Em apenas dez anos ocorreram dois ciclos de reformas muito amplas, ambas diretamente relacionadas ao surgimento de intensas crises econômicas.
Antonio Baylos
Tradução: DMT
Avaliar experiências comparadas de reformas do marco institucional das relações de trabalho, o que se costuma chamar de reforma trabalhista, é o objetivo destas (poucas) páginas. No caso espanhol, em apenas dez anos ocorreram dois ciclos de reformas muito amplas, ambas diretamente relacionadas ao surgimento de intensas crises econômicas. A comparação abrangerá três fases: pretende-se, em primeiro lugar, relacionar o conteúdo e o significado destes ciclos reformistas entre si, explicando a função que pretendem cumprir no sistema jurídico e político que regula o trabalho e a cidadania; em um segundo momento, propõe-se caracterizar ambos os processos em movimento com relação à causa que os origina, a crise econômica, definida como uma verdadeira situação de exceção que obriga a modificar o quadro normativo; e, finalmente, sublinha-se a relativa instabilidade do texto normativo resultante, que está sujeito a interpretações e reformulações que podem alterá-lo parcialmente, por meio de uma reescrita da norma em uma orientação diferente daquela com a qual foi produzida.
I
O ciclo de reformas iniciado em 2010, e que prolongou-se em 2011, em ambos os casos com reformas promovidas pelo governo do PSOE, completou-se de forma definitiva e mais profunda em 2012, já com o novo governo do Partido Popular, resumido: na redução das garantias do direito ao trabalho como forma de concretização da criação de postos de trabalho; na bem conhecida ideia neoliberal de que a redução dos custos salariais no ajustamento do emprego – barateamento e facilitação das demissões – favorece a reativação dos mesmos durante a recuperação da economia após a crise. Além disso, enfraquece-se a negociação coletiva e a força vinculante do acordo coletivo como forma de alcançar a desvalorização salarial, outro objetivo funcional de aliviar custos para obter uma recuperação nos níveis de emprego.
O epicentro destas linhas de mudança ocorreu na última fase do ciclo da reforma, em 2012, em um contexto de precarização e segmentação do trabalho com: elevadas taxas de trabalho temporário e terceirização de atividades; forte tendência para a individualização e deslaboralização, da prestação de serviços nas novas formas de negócio ligadas à economia digital; e, em geral, a aceitação da destruição do emprego como efeito natural do ajustamento econômico, que serviu também como medida de disciplinamento do interesse coletivo sindical, ameaçado em seu desdobramento devido à perda de postos de trabalho. Desse ponto de vista, a reforma trabalhista não só freou o aumento da sindicalização que havia sido detectado na primeira década do novo século, como também reduziu drasticamente a sindicalização de pessoas que perderam o emprego ou viram seus postos de trabalho em perigo. Além disso, rompeu-se a capacidade de representação geral do sindicalismo representativo através da cobertura dos dissídios coletivos, e foi impedida sua capacidade de dialogar com o poder político no governo sobre os interesses econômicos e sociais representados pelas pessoas que trabalham, consideradas em sua condição de cidadania subalterna.
É muito diferente o processo iniciado em março de 2020, após a declaração do estado de alarme devido ao surto da pandemia provocada pela Covid-19. Nos primeiros regulamentos, a proteção do emprego estável fazia-se através do veto às demissões por força maior e ETOP[1] sem justa causa e pela generalização do ajustamento do emprego temporário através do ERTE[2], conjugado com a proteção social esmiuçado em prestações sociais e na criação do Ingreso Mínimo Vital[3]. Nessa mesma fase do ciclo, deram-se passos na questão salarial, com o aumento do SMIG[4] e as regras de igualdade salarial e transparência para reduzir as disparidades salariais entre homens e mulheres, junto com a regulamentação de novas formas de trabalho derivadas das TIC e da digitalização, como o trabalho remoto ou as atividades de distribuição ao serviço de plataformas digitais, com a obrigatoriedade de informar a representação dos trabalhadores na empresa sobre a gestão algorítmica de pessoal.
