por Igor Natusch
Embora seja, antes de tudo, uma emergência mundial de saúde, a pandemia disparada pelo novo coronavírus traz efeitos profundos também na esfera econômica. E a suposta oposição entre esses dois aspectos está no centro de grande parte das discussões e incertezas em torno do enfrentamento à Covid-19 no Brasil. É preciso pensar, antes de tudo, no aspecto da saúde, mesmo que isso coloque em risco o futuro econômico do país? Ou é fundamental que as pessoas voltem ao trabalho e a economia funcione até certo ponto, mesmo que isso possa diminuir a eficácia das medidas de contenção ao vírus?
Na visão de Carlos Henrique Horn, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, esse é um falso dilema. Segundo ele, políticas de saúde voltadas a salvar vidas devem ser tomadas em paralelo com medidas de preservação da economia, de forma a evitar queda dramática nas condições de vida da população e garantir que o momento pós-pandemia seja o menos dramático possível. Se há uma inclinação do governo federal a priorizar a agenda econômica – ao ponto de o presidente Jair Bolsonaro e seu núcleo mais próximo entrarem em rota direta de colisão com o próprio Ministério da Saúde – é por um apego exacerbado às reformas regressivas do Ministério da Economia, por um lado, ou por pura e rasteira disputa política, pelo outro. Nada a ver, portanto, com uma suposta incompatibilidade entre saúde e trabalho.
O economista conversou com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT no último dia 10 de abril, antes da saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde e da entrada do oncologista Nelson Teich em seu lugar. Na entrevista, tratou do cenário de estagnação econômica que acompanha o Brasil desde muito antes da chegada do novo coronavírus, além de avaliar as medidas adotadas para minimizar as perdas econômicas, presentes e futuras, causadas pela pandemia.
DMT – Para começarmos nossa conversa, eu gostaria de pedir que o senhor falasse um pouco sobre o cenário econômico brasileiro anterior ao advento do novo coronavírus no país. Porque já se percebe esforços para atribuir tudo à pandemia, e o fato é que a situação vinha ruim desde muito antes disso, com seguidas revisões para baixo do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB)…
Carlos Henrique Horn – O Brasil fechou em 2019 cinco anos de grandes dificuldades econômicas. Tivemos uma recessão bastante forte em 2015 e 2016; alguns datam o início dessa recessão do final de 2014, mas ela dá um salto a partir do ano seguinte, com uma perda de PIB de quase 4%, algo bastante significativo e que se repete de forma muito próxima em 2016, e os anos seguintes não trazem uma efetiva recuperação. O crescimento da economia de pouco mais de 1% – considerando, evidentemente, a recessão prévia – está muito mais para um quadro de estagnação da economia do que de recuperação. Nós chegamos a 2019 produzindo bens e serviços em um montante menor do que foi registrado em 2014. A renda per capita brasileira estava bem mais baixa do que a registrada em 2014 e uma das consequências lógicas disso é um aumento bastante expressivo do desemprego. Nós chegamos ao final de 2019 com quase 12 milhões de desempregados no Brasil. Somando a esse quadro, naqueles três anos em que houve um crescimento lento da economia, a recuperação no nível de ocupação ou de emprego geral de nossa economia ocorreu justamente naquelas condições mais precárias. O que cresceu efetivamente foi o emprego assalariado no setor privado, porém sem carteira assinada, e o número de trabalhadores por conta própria. Se você olhar o emprego assalariado com carteira assinada, ele se encontrava em 2019 mais ou menos no mesmo nível do pós-recessão, quase 10% abaixo do seu nível em 2014. Então, o quadro que antecede a crise do coronavírus é cheio de dificuldades, marcado por uma estagnação da economia.
DMT – É interessante citar a questão da informalidade, pois ela é um dos principais pontos de fragilidade dentro da situação que vivenciamos agora. Muitas pessoas dependem demais da sua atividade para obter renda e acabam ainda mais expostas a riscos – seja por depender do contato social para obter dinheiro, seja por aguardarem uma renda mínima governamental que demora para vir.
