“É preciso garantir direitos sociais e do trabalho a todos que contribuem com a manutenção e melhora da vida”. Entrevista com Marcelo Manzano

O Portal Democracia Socialista conversou com o economista e pesquisador Marcelo Manzano sobre os desafios do mundo do trabalho por plataformas. Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, Manzano é coordenador e professor do programa de pós-graduação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e faz parte do Grupo de Pesquisa sobre Plataformas Digitais de Trabalho da Clínica Direito do Trabalho da UFPR.

Para o pesquisador, as plataformas digitais que operam por aplicativos nadam de braçada no Brasil, um país onde a desregulamentação do trabalho aprofundou-se nos últimos anos. Nesta entrevista, Manzano fala sobre as possibilidades de organização dos trabalhadores por aplicativos, os desafios da organização sindical e sobre as alternativas de um projeto de desenvolvimento capaz de oferecer oportunidade produtiva com qualidade, de forma a fazer frente tanto aos problemas do modelo fordista quanto ao despotismo das plataformas.

Marcelo Manzano. Fotografia: Democracia Socialista

Em entrevista ao Portal Clínica do Direito, tu afirmaste que “a plataformização é a transformação mais radical do trabalho desde a 2ª revolução industrial”. E que “as transformações das novas tecnologias estão criando uma nova divisão internacional do trabalho por setor de atividade, tornando ainda mais distintas as atividades e as ocupações”.  Podemos começar nossa conversa por este ponto?

Muitas pessoas têm se dedicado a estudar as plataformas digitais numa perspectiva da inovação tecnológica. Sem dúvida elas são produto das novas tecnologias, mas elas são bem mais do que isso. Elas são uma nova forma das empresas organizarem as suas relações entre obrigações, deveres e direitos. Ou seja, uma nova forma de gestão dos ativos e dos passivos empresariais. Isto é uma mudança muito profunda, embora não seja tão evidente quanto a questão tecnológica. É claro que a mudança tecnológica e o avanço dos aplicativos, que só foi possível com o desenvolvimento dos smartphones, fez surgir um suporte tecnológico que possibilita às empresas se organizarem de uma maneira completamente diferente do que faziam até hoje.

Portanto, eu vejo que isso talvez represente uma ruptura do padrão que estávamos acostumados, que era o padrão clássico do trabalho fordista, o trabalho numa grande empresa oligopolista, grande companhia capitalista. As plataformas rompem com isso e nesse sentido, primeiro, elas alteram a posição dos atores do capitalismo – os trabalhadores, os consumidores, os empresários e os investidores assumem funções um tanto diferentes do que assumiam antes e, também, há uma mudança na divisão internacional do trabalho, porque se deslocam demandas de trabalho de uma maneira diferente a partir do uso destas plataformas. Como exemplo, cito as chamadas plataformas de crowdworking, onde trabalhadores ficam apertando a tecla “enter”, calibrando processos, aferindo documentos ou imagens, em atividades muito simples que são ofertadas pela internet por empresas localizadas nos países centrais.

Captam trabalhadores localizados em diversos países que executam ações para ganharem centavos de dólar por hora. Isso é uma distribuição completamente diferente do trabalho que estávamos acostumados, antes era preciso ter uma fábrica, uma unidade física, ou ao menos um escritório no país estrangeiro. O trabalhador, por sua vez, acordava cedo, tomava o café, tomava o ônibus, ia pra fábrica ou pro escritório, cumpria sua jornada. Agora é um trabalho com uma natureza muito diferente. Claro que isso ainda não se generalizou, ainda é uma parcela menor dos trabalhadores que estão atuando nesse novo arranjo do mundo do trabalho. Porém, tudo indica que esta modalidade vai se espraiar pelo mundo do trabalho. Então é um pouco isso, resumidamente, porque eu vejo de fato uma nova era do trabalho que vai distinguir com grande profundidade o trabalho atual do trabalho do fordismo.

Inclusive, comentaste que a pandemia contribuiu para derrubar as resistências ao teletrabalho.

A terceirização avançou muito dos anos 1980 pra cá. No Brasil foi mais intensa a partir dos 1990, quando houve inclusive alterações na legislação. Mas ainda era no modelo empresarial de uma empresa subcontratando a outra, não era uma relação direta da empresa com os indivíduos, existiam empresas intermediadoras de mão de obra, terceirização de serviços, como os serviços de limpeza por exemplo. Era já uma tendência, mas as plataformas radicalizam e subvertem isso. Levam esta relação de terceirização a uma situação radical, que terceiriza diretamente para o trabalhador, isto é, os riscos são transferidos para o trabalhador. O Call Center era uma relação de transferência de riscos de uma grande empresa para uma empresa menor. Agora a transferência de risco é direta para o trabalhador, sem intermediários. Os custos são repassados para a ponta mais fraca, isto é, o trabalhador. Então se ele está em casa no teletrabalho, o risco é dele, a energia é dele, o computador é dele, o risco de não trabalho é dele, todos os riscos são repassados ao trabalhador.