O momento mais decisivo desse ciclo de alteração legislativa ocorreu com a reforma laboral no quadro do plano de recuperação e resiliência de dezembro de 2021, que se assentou no princípio de estabilidade no emprego através: da profunda reorganização restritiva da contratação temporária; da manutenção de emprego incorporando na “normalidade regulatória” o ajustamento do emprego temporário da ERTE como regra geral de atuação face às dificuldades que as crises econômicas colocam à atividade das empresas; e, por fim, do fortalecimento da ação sindical na negociação coletiva. A reforma trabalhista de 2021 está dando frutos importantes, mas o surgimento de novos fenômenos críticos, especialmente a crise energética e de abastecimento causada pela guerra na Ucrânia, não impediu que, em 2022, continuassem a ocorrer mudanças regulatórias no que diz respeito à ampliação de direitos de determinados grupos, notadamente às trabalhadoras domésticas em decorrência da ratificação da Convenção 189 da OIT; à ampliação de benefícios sociais; à reavaliação de pensões e outros elementos importantes, como a regulamentação da legislação trabalhista.
É fácil detalhar as orientações completamente opostas de ambas as iniciativas de mudança. As correspondentes ao ciclo 2010-2012 atuam para a modificação substancial das condições de trabalho, pautadas por princípios de unilateralidade e imunização das decisões empresariais quanto: à intervenção coletiva do sindicato e representações eletivas dos trabalhadores (a flexibilidade interna não contratada); para a decidida degradação das garantias laborais nas demissões como fórmula predominante para efetuar o ajustamento laboral face às dificuldades econômicas, aliada à acentuação da relação desequilibrada entre sindicatos e empregadores na dinâmica da negociação coletiva. Já no período 2020-2022, face à pandemia, as políticas jurídicas se assentam nos princípios da estabilidade e manutenção do emprego, no reequilíbrio da negociação coletiva e no estabelecimento de um cinturão protetor contra a pobreza salarial (o aumento do SMIG, o Ingreso Mínimo Vita contra a pobreza como forma de exclusão social, bem como a melhoria das pensões através de um forte mecanismo que permita a reavaliação das mesmas).
Apesar dessa forte oposição, há elementos comuns a ambos os processos. O condicionamento político das reformas espanholas para a política monetária e governança econômica europeia ocorreram em ambos porque: no primeiro caso, pela crise financeira que mais tarde se transformou na crise da dívida do Estado, sintetizado no mecanismo de estabilidade; no segundo caso, na reorientação do pacote Next Generation no quadro da suspensão do pacto de estabilidade e no quadro da alteração legislativa do plano de recuperação e resiliência que foi acordado com as autoridades europeias. Em ambos os casos, o condicionamento das políticas sociais promovidas pelas medidas adotadas como resolução da crise tem sido fundamental, embora obviamente sua orientação tenha sido muito diferente no caso da crise do euro e naquela desencadeada como resultado da pandemia. Mas também é verdade que, mesmo dentro desta homogeneização política e econômica, há margens na escala nacional-estatal para uma política jurídica diferente dentro dos quadros definidos pela governança europeia. No primeiro ciclo de reformas (como demonstra a proposta de reforma gradual que vai do biênio 2010 e 2011 ao que foi imposto em 2012) e no atual, a diferença pode ser apreciada em relação aos demais planos de recuperação e resiliência aprovados em outros Estados-membros da União Europeia, frente aos quais a proposta espanhola atual se destaca pelo seu caráter decidido de promoção do trabalho digno e de qualidade. É possível que sempre tenham existido (especialmente no segundo caso) limites intransponíveis – certamente os relacionados com a modificação direta das demissões econômicas coletivas -, mas o que é inquestionável é que a alteração legislativa que incorporou na normalidade normativa o ajustamento temporário do emprego como a regra prioritária a ser praticada em casos de crise afeta indiretamente a questão da demissão coletiva, ainda que não seja alterado o seu regime jurídico.
