Na nova divisão internacional do trabalho, países ricos controlam serviços sofisticados. Ao demais, resta ilusão do “empreendedorismo”.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 21/02/2022
O Brasil experimenta atualmente a sua terceira fase da escravidão denominada moderna. Ressalta-se, contudo, que não se trata de um acontecimento exclusivamente nacional, pois difundido pelo capitalismo informacional que reconfigura o mundo em dois grandes blocos de países e regiões.
De um lado, os países produtores e exportadores de bens e serviços digitais e, de outro, os demais países passivamente importadores dos mesmos bens e serviços digitais. Pela nova Era Digital, a organização da produção e distribuição da economia tem sido operada pela expansão dos algoritmos geridos por grandes corporações transnacionais, sejam do ocidente, sejam do oriente.
O resultado disso tem sido acompanhado por relatórios de diversas instituições de pesquisa e consultorias que explicitam o avanço da desigualdade no mundo e, sobretudo, o explosivo fluxo migratório internacional. Movidas pela dinâmica da financeirização do capital, proliferam-se múltiplas formas de combinação profundamente desigual do expansionismo de grandes corporações transnacionais no Ocidente. No Oriente, por outro lado, a resposta de grande parte das corporações transnacionais é conduzida pela presença da intervenção coordenada do Estado.
Assim, os países produtores e exportadores de bens e serviços digitais combinam lucros internos extraordinários com resultados favoráveis do comércio externo que, por ser desregulado, produz mais desigualdade no mundo. As margens de lucros das grandes corporações transnacionais, livres da tributação, têm sido estimuladas por investimentos tecnológicos gigantescos e, em grande medida, subsidiadas pelo próprio Estado.
Além disso, a lucratividade é acrescida da queda na taxa de salários proporcionada pela oferta abundante de mão de obra gerada no neoliberalismo, que reduziu direitos sociais e trabalhistas. Ao mesmo tempo, a competição no interior do mundo do trabalho se acirra com o movimento imigratório internacional, conformado, inclusive, pela fuga de cérebros das economias subdesenvolvidas.
Assim, os países predominantemente consumidores de bens e serviços digitais dependem, em geral, da produção e exportação neoextrativista dos seus recursos minerais e vegetais. Ademais de comprometerem aceleradamente seus próprios biomas, com a devastação ambiental promotora de crises virais sucessivas, esvaziam a soberania, dependendo da tecnologia comprada do exterior e comandada pelo poder privado dos algoritmos controlados pelas grandes corporações transnacionais.
Para a classe trabalhadora, o que tem restado diante do neoexpansionismo agropecuário e mineral exportador a concentrar renda e a restringir empregos no campo, são as precárias ofertas de trabalho comandado por algoritmos próprios do capitalismo de plataformas. Nesse sentido, a expressão da escravidão sobre novas bases técnicas e ideológicas ganha expressão, tendo o trabalho comandado pelo senhor proprietário do algoritmo a exclusiva resposta ao desemprego.
A obediência a esse senhor da Era Digital tem sido plena, sem limites de tempo de trabalho, garantia de renda e direitos sociais e trabalhistas, plugado permanente nas redes de produção de dados convertidos em riqueza apropriada por cada vez menos proprietários da datificação da sociedade. Sob a grife do empreendedorismo, o trabalho é explorado até a sua última gota física e, sobretudo, a exploração subjetiva da condição humana.
No passado, a escravidão moderna convergia na apropriação física sem limites, porém desapegada da exploração subjetiva da condição humana. Em função disso, havia a possibilidade de resistências diversas, movidas pela cultura e valores próprios que alimentavam continuadamente a esperança da liberdade através das mobilizações em torno da abolição escravista. Nos dias de hoje, a conexão digital contribui para esvaziar valores e cultura concernentes com a possibilidade de obtenção da liberdade plena.
Em síntese, a oferta crescente do tempo de vida para trabalho de conexão digital contínua subordina-se à ideologia consumista que esvazia o sentido da existência humana, crescentemente dependente do uso de drogas legais ou ilegais convivendo com a depressão, o mal do século 21.
No caso do Brasil, a sua histórica trajetória foi constituída por duas diferentes fases da escravidão moderna.
A primeira, que durou praticamente três séculos, foi relacionada ao sistema colonial europeu. A montagem portuguesa da primeira cadeia global de produção de produtos primários integrou três diferentes continentes. A África, através do tráfico negreiro ofertando escravos ao sistema de plantation de monocultura em grandes escalas no Brasil colonial, esteve articulada ao comércio de produtos primários endereçados ao mercado europeu.
Com a independência nacional, em plena decadência do sistema colonial europeu, o Brasil decidiu autonomamente assumir a segunda fase da escravidão, conectada à ordem capitalista liderada pelos interesses ingleses. Enquanto grande parte dos países ancorados no uso do trabalho escravo o foi abandonando pela inserção no capitalismo no início do século 19, os Estados Unidos e o Brasil optaram por levar mais adiante uma segunda fase escravista, concentrada exclusivamente na população negra africana.
Nos dias de hoje, a divisão de mundo imposta pelo capitalismo informacional oferta aos países dependentes da tecnologia externa e fundamentalmente importadores de bens e serviços digitais, a plataformização do trabalho. Um labor emburrecido e robotizado que consolida a terceira fase da escravidão, não mais diferenciando raça e cor, muito menos sexo e diferentes faixas etárias e de escolaridade.
A difusão dos trabalhos gerais, despossuídos de identidade e pertencimento coletivo, transcorre pelo neologismo do empreendedorismo que dissolve relações salariais, substituídas pela relação débito-crédito como se fosse um negócio qualquer. Dessa forma, o trabalho é regredido a mercadoria descolada da Justiça do Trabalho, pois concebido como negócio entre partes iguais e submetido ao direito comercial, sem representação coletiva como associação, sindicato e até mesmo partido político.
Ao ser concebido por relação individual, o empreendedorismo de si próprio configura na Era Digital como a terceira fase da escravidão. No trabalho conduzido pelo senhor proprietário do algoritmo, o tempo humano se consome na produção de dados sem cessar, revelando o desespero de acessar – legal ou ilegalmente – qualquer atividade que ofereça algum crédito necessário para suprir o débito da própria sobrevivência.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.