Carlos Henrique Horn – A informalidade urbana é uma característica estrutural da economia brasileira. Não obstante ter crescido nesses anos recentes de recessão e estagnação, esse é um dado que é nosso: a nossa trajetória de crescimento traz essa dificuldade de absorver, em postos de trabalho formais e de melhores condições, todo o contingente da população economicamente ativa. No fim do ano passado, chegamos a 25 milhões de trabalhadores por conta própria no Brasil, nós tínhamos 12 milhões – ou seja, o mesmo número de desempregados – na condição de assalariados atuando no setor privado, mas sem carteira assinada, e nós ainda tínhamos 4,5 milhões de empregadas domésticas sem registro ou diaristas. Só isso aí perfaz, como uma aproximação do nosso contingente na informalidade, 41 milhões de pessoas. É um número enorme. E daria para incluir as cerca de 8 milhões de pessoas que o IBGE contou como integrantes da força de trabalho potencial, ou seja, pessoas que, quando entrevistadas, declararam ter interesse em trabalhar e buscar uma renda, mas que tinham desistido de procurar – muitos desses casos, provavelmente, por conta de um desalento decorrente da própria crise. Esse contingente enorme de pessoas, agora, dentro da situação de descontinuidade da atividade econômica causada pelo coronavírus – a pessoa que não consegue, ou não deve ir à rua para vender seu produto, ou a diarista cuja empregadora simplesmente dispensou seu serviço sem manter pagamento – vão precisar de recursos públicos para garantir sua subsistência nesse período.
DMT – E como avaliar o posicionamento do governo federal diante desse cenário? Pergunto porque, por um lado, há sinais de grande preocupação em não prejudicar suas políticas econômicas anteriores e, por outro, a construção de um discurso que separa economia e saúde, como se a ação em um aspecto tivesse como requisito desprestigiar o outro…
Carlos Henrique Horn – Vou separar essas questões, certo? Em primeiro lugar, gostaria de registrar que o Brasil parece um caso singular no que se refere à escolha de políticas públicas para o combate ao vírus.
Se fizermos uma comparação com outros países, a nossa singularidade decorre de duas situações. A primeira é que temos um Presidente da República que é um dos poucos negacionistas do vírus. Ainda que, recentemente, a narrativa e o discurso presidencial tenham se modificado um pouco, nós todos sempre lembraremos da famigerada alusão à “gripezinha” e ao “resfriadinho”. Além de ter sido um negacionista, durante o início da pandemia e no decurso de todas as suas manifestações mais fortes, o presidente tem se mostrado igualmente uma fonte permanente de conflitos. Nessa singularidade brasileira, vemos que não existe uma ação coordenada clara entre as diferentes esferas de governo, mas sim uma enorme dificuldade de se forjar consensos para uma ação sistemática coordenada entre municípios, Estados e a União. E tudo indica que a principal barreira para essa ação coordenada está na conduta do Presidente da República, no fato de serem o presidente e o grupo mais próximo que o cerca fontes que atuam de forma contrária à solução dos problemas.
A segunda dimensão da singularidade brasileira está no Ministério da Economia. A equipe ministerial, comandada pelo ministro Paulo Guedes, tem preservado claramente um foco na austeridade fiscal. Ainda que mais recentemente tenham se movido para medidas mais gerais de crédito, de subsídios, apoios etc, o foco na austeridade é muito claro, e eu remeto aqui a duas evidências. O secretário de política econômica, há algumas semanas – ou seja, também no início do processo de chegada mais acentuada da pandemia no Brasil – em uma de suas entrevistas fez a seguinte declaração: que a melhor forma de enfrentar o vírus é apoiar as políticas econômicas do ministro Guedes. Ou seja, as reformas regressivas de redução dos serviços públicos. E, mais ainda, há uma insistência em uma relação com os Estados em que o projeto de lei que expressa o chamado Plano Mansueto seja aprovado pelo Congresso Nacional. Esse plano, que vem embalado na ideia de uma solução para os problemas de financiamento mais imediatos dos estados, traz nas suas condicionalidades o mesmo tom regressivo, no sentido de reduzir a capacidade de o Estado agir rotineiramente e nas situações de crise, porque vai reduzir os instrumentos para tal, via privatização ou redução de recursos.