O que finalmente emerge dessa comparação é a existência de dois modelos completamente conflitantes. Um modelo neoautoritário de degradação dos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores, frente a um modelo democrático das relações laborais, que materializa o processo de alterações legislativas ocorrido como reação à crise provocada pela pandemia, em que a centralidade do trabalho é o eixo da construção de uma cidadania democrática. Uma relação que desafia o jurista pelo fato de estar diante de uma mudança de paradigma normativo que pretende modificar profundamente as coordenadas ideológicas, políticas e técnicas do modelo neoliberal das relações de trabalho, substituindo-o por uma construção gradual de um projeto regulatório neolaboral .
II
A crise econômica foi um gatilho para as mudanças legislativas tanto no primeiro ciclo (crise financeira e da dívida) quanto no segundo (colapso da atividade econômica desde o início da pandemia). E sua reiteração na crise energética e de abastecimento decorrente da invasão da Ucrânia afeta nessa mesma relação. Sayonara Grillo y Jose Eymard Loguercio qualificaram a reforma trabalhista de 2017 no Brasil também como um direito de exceção generalizado, onde se produz a institucionalização da exceção.
A gravidade da crise econômica sobre a economia nacional cria uma situação de exceção que pode ser considerada como uma suspensão das regras até ao momento vigentes para restabelecer um estado de normalidade após a exceção anormal gerada pela crise[6]. Mas acontece que esse propósito de restabelecer uma situação anterior ao estado de excepcionalidade que deu origem à crise não costuma ser realizado. Ao contrário, o “novo normal” que se segue ao momento da exceção é justamente a legislação de exceção instituída. Ou seja, não há uma “nova normalidade” a qual se dirige a legislação de emergência, mas sim que esta é precisamente a nova normalidade normativa proposta.
Essa identidade da excepcionalidade normativa com a normalidade estabelecida aparece claramente na análise do primeiro ciclo de reformas na Espanha. Nela, a substituição do “normal” após a crise é identificada com a recuperação de um nível de emprego que se entende aceitável, 15% do desemprego registrado. O alcance dessa meta no final de 2018 foi o que permitiu ao RDL 28/2018 revogar o contrato de apoio aos empresários e o período experimental de um ano em que se manteve a demissão livre, bem como um conjunto de bônus e isenções para a segurança social. Mas, para atingir esse objetivo, mantiveram-se os elementos centrais desta normativa de exceção no triplo domínio da flexibilidade interna unilateral, do desequilíbrio da negociação coletiva e da degradação das garantias de demissão.
É importante notar que, nesse primeiro ciclo reformista, o estado de exceção social não foi formalmente declarado, embora tenha sido efetivamente exercido como tal através do uso contínuo do Decreto-Lei e da transferência da capacidade legislativa para o governo. O que ocorre é que a manutenção dessa excepcionalidade social e econômica se apoiava nas maiorias parlamentares, que endossaram sem problemas as alterações normativas. A ruptura com qualquer manifestação de diálogo social revalorizava este modelo de subordinação parlamentar à decisão do poder executivo no quadro de um bipartidarismo muito acentuado. A própria reforma da Constituição para incorporar os compromissos de equilíbrio financeiro e pagamento da dívida é um claro exemplo do peso da indiferença do sistema partidário no debate sobre a organização concreta que deveria ter o sistema de direitos individuais e coletivos derivados do trabalho. Essa é a regra geral, a plena submissão às decisões do Governo garantidas pelo predomínio da maioria parlamentar, pelo menos até às eleições de 2015 e, posteriormente, já em minoria, mediante o bloqueio de iniciativas legislativas, através do uso extensivo do poder previsto no art. 134.6 CE, se fossem entendidas como implicando “um aumento dos créditos ou uma diminuição das receitas orçamentais”, preservando assim a “normalidade normativa” decorrente da normativa de exceção gerada pela crise.