A pandemia foi um acelerador deste processo, não que ele já não estivesse em curso, mas foi uma situação absolutamente fora de qualquer ordem regular de funcionamento da economia, ou seja, parou tudo. Não é a pandemia ou a doença em si, mas a paralisação das atividades, da circulação das pessoas, isso é uma coisa muito radical, uma forma muito adversa para cuidarmos da vida. E essa gravidade acabou minando resistências que havia de sindicatos e conselhos federais como o de medicina e de psicólogos, que resistiam ao atendimento a distância, e que com a pandemia tiveram que abrir exceções porque era necessário continuar com o atendimento.

Aí foi o “passa boi, passa boiada”. Uma vez flexibilizadas as regras, é difícil voltar atrás. Então estamos vendo isso na educação, agora o ensino a distância certamente está sendo catapultado, já vinha acontecendo, mas muito mais represado, agora isso avança mais rapidamente. Então a pandemia de fato acelerou o tempo e abriu oportunidades para empresas do ramo da educação e para que grupos financeiros olhem para as empresas de educação com possibilidade de se transformarem em grupos que oferecem educação à distância em larga escala. Viraram a bola da vez. Assim como na medicina: um grande hospital em São Paulo, se associou com uma empresa de plataforma e a um fundo financeiro para vender planos de saúde a 29 reais para classe D e E, um público para o qual o setor privado nunca deu bola. Mas com as plataformas e com essas novas modalidades de atendimento à distância, esse mercado despontou como um grande negócio e provavelmente vai se ganhar muito dinheiro com isso. E como tem essa perspectiva, atraiu o investimento de fundos financeiros internacionais muito robustos. Isso foi anunciado no Valor Econômico, a parceria entre hospitais e bancos estrangeiros. São coisas que não existiam ou que eram ainda muito incomuns, porque não havia o que ser explorado. Então a pandemia foi um evento muito disruptivo, promoveu mudanças muito radicais.

A pandemia de Covid-19 aprofundou o fosso da desigualdade social no Brasil. O estudo que fizeste aponta o recorte racial e geracional nas pesquisas com entregadores por aplicativos. Não por acaso os jovens são maioria entre os entregadores e as pessoas acima dos 40 anos são minoria. Temos uma devastação do trabalho que também é setorializada? Você concorda com Ludmilla Abílio quando ela afirma que estamos vivendo o despotismo do algoritmo?

No estudo que realizamos na Universidade Federal do Paraná, com a Clínica do Direito do Trabalho, sob coordenação do professor Sidnei Machado, entrevistamos 500 trabalhadores por plataforma e usamos também uma tecnologia de análise de tráfego de web, para quantificar quantos trabalhadores existem no Brasil subordinados às plataformas. Chegamos a conclusão de que sob controle das plataformas existem, no Brasil, cerca de 1,5 milhão de trabalhadores. Usando as plataformas são muito mais. Tem estudos que dizem que são mais de 15 milhões. 90% daquele 1,5 milhão que trabalham sob controle das plataformas está no setor de transporte – de cargas e de passageiros. No transporte de cargas temos do motoboy ao fretista, que avançou muito. Observando o perfil destes trabalhadores, entre os motoboys tem uma prevalência de jovens, homens, na grande maioria negros e pardos, porque são trabalhos que podem ser realizados por segmentos da sociedade que são excluídos de outros setores do trabalho, porque somos uma sociedade racista, escravocrata e com déficit de empregos. São trabalhos muito despóticos.

A Ludmila fala acertadamente do caráter despótico dos algoritmos. Uma característica fundamental da plataforma digital é que ela é uma espécie de isolamento das relações econômicas e de poder. Ela torna ainda mais opacas as relações de poder, é uma espécie de cordão sanitário que o capital interpõe entre os seus ganhos e a realização das atividades econômicas. As plataformas meio que esterilizam esse mundo da acumulação financeira. Se você fala com os CEOs destas empresas eles dizem que são empresas de tecnologia, eles não põem a “mão na graxa” e esse despotismo fica invisibilizado inclusive para esses novos déspotas (CEOs de empresas que se julgam no ramo das tecnologias). As plataformas não põem a mão em nada. São leves, flexíveis, a tal ponto que se “apertar”, elas fecham, apagam os motores. Elas não têm o que perder. Elas não carregam passivo. Elas não têm prédios, quase não tem funcionários. É quase tudo terceirizado para outras pessoas jurídicas.  Na Espanha, se não me engano, a Uber saiu do mercado por conta da regulamentação. Em São Paulo, no início deste ano, a Ubereats parou de atuar de uma hora para a outra. Eles desligam o aplicativo e pronto. O AirBnb, na China, saiu fora por conta da regulamentação proposta pelo governo. É simples. Ele só desliga o botão.

