Empregos e salários durante a pandemia

Os programas brasileiros com o propósito de preservação da relação de emprego durante a pandemia ainda são tímidos em contraste com a experiência internacional. E, mais importante, poderão ser ineficazes.

Carlos Henrique Horn

Fonte: FCE Ufrgs
Data original da publicação: 08/04/2020

Os efeitos da crise do COVID-19 sobre a atividade econômica, conforme esperado por muitos, apareceram rapidamente e de modo bastante intenso. As previsões quanto ao comportamento dessa atividade em 2020 vêm sendo revistas e o cenário que se descortina é de uma profunda recessão. Ainda em março, conforme levantamento da The Economist, as previsões variavam bastante, mas todas indicavam, como assinalou a revista, “a dreadful year”.[1] Na mediana daquelas previsões, a área do Euro sofrerá uma retração em torno de 5% do PIB; o Reino Unido, entre 3% e 4%; os Estados Unidos, de 3%; e o Japão, de quase 3%. Já a locomotiva chinesa verá sua velocidade cair para um crescimento de meros 3% no ano. Não é improvável que essas previsões já sejam vistas como otimistas.

Na esteira da contração da atividade, os trabalhadores assalariados colocam-se sob risco ampliado de perda do emprego e da renda. Aqui, vale destacar que um dos principais indicadores de desempenho do mercado de trabalho, que é a taxa de desemprego, não conseguirá ser uma medida de síntese adequada do grau dos problemas. Isto porque um indivíduo, para ser classificado como desempregado, precisa estar em procura ativa por uma ocupação. No quadro excepcional da pandemia, pode-se imaginar que um contingente expressivo de pessoas que perderam sua ocupação – assalariados despedidos, trabalhadores por conta própria sem condições de exercer sua atividade etc. – se colocará numa situação de espera, sem buscar nova ocupação ou tentar retornar à sua ocupação rotineira, pois se verão desalentadas diante das perspectivas de um mercado paralisado. Nas estatísticas usuais, serão classificadas como pessoas fora do mercado de trabalho. Portanto, mais do que nunca, qualquer análise sobre a dinâmica da ocupação e da renda do trabalho no período de aplicação das medidas de isolamento amplo terá que olhar para um conjunto mais amplo de indicadores e não confiar apenas na taxa de desemprego.

Diante dos efeitos severos da crise, os países vêm adotando medidas de proteção de empresas, empregos e renda. A Organização Mundial do Trabalho procura acompanhar as respostas gerais de políticas públicas em cada país[2], tendo identificado quatro pilares distintos de interesse: (i) medidas de estímulo à economia e ao emprego; (ii) medidas de suporte às empresas, ao trabalho e à renda; (iii) medidas de proteção ao trabalhadores no local de trabalho; e (iv) busca do diálogo social para definir soluções aos problemas.

No que se refere especificamente à preservação do emprego e da renda dos trabalhadores assalariados, podemos observar basicamente duas linhas de abordagem. A primeira linha é a do subsídio público pago diretamente à empresa ou ao trabalhador, com manutenção da relação de emprego e sem suspensão do contrato ou redução de jornada. Neste grupo, encontram-se o Reino Unido, a Dinamarca, a Itália e os Países Baixos. No caso do Reino Unido, as empresas afetadas de algum modo pela pandemia, cujos trabalhadores estarão em uma condição denominada on fourlough, receberão subsídios equivalentes a 80% dos salários, limitados a 2.500 libras esterlinas por mês. Nos demais países, variam os percentuais e limites, mas a estrutura do esquema é praticamente a mesma.

A segunda linha geral de abordagem consiste em tornar mais brandas as regras de elegibilidade e facilitar o acesso dos trabalhadores a benefícios da seguridade social, destacadamente algum benefício inspirado no seguro-desemprego, a fim de compensar a perda de renda decorrente da suspensão do contrato ou da redução da jornada de trabalho. São exemplos de países que adotaram este caminho de subsídio indireto à preservação dos contratos de trabalho: Japão, Alemanha, Israel e Espanha.

Há, ainda, países em que foi simplesmente proibida a rescisão do contrato de trabalho sem a chamada justa causa ou motivação, não sendo aceitos como motivos aqueles relativos aos efeitos da pandemia. A Argentina e a Espanha encontram-se neste grupo. Também com a intenção de vedar a despedida imotivada, o Ministério do Trabalho e do Emprego da Índia emitiu, ainda no mês de março, uma “nota de aconselhamento” (D.O No.M-11011/08/2020-Media) às associações de empregadores para que orientassem seus afiliados a não terminarem as relações de emprego. Em especial, lê-se na nota do governo hindu:

Neste cenário [da pandemia], a despedida do empregado ou a redução dos salários levaria a aprofundar ainda mais a crise e não apenas enfraquecerá a condição financeira do empregado, como também abalará sua moral para lutar contra esta epidemia. Em vista desta situação, requeremos que faça circular esta Nota de Aconselhamento aos empregadores/proprietários de todos os estabelecimentos registrados em sua associação para fins de cumprimento.  