O segundo ciclo de reformas é também explicado como uma situação excepcional, mas, ao contrário do caso anterior, esse é formalmente declarado como estado de alerta, e a legislação social é percebida como um elemento central na regulação e gestão desta situação de excepcionalidade social e econômica originada pela pandemia. O objetivo destas medidas é o restabelecimento de um estado de normalidade, assentado em um nível de emprego, mas através da construção de um potente direito ao trabalho. Ou seja, conectando diretamente as políticas trabalhistas do art. 40 CE com um conteúdo inseparável do art. 35 CE, que preserve as garantias reais do direito ao trabalho. Através de um longo período de exceção – três estados de alarme descontínuos de março de 2020 a maio de 2022 – mantiveram-se e desenvolveram-se os primeiros regulamentos para fazer frente ao impacto econômico e social da Covid-19, enquanto se estabelecia gradualmente uma “nova normalidade” normativa para além do mero fato da recuperação do emprego, centrada no reforço das faculdades e poderes incluídos no direito ao trabalho numa orientação democrática e garantista.
A manutenção deste estado de exceção social e o seu desenvolvimento normativo enfrentou uma distribuição de forças políticas representadas no Parlamento que não garantiram ao governo apoio permanente ao seu programa de reformas no contexto multipartidário dominante e face à cada vez mais agressiva oposição das formações políticas de direita, com destaque para a extrema-direita. Diante disso, a legislação de exceção contou com o apoio do diálogo social e da participação dos dois sindicatos mais representativos com o associativo empresarial, que acompanharam com seus acordos tanto os sucessivos desenvolvimentos da legislação sobre a regulamentação do trabalho temporário (os seis Acuerdos Sociales de Defensa del Empleo) como os marcos mais relevantes na regulamentação do trabalho remoto ou do trabalho dos “riders”. A legitimidade social conferida pelo acordo com os interlocutores sociais foi a mais importante à medida que se avançava no estabelecimento da “nova normalidade”, tanto no seio do Estado-nação, sendo uma forma de garantir o consenso coletivo e cidadão face às medidas adotadas, como fora das nossas fronteiras, para garantir o modelo democrático neolaboralista que estava se consolidando através da legislação de exceção e que também, em alguns casos, como o dos trabalhadores a serviço das plataformas digitais, influenciava positivamente o padrão de regulação que orientou o projeto de diretiva europeia. Por fim, a negociação de nove meses da reforma trabalhista que culminou no acordo, que posteriormente se traduziria no RDL 32/2021, reiterou a relevância do diálogo social como forma de produção normativa e como método de governo.
A importância do apoio social da legislação reformista teria, no entanto, de ser confrontada com a legitimidade política que se expressa na decisão de validar as normas excepcionais como normas de urgente necessidade. No processo de confirmação parlamentar da norma central da reforma trabalhista, desencadeou-se o debate sobre a superioridade da legitimidade política derivada do acordo parlamentar sobre a legitimidade social do acordo tripartite alcançado por sindicatos, associações empresariais e governo. Ignorando a existência de um princípio democrático fundamental (que reconhece às figuras representativas da empresa e do trabalho a intervenção direta na conformação do interesse econômico e social dos cidadãos como um fórmula de participação democrática), a discussão que emoldurou as vicissitudes da validação do RDL 32/2021 por um único voto de diferença queria estabelecer uma relação de hierarquia e subordinação das decisões dos partidos presentes no arco parlamentar sobre as decisões que o governo e os parceiros sociais tinham adotado nesse momento de exceção como soluções concretas frente à “nova realidade” normativa e que se correspondia com o apoio obtido pelas autoridades europeias no quadro do Plano Nacional de Recuperação e Resiliência. Uma certa recuperação de um antigo debate sobre a subordinação do espaço sindical e econômico-social ao político, representado pelo partido, que não reconhecia autonomia ou legitimidade suficiente no plano político à organização destes interesses coletivos através do diálogo social.
III
As modificações legislativas que ocorrem nos processos de reforma, uma vez promulgadas, entram em um campo no qual atuam sujeitos e operadores com interesses conflitantes e com diferentes capacidades de atuação sobre a norma. Em primeiro lugar, as formas de organização dos interesses sociais e coletivos de trabalhadores e empresários, em que se destacam os poderes de ação dos sindicatos através da negociação coletiva e do conflito, sem esquecer a utilização do acesso à tutela jurisdicional de direitos e, consequentemente, à defesa de uma determinada interpretação da norma orientada para a melhor defesa do interesse coletivo. Nesse peculiar espaço de disputa no qual é a interpretação e aplicação normativa, a cultura jurídica, os sujeitos e as elaborações teóricas que atuam nesse espaço, convertem em determinantes no resultado final os advogados e a forma concreta de organizar a ação judicial destes, a estrutura judiciária e a forma de intervenção dos juízes e magistrados, e também os expoentes da doutrina acadêmica, fundamentalmente universitária.