Esses são os dois aspectos da singularidade brasileira, que são os primeiros pontos para responder a sua pergunta. A segunda questão, na minha visão, é o falso dilema entre saúde e economia. Algumas pessoas, bem intencionadas inclusive, acabaram caindo nessa armadilha, tentando justificar ou argumentar que primeiro precisamos cuidar da vida das pessoas para, depois, nos preocuparmos com a economia. No meu entendimento, esse dilema é falso: não existe essa contraposição, o que existe é tratar a saúde e tratar a economia. Evidentemente, em uma situação de pandemia, todas as medidas voltadas à preservação da vida devem ser adotadas, todos os recursos devem ser mobilizados e quem deve fazê-lo é, antes de qualquer outro agente, do governo federal, porque é ele que detém a capacidade, em um estado nacional, de fazê-lo. Juntamente com as políticas de saúde, devemos tomar uma série de medidas de preservação da economia, para que, passado o período mais drástico da pandemia, os efeitos dela sobre a atividade econômica sejam, de alguma forma, mitigados.
DMT – As duas situações conjugadas, conduzidas ao mesmo tempo, então?
Carlos Henrique Horn – Sim, ao mesmo tempo. É bom que fique claro que isso não quer dizer que estamos imaginando que não haja efeitos sobre a economia. Isso seria negar uma verdade factual: a crise do coronavírus terá, infelizmente, profundos efeitos sobre a economia. No caso brasileiro, nós temos o levantamento do Banco Central, publicado no Boletim Focus, e a cada semana piora a previsão sobre o comportamento da atividade econômica no Brasil – nesta semana (a entrevista aconteceu na segunda semana de abril), dava conta de uma queda do Produto na ordem de 1,2%, embora alguns órgãos de consultoria já falem em queda acima de 4%. Mas o fato aqui é o seguinte: independentemente do número da previsão, teremos queda no conjunto da atividade econômica, e isso está acontecendo mais profundamente nesse momento da pandemia. Teremos queda e essa queda será significativa. O que for feito agora para defender empresas, empregos e renda terá efeitos no futuro, quando nós tratarmos da recuperação da economia. Aqueles países que forem mais eficazes na defesa de suas empresas e das pessoas mais fragilizadas nesse momento da pandemia – e isso significa ação governamental profunda, com recursos da ordem de 10% ou 20% do seu PIB – estarão melhor preparados para o momento da recuperação em relação a países que forem lenientes neste momento.
DMT – Em seguida retornamos às medidas do governo federal diante do novo coronavírus. Mas, antes, queria tocar na questão do dito isolamento vertical, que vem sendo muito ventilada em certos setores do governo e do empresariado – justamente como uma forma de, supostamente, não causar os danos econômicos de um isolamento total. Isso não seria uma interferência de um elemento econômico, buscando que as pessoas mantenham o ritmo normal de trabalho, em detrimento das ações necessárias na esfera da saúde?
Carlos Henrique Horn – Essa é uma questão um pouco mais complexa. Minha formação é em Economia, não na Saúde, e a premissa para uma resposta direta envolve conhecimentos específicos na área da Saúde. Sendo professor em uma universidade federal e tendo contato com muitos educadores e profissionais de Saúde, uma percepção muito clara que eu tenho é de que a escolha de qual o melhor curso de ação de saúde para o tratamento do coronavírus envolve vários aspectos que devem ser ponderados. Se o isolamento deve ser plano ou o chamado isolamento vertical, com um número maior de liberalidades, essa é uma questão que está sendo discutida entre especialistas. E o consenso possível entre os especialistas, pelo que consigo ver, é aquele que a Organização Mundial da Saúde emite e que o Ministério da Saúde e sua equipe adotam: de que especialmente no caso do Brasil, onde não conseguimos fazer testagem ampla porque não nos preparamos para isso, nós precisamos adotar o isolamento horizontal, amplo. Eu tomo isso como uma premissa. E aí o meu primeiro questionamento é: como governantes que não têm formação na área da Saúde entram em conflito aberto, pela mídia, com as orientações do seu próprio ministério e da Organização Mundial da Saúde?
