fenômenos estruturais, pois os níveis de ocupação seguem abaixo do normal. Há, sim, maior disputa pela mão de obra disponível nos países de alta renda, posto que os indivíduos foram protegidos pelas políticas de sustentação da renda. Quando a pandemia passar, os estímulos deixarem de existir e as poupanças caírem, a oferta de trabalho se ampliará e o crescimento dos salários tenderá a retomar a trajetória prévia. A espiral salário-preços é um cenário possível, mas pouco provável no médio prazo.
As Autoridades Monetárias terão de escolher: seguir as políticas de austeridade ou avançar na reconstrução da infraestrutura física e social, tão fragilizada após quatro décadas de sucateamento. Os dois caminhos são arriscados, mas um deles pode produzir uma nova crise de larga escala: a terceira em menos de quinze anos.
O mundo mudou, as elites seguem iguais
A estagflação foi instrumental para o rompimento do compromisso político em torno da democracia. Desde então, a ameaça de “retorno da inflação” tornou-se o alicerce retórico para a imposição do Estado mínimo para a sociedade e do Estado máximo para os ricos. É por isso mesmo que Robert Skidelsky, o biógrafo de John Maynard Keynes, sugere que o risco de estagflação não é o problema mais grave da atualidade, mas sim a possibilidade de uma nova crise financeira. A expansão do balanço dos principais Bancos Centrais depois de 2008 sustentou os mercados financeiros e, assim, consolidou a forte elevação no patrimônio dos mais ricos.
Para Skidelsky, a teoria macroeconômica convencional criou a ilusão de que a política monetária é independente da política fiscal. Por isso mesmo, o ideal seria abandonar as bússolas criadas na era neoliberal e, assim, permitir que a ação estatal volte a priorizar o estímulo ao desenvolvimento socioeconômico. Se os Estados precisam gastar mais para manter a coesão social, a busca de equilíbrio fiscal intertemporal deve partir da recuperação das receitas públicas por meio da tributação do patrimônio dos milionários e bilionários. Estes estão atentos e seguem defendendo o “socialismo para os ricos e o capitalismo para os demais”.
O establishment financeiro só admite que a mão visível do Estado atue para proteger os seus interesses. Para resgatar seu patrimônio nos momentos de crises financeiras, tudo é permitido, inclusive expandir os balanços dos seus bancos centrais em mais de US$ 20 trilhões ou dobrar a dívida pública como proporção do PIB. Já a ação estatal para manter emprego, renda e dignidade para o conjunto da sociedade é sempre apontada como a perigosa fonte dos déficits orçamentários e da inflação. O mundo atual pode ser diferente, mas as elites seguem as mesmas: diante da disjuntiva entre a defesa da democracia e a preservação da liberdade plena para os capitais, elas não hesitam em colocar seus bolsos em primeiro lugar.
André Moreira Cunha e Andrés Ferrari são professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.