De fato, essa relativa indecisão do normativo diante da interpretação de seu texto tem permitido uma reescrita parcial de alguns elementos parciais do primeiro ciclo de reformas entre os anos de 2010 e 2012, especialmente no que diz respeito à reforma trabalhista de 2012. Basta recordar a relevância que, na questão das demissões coletivas, trouxe a declaração de nulidade daquelas cujo período de consulta tenham sido violados direitos fundamentais pela empresa, nomeadamente o direito à greve, ou a interpretação do padrão de negociação conforme a boa-fé e a consequente nulidade das demissões por violá-lo. Em termos de negociação coletiva, é possível trazer à tona a sentença que incorpora no âmbito contratual o conteúdo da convenção coletiva rescindida sem que a ultra-atividade da mesma tenha sido pactuada, ou a linha jurisprudencial que estabeleceu o princípio da correspondência entre o âmbito de representação dos trabalhadores e o da unidade de negociação do novo acordo coletivo da empresa que estabeleceu a prioridade de aplicação sobre o acordo setorial. Todos esses elementos conseguiram uma correção parcial das consequências mais devastadoras da reforma trabalhista empreendida, fruto da ação judicial dos sindicatos que utilizaram o acesso à justiça como manifestação da tutela ao interesse coletivo dos trabalhadores por eles representados.
O diferente âmbito de interpretação das normas não só permite o diálogo entre os tribunais nacionais e europeus – como acontece principalmente com o Tribunal de Justiça -, como também possibilita encontros e desencontros entre a jurisprudência do Supremo Tribunal e a desenvolvida pelo Tribunal Constitucional. Nesse sentido, a declaração enfática dos acórdãos do TC 119/2014 e 8/2015 da constitucionalidade da reforma de 2012, tanto por razões formais como substantivas, foi certamente uma confirmação decisiva da política de direito que havia sido concretizada nas alterações legislativas estabelecidas que, sem dúvida, condicionaram de forma muito direta o campo de jogo das posições jurídicas opostas, com a parca consolação dos importantes votos individuais dissidentes da decisão maioritária do Tribunal. Por isso, a diminuição radical de recursos de amparo face ao TC explica-se pela inoportunidade dos sindicatos de acudir a esse campo de disputa argumentativa que se sabia de antemão já decidido contra eles.
Quanto ao segundo ciclo de reformas, o seu caráter escalonado e permanente durante os dois primeiros anos do ciclo até ao final de janeiro de 2022, com a validação do RDL 32/2021, tem gerado uma resposta mais exegética do que avaliativa por parte dos operadores jurídicos, ou seja, priorizou-se o aspecto descritivo e sistematizador da enxurrada normativa em detrimento de uma abordagem de conjunto do processo e de uma avaliação das políticas jurídicas que foram postas em prática ao longo dele. Embora a partir da reforma trabalhista se tenha desacelerado o ritmo de promulgação de normas, isso não levou à recuperação de uma visão de conjunto sobre o processo de mudança legislativa. Há uma certa apatia ou fadiga na doutrina trabalhista progressista, perceptível na menor atividade da sua produção não estritamente acadêmica, que se mantém em sua maioria ancorada numa visão distante do sentido da reforma, insistindo em grande parte na crítica dos aspectos formais da mesma.