E aí acho que a sua pergunta vai na direção de entender se há um pensamento econômico específico por trás disso e eu não creio que a gente esteja falando nesse sentido aqui. A anomia brasileira em agir mais fortemente na direção da austeridade fiscal, esta sim tem uma associação com uma forma de ver o funcionamento da economia. Agora, nesse caso em questão eu devo lembrar que no Rio Grande do Sul, estado onde vivo e trabalho, associações empresariais lançaram uma nota na qual, se não pregam diretamente o fim do isolamento horizontal e não confrontam diretamente as orientações da classe da saúde, pedem claramente a retirada de algumas atividades econômicas do isolamento. Então, há uma clara movimentação política, na qual entidades representantes de determinadas classes empresariais fazem pressão sobre os governos, aqui e em outras partes do país, e o governo (federal) optou por aderir a essa pressão, ou a mostrar-se especialmente sensível a ela. Talvez esse seja o fundo da questão, ou seja, é pura política mesmo, pura partidarização da pandemia e pura luta de poder, sem preocupações claras com a questão de saúde.
DMT – Então, a postura do governo federal não seria ditada por preocupações com a economia, exatamente, mas estaria fazendo uso dessas preocupações para legitimar sua posição em uma disputa política.
Carlos Henrique Horn – Sim. Não creio que exista uma teoria econômica que defenda que, em pandemias, devemos contrariar a opinião da área da saúde para preservar a economia.
DMT – Voltando, então, às medidas tomadas pelo governo federal. No que se refere a garantir que a recuperação pós-pandemia seja menos dramática, o que o governo Bolsonaro tem feito? Qual a sua avaliação?
Carlos Henrique Horn – O Brasil, com atraso, vem adotando medidas semelhantes, em linhas gerais, às adotadas em outros países. Na área monetária, o Brasil tem procurado garantir a liquidez por meio de uma forte expansão do crédito a quem, no momento, precisa disso para manter seus fluxos de pagamento. Isso é muito importante, mas a efetividade dessa política depende, em grande medida, da reação que o sistema bancário terá à sua capacidade ampliada de oferecer crédito aos demais agentes econômicos. E aí vale a comparação com o que aconteceu na crise econômica de 2008, quando o governo brasileiro à época fez uma expansão bastante importante, em especial via Banco Central, das condições de crédito como mecanismo de enfrentamento daquela crise – e o que se observou foi que o sistema bancário privado não acompanhou essa expansão, ao menos não na medida do necessário. As instituições que, na época, mais ajudaram a evitar os efeitos mais danosos foram as de caráter público, em especial o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES. A pergunta que fica é: os bancos, todos, públicos e privados, tendo a possibilidade de fazer uma expansão de crédito para defender a economia, vão, nesse ambiente de incerteza, acompanhar a política, ou vão se recusar a distribuir esses recursos ampliados na forma de crédito? Eu colocaria especial atenção nessa questão, no que diz respeito ao provimento de liquidez na economia.
O segundo conjunto de medidas é aquele que está em voga, ao qual todos estamos atentos, que é a distribuição dos R$ 600,00, que podem ser R$ 1.200,00 às famílias mais necessitadas. Fala-se, aqui, em um universo de cobertura de mais de 100 milhões de pessoas. Esta é uma medida extremamente importante. Talvez o valor pudesse ser ampliado e pode ser que tenhamos que falar oportunamente em uma ampliação. Um aspecto que acho importante destacar é que nós temos herdado, da nossa história recente, uma série de tecnologias que nos permitirá fazer com que esse dinheiro chegue mais rapidamente a milhões de pessoas, e eu falo em especial do cadastro único. Se nós não tivéssemos o cadastro único, estaríamos nos defrontando, neste momento, com a questão de como fazer a identificação daquelas pessoas que seriam elegíveis para receber esse aporte, como localizar essas pessoas mais necessitadas. Ora, nossas políticas sociais, vindas desde o final do século passado, mas especialmente a partir do começo deste século – e em especial o Bolsa Família, tão criticado por parte da sociedade brasileira e particularmente criticado por esse governo, e que está no nascedouro deste cadastro único – são o que nos permite, hoje, entregar esse valor. Além da atuação de instituições de caráter público, em especial a Caixa. São esses elementos que se mostram fundamentais para que o impacto da pandemia seja menos danoso em nosso país – passando, então, a depender da boa vontade governamental. E eu falo boa vontade, mesmo, no sentido de ampliar esse aporte de R$ 600,00.
