Documentário revela choque de concepções sobre o mundo do trabalho entre China e Ocidente
Cássio Casagrande
Fonte: Jota
Data original da publicação: 10/02/2020
Nunca no Brasil acompanhamos de tão perto o Oscar de melhor documentário e isso, é claro, deve-se a Petra Costa e o seu “Democracia em Vertigem”. O filme despertou amor e ódio por aqui e fez o governo Bolsonaro passar o ridículo de produzir uma peça publicitária com dinheiro público para detonar a cineasta brasileira (o que, evidentemente, só despertou maior atenção para o filme).
Gostei da produção brasileira, que deve ser vista como uma interpretação sobre a realidade nacional contemporânea a partir de um ponto de vista político autodeclarado, com objetivos manifesta e legitimamente militantes. Exatamente por isso, discordei de alguns enfoques da diretora, sobretudo quando ela ignora as decisões desastradas da Presidente Dilma Rousseff no processo que lhe cassou o mandato. Mas, enfim, não é preciso partilhar do pensamento político de um artista e da forma como ele se manifesta em suas obras para lhe reconhecer os méritos. Palmas, portanto, para Petra.
Mas, sem cair em patacoadas patrioteiras, confesso que torci pelo vencedor, “American Factory”, outro documentário que revela claramente as inclinações ideológicas de seus produtores/diretores, porém de uma forma muito mais sútil do que aquela que vemos na película “Democracia em Vertigem”. O filme é a primeira produção da Higher Gorund, cujos fundadores são o casal Barack e Michelle Obama e está atualmente disponível na Netflix (coprodutora).
Em “American Factory”, ou “Indústria Americana”, como aqui foi traduzido, vemos aquele que, juntamente com a questão ambiental, talvez seja um dos maiores problemas do desenvolvimento humano nessa primeira metade do século XXI: o impacto da globalização e da revolução tecnológica sobre o mundo do trabalho. O mote do filme é a história de uma planta industrial em Dayton, Ohio, situada no decadente “rustbelt”, que foi fechada pela GM no auge da crise iniciada em 2008 e reaberta alguns anos mais tarde por uma indústria chinesa de fabricação de vidros automotivos.
De início, os chineses são recebidos com euforia e tapete vermelho. Trazem uma equipe de cerca de 150 operários da China, experientes na linha de produção, que vão ensinar os americanos a trabalhar com seu produto.
O encantamento geral logo cede à dura realidade do “modelo fabril chinês”. Os chineses estão acostumados a um capitalismo autoritário, no qual os trabalhadores não têm voz alguma sobre os conflitos laborais.
Isso, evidentemente, vai se chocar com o capitalismo inserido em no contexto democrático dos EUA, em que os trabalhadores podem minimamente reivindicar direitos e questionar seus chefes.
E o pomo da discórdia entre chineses e americanos serão as eleições sobre representação sindical que o sindicato obreiro da indústria automotiva consegue convocar. Nos Estados Unidos, vigora o sistema de unicidade sindical, mas as representações são por empresa, já que não existe sindicato patronal com capacidade legal de negociação coletiva.
Assim, se um sindicato consegue obter 30% de assinaturas dos trabalhadores de uma empresa, um órgão estatal, o National Labor Relations Board, deve convocar uma eleição para que todos os trabalhadores da unidade decidam se querem ou não ser representados pelo sindicato reivindicante.
O problema é que, para supostamente assegurar a liberdade de expressão das empresas, o direito norte-americano permite que os patrões participem do processo e discursem para os trabalhadores, com suas razões para desaconselhar a representação por sindicato. Inclusive, os empregadores podem e costumam contratar (a peso de ouro) consultores de “union avoidance”, para que eles ajudem a “convencer” os trabalhadores que eles estariam melhor sem sindicato. Isso, como é de se imaginar, permite uma série de abusos em atos claramente antisindicais, como ameaças e retaliações a trabalhadores que fazem campanha em favor da sindicalização, exatamente como vemos em “American Factory”.
Inicialmente, os chineses nomeiam chefes americanos para conduzir os conflitos entre capital e trabalho e cuidar da questão sindical. Esses diretores americanos vão à China, para ver in loco como é o trabalho na matriz da empresa. As cenas que seguem nesse trecho são talvez o ápice do filme, pois mesmo os prepostos que são naturalmente áulicos à empresa chinesa não conseguem esconder a sua estupefaciência diante do despotismo fabril chinês, que apela até mesmo a uma disciplina militar no chão de fábrica.
E o espectador atilado, especialmente quando percebe a comunhão entre o Estado chinês e a plutocracia local, representado no sindicato oficial do Partido Comunista, fica igualmente chocado com o pesadelo orwelliano que é aquele modelo de capitalismo autocrático.
E é aqui onde sentimos a sutileza militante dos Diretores Julia Reichert e Steven Bognar.
Ao voltar, os diretores americanos têm dificuldade em lidar com os avanços da propaganda pró-sindicato, momento que a diretoria nativa é integralmente substituída por chineses “linha dura”, e o resultado é o pior possível para os defensores da causa da solidariedade sindical. Os chineses, como era de se esperar, aprenderam muito rapidamente como se aproveitar dos furos do sistema de representação sindical dos EUA.
Indispensável para quem quer refletir sobre o futuro do Direito do Trabalho, o documentário é revelador não apenas dos choques culturais provocados pela globalização, mas essencialmente dos conflitos sobre as diferentes concepções de capitalismo e democracia que envolvem os países que dominarão a geopolítica do século XXI: EUA e China. Embora, sem dúvida, possamos criticar sob muitos aspectos o sistema de relações de trabalho norte-americano, espero, sinceramente, que a concepção chinesa não prevaleça no mundo em que meus filhos e netos viverão.
Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.