A par dos subsídios gerais à manutenção do emprego ou da simples proibição da despedida imotivada, um sem-número de outras medidas específicas com igual finalidade também vêm sendo adotadas em diferentes países. Para fins de ilustração e sem exaurir a lista, mencionem-se as seguintes: (i) abrandamento das condições de acesso à licença remunerada para tratamento de saúde; (ii) instituição de licença remunerada para cuidados com a família em face da suspensão das aulas; (iii) benefícios para pagamentos dos custos com babás; e (iv) benefícios a grupos ocupacionais específicos, como artistas e empreendedores de startups. Além do conjunto de medidas voltadas a manter as relações de emprego, houve adoção generalizada de regras mais leves de acesso e gozo do seguro-desemprego – redução do período de carência para poder usufruir do benefício, alargamento do período de usufruto etc.

No Brasil, no momento em que este texto é escrito, a política orientada ao trabalho assalariado durante o estado de calamidade pública, como suporte à estratégia de isolamento amplo do Ministério da Saúde, está reunida nas Medidas Provisórias ns. 927 (22 de março), 936 (1° de abril) e 944 (03 de abril). A primeira dessas normas estipula um conjunto de medidas trabalhistas com o intuito de preservar os contratos de trabalho mediante a flexibilização de regras para afastamento de empregados dos seus locais de trabalho, a exemplo do uso de teletrabalho, antecipação de férias, concessão de férias coletivas e bancos de horas. De acordo com essas medidas, os empregadores podem antecipar um período futuro de afastamento do empregado ou adotar estratégias de trabalho remoto, realizando os pagamentos correspondentes de salários e preservando os vínculos empregatícios.

Ainda sobre a MP 927, uma regra em particular foi motivo de acirrado debate. Trata-se do art. 18, depois revogado pela MP 928, que autorizava os empregadores a suspender os contratos de trabalho, por um período de até quatro meses, para que os empregados realizassem cursos de qualificação não presenciais. Nesses meses, os empregadores estariam eximidos de pagar os salários e encargos sociais, podendo conceder voluntariamente algum benefício aos trabalhadores.

Em 1° de abril, por meio da MP 936, o governo federal instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, afastando-se da regra do art. 18 da MP 927 e aproximando a política pública brasileira do grupo de países que estipularam subsídios à manutenção do emprego em face da pandemia. A essência desta norma é a criação de um benefício emergencial de preservação do emprego e da renda a ser pago nos casos de suspensão do contrato de trabalho e de redução da jornada. O cálculo desse benefício em cada situação específica prevista na MP está limitado ao valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, sendo dispensada aplicação dos requisitos usuais de acesso ao seguro-desemprego. Em ambos os casos, a modificação contratual poderá ser celebrada mediante acordo individual entre empregados e empresas. Após o término do estado de calamidade, os trabalhadores terão assegurada a garantia no emprego por período igual ao de suspensão do contrato ou de redução da jornada.

Mais recentemente, por fim, o governo federal instituiu o Programa Emergencial de Suporte a Empregos mediante a MP 944, consistindo de linha de crédito para que empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões (ano-base de 2019) possam honrar suas folhas de pagamento. O montante a ser financiado corresponde ao total da folha por dois meses, limitado a duas vezes o valor do salário mínimo por empregado. O crédito deve ser reembolsado em 36 meses, com carência de seis meses e juros anuais de 3,75%. As empresas que acessarem os recursos ficam proibidas de praticar despedida imotivada por um período de até 60 dias após o recebimento da última parcela do empréstimo.

Uma investigação preliminar das medidas adotadas pelo governo brasileiro aponta para três ordens de questões. Em primeiro lugar, há uma questão de ordem jurídica, que é a autorização para que se implemente a suspensão do contrato de trabalho ou a redução da jornada por meio de acordo individual, quando a Constituição prevê que a redução de jornada e de salários exige acordos coletivos com sindicatos. Enquanto o poder Judiciário não pacificar essa questão, a celebração desses acordos individuais estará cercada por forte insegurança e risco de constituição de passivos trabalhistas. Em segundo lugar, há que se apontar para o valor limite do benefício emergencial de preservação do emprego e da renda, que parece ficar aquém de seus congêneres em outros países que adotaram tal forma de subsídios, mesmo considerando as diferenças de renda entre o Brasil e esses países. Por fim, a terceira questão remete a algum ceticismo quanto à demanda pelas linhas de crédito para pagamento de uma folha salarial que pode ser alternativamente reduzida, ao menos em parte, por rescisão de contratos de trabalho.

Conquanto a revogação da norma de suspensão do contrato por até quatro meses, que colocaria os empregados numa condição de zero-renda, tenha sido um passo positivo, a conclusão preliminar é que os programas brasileiros com o propósito de preservação da relação de emprego durante a pandemia ainda são tímidos em contraste com a experiência internacional. E, mais importante, poderão ser ineficazes.

Notas:

[1] Ver: https://www.economist.com/finance-and-economics/2020/04/04/economists-forecasts-for-gdp-growth-in-2020-vary-widely.

[2] Ver: https://www.ilo.org/global/topics/coronavirus/country-responses/lang–en/index.htm.

Carlos Henrique Horn é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

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