Não vou me aprofundar, aqui, em outros aspectos que poderiam também ser de grande importância, como a possibilidade de adiar o pagamento de contas de luz, de ter alguma espécie de subsídio para a aquisição de gás… Coisas que deveriam estar no leque das políticas públicas de suporte ao grupo que estou chamando aqui, genericamente, de os mais necessitados. Mas o terceiro ponto, por fim, vem a ser o apoio a empresas com o objetivo de preservar postos de trabalho. Nesse grupo de medidas, e olhando a experiência internacional, nós temos duas linhas de abordagem. Há países que estão subsidiando diretamente às empresas o pagamento da folha – por exemplo, o Reino Unido está subsidiando até 80% da folha, com um limite de 2.500 libras por mês, enquanto a Dinamarca banca 75% com recursos públicos e obriga as empresas a complementar o salário. Em outro grupo de países, a empresa pode suspender de forma provisória o contrato de trabalho ou fazer algum acordo de redução de jornada, e o aporte é no sentido justamente de preencher a diferença entre o que a empresa vai pagar e a jornada completa, ou um certo valor mínimo, quando ocorre a suspensão do contrato. No Brasil, novamente em sua singularidade, nós assistimos dois momentos. No primeiro, tivemos a famigerada MP 927, que trouxe no seu artigo 18, já revogado – e aquele era o centro da medida provisória, há várias outras medidas, mas esta era a principal – a possibilidade de suspender o contrato de trabalho e colocar o trabalhador em treinamento remoto provido pela própria empresa, sem pagamento de salários ou pagando voluntariamente um benefício. Isso é tudo, menos uma política de preservação de emprego e renda. Aqui sim, nesse ponto que diz respeito a mercado de trabalho formal assalariado, nós temos uma teoria econômica que alimenta essas medidas. É uma política que, lá no final da linha, está dizendo que empregos serão mantidos, desde que seus custos sejam baixos. O desdobramento prático, neste momento, é dizer: ‘OK, mantenham os empregos, mas não paguem salários’. O governo só esquece de explicar como os trabalhadores vão sobreviver, durante quatro meses, a essa pandemia (sem receber salário).
DMT – Foi justamente devido a esse viés, que não levava em conta a necessidade de sobrevivência de trabalhadores e trabalhadoras, que a MP foi criticada e, por fim, o artigo 18 foi excluído da versão posterior (MP 928).
Carlos Henrique Horn – Sim, e revogou com uma desculpa para lá de esfarrapada, de que houve um erro de redação ou coisa do gênero. Na sequência, tivemos outras duas medidas provisórias: uma cria um benefício provisório de emprego e renda para casos de suspensão do contrato ou redução de jornada, e a outra, mais recente, cria linhas de crédito para empresas que faturam até R$ 10 milhões, como suporte para o pagamento de folhas salariais. Aqui, nós temos duas questões. O benefício de emprego e renda é referido ao seguro-desemprego, o valor dele é o do seguro-desemprego, então os limites de manutenção de renda são, ao que parece, bem mais restritos do que nós vemos na experiência de outros países – ou seja, nós vamos ter uma perda considerável de renda para boa parte dos assalariados. A outra questão, da qual juristas da área do Direito do Trabalho poderiam falar melhor, é o fato de que esses acordos para redução de jornada podem ser individuais, o que contradiz norma constitucional expressa. O risco para o empregador é o seguinte: se ele adotar a medida agora, no desespero, no caso de pequenas e médias empresas que querem manter o vínculo e entrem nesse procedimento, pode estar constituindo um passivo trabalhista. Olha o dilema que o governo impôs aos empregadores. A regra constitucional prevê que esses acordos devem ser coletivos – e aliás, a Organização Internacional do Trabalho, em nota recente e no acompanhamento das medidas adotadas pelos governos no contexto da pandemia do novo coronavírus, diz que o diálogo social, o diálogo entre representações de empregadores e de trabalhadores, é muito importante neste momento. Algo que, no Brasil, está distante de nós até pensarmos, dado o quadro político recente e ao fato de que a grande reforma trabalhista recente veio no sentido de enfraquecer, ou mesmo anular, a representação coletiva dos trabalhadores. Simplesmente não se quer diálogo social, nesses termos que a OIT está colocando. Com tudo isso, a questão que se coloca é de que nós podemos ter inefetividade da medida, ou seja, que os empregadores não queiram aplicar as medidas. Isso precisa ser pacificado, de preferência a partir de uma regulamentação que traga a representação dos trabalhadores para o cenário da pandemia. E, se boa parte dos empregadores, temerosos de assumir um passivo trabalhista, não adotarem essas medidas de proteção do emprego, o resultado será uma redução muito maior do próprio emprego e da renda das pessoas.