Estou estudando o caso de Portugal e tenho acompanhado a situação na Europa. No Brasil o contexto é muito pior, porque o cenário é muito favorável às plataformas. Em São Paulo, a cada quatro quadras tem um amontoado de entregadores esperando uma chamada. Em Portugal isso não existe porque não há um mercado de trabalho tão desestruturado. A taxa de desemprego está em torno de 6%. A nossa está em 11%, mas mesmo quem está empregado não tem segurança de nada. E nestas circunstâncias, as plataformas nadam de braçada. Não é só pela inovação, mas porque esse tipo de inovação em um contexto já muito degradado como o nosso, produz situações ainda muito mais desfavoráveis.

O Breque dos Apps foi um momento de reivindicação de direitos, em que trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos, de alguma forma, se identificaram como classe. Mas, a partir das pesquisas realizadas por vocês, foi possível perceber que a luta por direitos é dissociada da ideia de formalização do emprego. As plataformas conseguiram vender a ideia do “sonho de liberdade” de ser autônomo ou empreendedor, ao mesmo tempo que submetem essas pessoas a jornadas equivalentes ao trabalho escravo. Neste contexto, como o movimento sindical se reinventa? As ligas seriam uma solução? O movimento também precisa de alguma forma se “plataformizar”?

Essa é uma das questões mais difíceis de responder. Talvez essa ideia de que se organizem em ligas, algo menos relacionado a cada empresa, a cada ocupação. É tudo muito novo, muito recente. Os movimentos do breque e outras manifestações de resistência são muito louváveis e espero que continuem acontecendo. Mas na pesquisa percebemos um quadro complexo: primeiro, eles desconfiam muito dos sindicatos e das organizações, pois não têm essa cultura, são jovens, nunca viveram um emprego formal, numa fábrica ou num escritório. Acham que é só um intermediário que vai dificultar a vida deles. Isso é muito assustador. A maior parte deles não vê com bons olhos a organização. Segundo, eles valorizam muito essa tal liberdade, essa flexibilidade da vida.

A gente tem que se debruçar sobre esses aspectos e procurar compreender. Porque ao mesmo tempo que é uma ilusão esta flexibilidade que eles alegam, eles têm muitas críticas ao velho mundo do trabalho como nós conhecemos. Todos nós que já trabalhamos em um ambiente formal sabemos o fardo que é cumprir horário e não ter a possibilidade de organizar sua folga de acordo com suas necessidades ou interesses particulares. Por exemplo, se uma final de campeonato na quinta ou o aniversário de um filho, eles podem escolher não trabalhar nesse dia e horário. Então, se é oferecida uma alternativa de trabalho que garante alguma renda, com certa flexibilidade nos horários de trabalho, eles acham isso bom – até porque não existem alternativas muito melhores para esses setores da nossa sociedade. Muitas críticas que eles apontam ao modelo fordista são as mesmas que fazemos. Isso, no entanto, não significa que as plataformas sejam boas. É difícil entender essa dinâmica contraditória e tentar desenhar uma institucionalidade que abrigue ao mesmo tempo essa ambição deles por flexibilidade e liberdade e dê segurança e acesso a direitos.

Acho que a gente pode até sonhar com algumas saídas. Eu tenho sido sensível à ideia de que temos que garantir direitos do trabalho – não só direitos sociais independentemente do tipo de atividade que a pessoa está exercendo. Todo mundo que, de alguma maneira, contribui com a sociedade com o seu esforço, com o seu trabalho deveria ter direito às férias, 13º, repouso remunerado na semana, licença maternidade, seguro acidente de trabalho, seja em atividade formal ou informal. Esse modelo teria que ser bancado pelo Estado, buscando bases de financiamento diferentes. Isso independente do vínculo e do tipo de contrato de trabalho. Se a pessoa contribui para a manutenção e melhora da vida em nossa sociedade, para o país, para o mundo, ele precisa ter os mesmos direitos. Se nós ficarmos batendo pé, que queremos generalizar o emprego formal para todos, o que hoje me parece infelizmente inviável pois a realidade econômica não demanda mais esse tipo de emprego no volume necessário, então nós vamos ficar falando para cada vez menos gente. Acho que temos que ousar em perspectiva mais ampla de garantia de direitos sociais e direitos do trabalho a todos.