Por seu turno, a negociação coletiva tem sido dificultada pela negativa da CEOE[7] em realizar um acordo geral para enquadrar a negociação – os Acuerdos de Negociación Colectiva (ANC) – frente a profunda divergência no sentido da perda do poder de compra dos salários (devido ao surto inflacionário causado pela crise de energia e abastecimento originada pela guerra na Ucrânia), de modo que os esforços se concentraram no problema salarial, sem muitos dos elementos que a reforma trabalhista delegou aos acordos coletivos como eixo de desenvolvimento de seus preceitos. Por fim, há também certo bloqueio da ação sindical na esfera judicial, uma espécie de retração no ativismo jurídico das assessorias sindicais em defesa do interesse coletivo, que é perceptível em vários aspectos, como a redução da abordagem de conflitos coletivos perante o Tribunal Nacional, onde agora o protagonismo corresponde aos sindicatos minoritários.
Por outro lado, percebe-se uma recomposição doutrinária e ideológica que, embora pareça um tanto tardia, manifesta-se clara e contundentemente na linha de uma reescrita restritiva da reforma trabalhista e da legislação de exceção. Assim, já foram produzidas decisões judiciais muito relevantes, não tanto por seus efeitos específicos, mas pelo sentido constituinte do alcance das normas analisadas. É emblemática a declaração de que as demissões ETOP ou por força maior durante a Covid-19, que o regulamento pretendia vetar, não são nulos, mas improcedentes, decisão adotada pela STS 841/2022, de 19 de outubro (relator A.V. Sempere Navarro), por unanimidade da sala, sem votos particulares. Isso se projeta no preceito idêntico ao do Real Decreto-Lei 6/2022, de 29 de março, pelo qual são adotadas medidas urgentes no âmbito do Plano Nacional de resposta às consequências econômicas e sociais da guerra na Ucrânia. Prevendo evitar a destruição do emprego e do tecido empresarial face a esta nova crise, o Decreto-Lei concentrou-se na declaração de que não constituía causa ou motivo legal de demissão as circunstância impeditivas ou dificultadores da atividade da empresa derivadas do aumento dos custos energéticos no quadro de consequências da guerra. Para evitar essas demissões, o Decreto-lei indica que as ações devem necessariamente ser redirecionadas para as medidas extraordinárias previstas para ajuste temporário do emprego reguladas no art. 47 do Estatuto dos Trabalhadores, reformado pelo RDL 32/2021. A partir desta decisão, portanto, as demissões praticadas por causas derivadas da invasão da Ucrânia não podem ser consideradas com base em causa inválida, como queria a lei, mas sim são redirecionadas para a ausência de justa causa e configuram-se como demissões improcedentes, indenizadas conforme a regra geral de 33 dias por ano de serviço.
O próximo objetivo dessas interpretações judiciais da reforma incidirá, com total certeza, no art. 42.6 ET, na determinação do acordo coletivo aplicável às empreiteiras e subempreiteiras. A terceirização produtiva e o convênio aplicável ao pessoal que exerce essa atividade é o objetivo dessa operação de redirecionamento da norma. Nessa mesma direção, abunda a reorganização que está ocorrendo das publicações especializadas, fundamentalmente digitais e de acesso aberto, que fazem parte dessa recomposição ideológica [8].
A atenção à indecisão interpretativa que permite ampliar ou, ao contrário, restringir os direitos declarados nas normas reformadas fornece um bom motivo para afirmar a relevância da captura do espaço cultural-ideológico no qual se desenrola a reforma trabalhista, e o inescapável acompanhar desse impulso legitimador pelos mecanismos de formação extralegislativa do Direito do Trabalho. A representação da realidade é o domínio dos juristas e sua concretização orienta e decide em grande medida a realidade. Hoje, portanto, é especialmente urgente atuar sobre esse marco de sentido.
Notas
- Este texto é um resumo da intervenção no Seminário Comparado de Direito do Trabalho “Experiências e Diálogos entre Espanha e Brasil”, organizado pelo CELDS da UCLM e pelo Instituto Lavoro do Brasil, em Ciudad Real, em 27 de janeiro de 2023.
Antonio Baylos é Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid; Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Universidad de Castilla La Mancha – Madrid; Diretor do Departamento de Ciência Jurídica da Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Ciudad Real; Diretor do Centro Europeu e Latino-americano para o Diálogo Social (CELDS).