Por fim, a medida voltada ao crédito para folha, a minha questão é se o setor bancário privado vai operar essa linha de crédito efetivamente ou não, se vai correr o risco de emprestar a empresas cujo fluxo de caixa exige recursos por meio de crédito, e se as empresas vão querer incorrer nos custos de 3,75% ao ano ou vão avaliar que o melhor mesmo é despedir as pessoas. Nessa questão, eu pensaria em redefinir os custos da operação, ou seja, em baixar a taxa de juro a quase zero, e em discutir claramente com a Fenaban (Federação Nacional dos Bancos), com o setor bancário privado e também com os bancos públicos, de forma a que operem essas linhas de crédito de forma efetiva.
DMT – Até que ponto as medidas econômicas que vinham sendo seguidas antes da pandemia reduzem a capacidade da sociedade em reagir a crises como essa? E, a partir dessa avaliação, que tipo de mudança de rota poderia ser adotada, tanto nas políticas locais quanto em esfera global?
Carlos Henrique Horn – Parece estar se formando um consenso de que o mundo depois do coronavírus será diferente, de que a humanidade será forçada a repensar muitas das coisas que vinha fazendo. Por outro lado, a inércia é algo inerente às trajetórias sociais: o que fazíamos no passado, e que as pessoas acreditam que fosse a coisa correta a fazer, continuará presente nas possibilidades do futuro. Enfim, se nós vamos alterar ou não a forma como gerimos as demandas sociais… Esta é uma questão em aberto. Olhando para essa situação da atualidade, vemos que países com sistemas amplos e públicos de saúde parecem estar lidando melhor com a pandemia do que países que atuam exclusivamente por meio de sistemas privados. A investigação científica voltou a ter relevância ou, melhor dizendo, reduziu-se as críticas que vinham sendo feitas aos cientistas – e o Brasil é um caso efetivamente singular também nesse sentido, com uma crítica muito mais pesada. Mas você vê a Fiocruz, as universidades federais com seus laboratórios sendo reconvertidos para a testagem do coronavírus, as escolhas de engenharia produzindo materiais em consórcios com empresas e por aí vamos. Quando a gente tem um sistema de ensino e investigação científica mais amplo, nós temos mais condições de enfrentar essas situações
Países que dispõem de tecnologias sociais ou onde há políticas sociais voltadas aos mais necessitados e desenvolveram mecanismos efetivos para esse apoio, estão em melhores condições de enfrentar (situações como a pandemia), restando mobilizá-las. Estamos falando, aqui, de serviços públicos construídos ao longo de décadas, cuja destruição sempre cobrará seu custo no enfraquecimento da nação. No caso brasileiro, penso eu, a principal questão no âmbito da política econômica é se o governo continuará seu esforço de destruição dos serviços públicos, ou se vamos reverter esse quadro e perceber que, com o SUS fortalecido, universidades federais e ensino público fortalecidos, tecnologias sociais efetivas e serviço bancário público estaremos mais bem servidos. É com esse dilema que a sociedade brasileira terá que se defrontar após o momento mais grave da pandemia.