Temos acompanhado algumas notícias sobre movimentos de organização dos trabalhadores plataformizados. Também existe um conjunto de iniciativas no mundo e no Brasil de maior regularização desse mundo digital do trabalho ou de alternativas cooperativadas ou mesmo institucionais. A prefeitura de Araraquara recentemente lançou um aplicativo do município, a exemplo de outras iniciativas em cidades e estados. De acordo com a Canaltech, pelo país, há o Bora Cariri, do Ceará; CabiCar e o Me leva agora, em Campinas; Madame Drive, de Manaus, com a proposta de ser 100% voltado a mulheres, entre outrasEstamos às vésperas de uma eleição para governos federal e estaduais, quais os caminhos para construirmos políticas públicas que façam frente, em nossos territórios, a esta proposta de garantir direitos sociais e do trabalho para todos e todas?

É nossa tarefa pensar isso. Sobre as iniciativas de prefeituras e de cooperativas de trabalhadores eu acho ótimo, pois elas exploram menos o trabalhador pois cobram apenas a taxa necessária para manter a operação. Elas são desejáveis e espero que elas avancem. Isso que o prefeito de Araraquara fez foi ótimo. Fico me perguntando por que os outros prefeitos não fazem. A prefeitura financia o projeto e entrega para uma cooperativa operar. Sou favorável a que as prefeituras assumam essas operações na medida que está abrindo espaço, pois como comentei, estas plataformas desligam o botão e vão embora quando deixa de ser lucrativo para elas. Se a Ubereats sai de São Paulo, o Estado pode assumir esse espaço, financiando o desenvolvimento de aplicativo e entregando para alguma cooperativa operar.

Não podemos, no entanto, cair na ilusão de que basta regulamentar esse setor para garantir direitos. Precisamos retomar um projeto de desenvolvimento que gere oportunidades de trabalho de mais qualidade para as pessoas. Oportunidades de ocupação nas quais as pessoas se realizem, que tragam possibilidade de crescimento nas várias dimensões da vida, e não que seja um trabalho repetitivo, cotidiano, sem possibilidade de crescimento pessoal, de maior conhecimento, de realização dos seus sonhos. Porque um motoqueiro entregador hoje não pode sonhar. Eu quero um país com um número menor de trabalhadores sob o comando de plataformas, porque eles terão oportunidades de empregos melhores. Temos que buscar um modelo de desenvolvimento que ofereça boas oportunidades para as pessoas se inserirem no mundo produtivo.

E como você avalia que podemos enfrentar o tema do financiamento?

Outra questão é pensar um modelo que garanta direito a todos. Como financiar e estruturar? Uma sugestão que tenho dado é que ele seja financiado por estas plataformas. Se é difícil exigir que o Uber reconheça o direito do Pedro, da Isabel individualmente, pode ser cobrada uma tributação sobre o faturamento desta plataforma e constituir um fundo de proteção aos direitos do trabalho. Hoje, as cinco maiores plataformas digitais auferem uma renda anual maior que o PIB da maioria dos países.

Outra possibilidade de financiamento é em cima da tributação da exportação de bens primários. O Brasil está se tornando um país agroexportador. Embora eu ache que devemos tentar reverter essa realidade, com uma indústria mais forte, este setor agropecuário e de mineração é muito forte e tem um papel econômico, principalmente para garantir equilíbrio em nossas contas externas. Porém, este setor primário, que gera pouquíssimos empregos, incorpora poucos serviços, e ameaça nossos recursos naturais, deveria ao menos contribuir de forma mais intensa para o bem-estar da sociedade, por exemplo, financiando a garantia de direitos sociais à enorme parcela da população que não encontra lugar nesse tipo de organização da nossa economia. Esse fundo social para garantir direitos poderia ter duas fontes de financiamento: serviços de tecnologia (por exemplo, tributando os ganhos volumosos que as chamadas bigtechs extraem das informações cadastrais e dos fluxos de nossas interações sociais) e os ganhos extraordinários das exportações de produtos primários. Alguns países, por exemplo, acionam a cobrança deste imposto só quando há lucros excepcionais e não em casos de normalidade. No Brasil tributamos mais o produto industrial, elaborado, do que o produto primário e deveria ser o contrário, para estimular a produção econômica interna e o avanço de atividades que ofertam empregos de melhor qualidade.

Fonte: ABET, com Democracia Socialista
Texto: Eliane Silveira
Data original da publicação: 15/06/2022

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